A VIAGEM PELO RIO JURUÁ - II

A VIAGEM PELO RIO JURUÁ - II

Autor; Moyses Laredo

(CONTINUAÇÃO CAPÍTULO #1)

(...) chegamos já no meio da tarde, graças, só de me imaginar passando a noite ali naquela horripilante margem do rio, sendo devorado vivo, me arrepiava de pavor. (...)

Fui recebido pelo pessoal local já à minha espera, não era todo dia que um Dotô engenheiro da Empresa de fiscalização aparecia por lá, até porque, esse era o primeiro programa social que aquele município estava sendo contemplado, fizeram uma pequena recepção, o prefeito se adiantou e disse que estava estranhando a nossa demora, se até de manhã ninguém aparecesse que iria mandar um barco para ver se a gente estava no “prego”. Porra! ...pensei, - mais só de manhã? Caráio, então a dormida lá naquele inferno era certeira, falavam aquilo na maior naturalidade, isso não assustava ninguém, todos conheciam esses problemas e alguns já tinha passado por isso, de modo que, não causava nenhum espanto em mais ninguém, só em mim!

Passada a recepção me avisaram que haviam matado um pecari gordo e que estavam só me aguardando, logo mais iriam servir, fiquei curioso, que diacho era um pecari gordo?...não conhecia ainda, esse bicho por esse nome - o que mais poderia ser? Pedi para ver o tal pecari gordo. Me conduziram até a cozinha, a de sempre, com cobertura de telhas galvanizadas já escurecidas pela fuligem, fogão de tijolos queimando lenha, girau, mesa grande, igualzinha as tanto outras que já tinha visto em minhas viagens, fui até um grande tacho borbulhante, acho que de ferro fundido, onde estava o tal do pecari gordo, desde cedo cozinhando, ela revirou o bicho do fundo da panela com uma grande colher de pau, e finalmente reconheci o que era, davam esse nome de pecari também ao caititu queixada, aliás, cujo nome científico é (Pecari tajacu) era um genuíno porco do mato, tinham sido abatido no dia anterior, o bicho estava todo desmontado, com patas cabeça e tudo fervendo naquele imenso tacho, por cima da fervura, havia se formado uma camada, de uns quatro dedos, de uma banha meio amarelada, mais para a cor âmbar, o curioso é que, os pelos do animal ainda estavam no couro. Todos com muita satisfação me apresentaram o bicho, fiquei parado, não disse nada, esperei alguém falar alguma coisa a respeito, a mulher foi a primeira a perguntar: - o Senhor gosta de pecari, né? – essa era a deixa por mim esperada, logo me adiantei dizendo: - Infelizmente não posso comer porco, nem caseiro, nem do mato, estou tomando uns antibióticos e o médico me proibiu, é uma pena. Ela fez uma cara de decepção e juntou as sobrancelhas. Imaginei o trabalho que teve preparando o manjar, e mais, o marido dela coitado, tinha perdido uma noite de corte de seringa. Havia saído de madrugada para caçar, se pôs a esperar na “ceva” (um ponto na mata onde os animais se alimentam), e já de madrugada “entrou” esse tal desse pecari, mas fazer o que? Se tiveram esse enorme trabalho por nada, não posso me culpar. Ela não se abateu, depois da decepção, virou-se sorrindo e disse, - Mas ainda tem um pouco de “peba”, que também matamos ontem, isso o senhor come né? – também não! (tatupeba também conhecido como peba, ou papa-defunto) Estou proibido de comer caça de qualquer espécie, mas não se preocupe, sempre trago comigo umas latas de sardinhas para essas ocasiões, isso acompanhado com arroz, mais a farinha de vocês está tudo bem para mim, parece que ela se contentou, fui pegar as latinhas na mochila, então ela fez uma gororoba com arroz e farofa de ovos de capote (galinha d’angola) com a famosa farinha de Cruzeiro do Sul, juntou feijão “mudubim de vara”, cultivada em grande escala em Marechal Thaumaturgo, município no Acre, lembra o feijão-fradinho, este também da sua pequena horta no fundo do quintal, cozido com verdura, ficou uma maravilha, deu para passar numa boa, foi um banquete, aliado com a fome do dia, caiu muito bem.

Com a noite em cima, fui aconselhado a posar lá mesmo, não tinha a menor condição de voltar, até porque, o hélice não havia sido reparado. Os carapanãs já estavam se apresentando, ferozes como sempre, o crepúsculo é sua melhor hora, ao amanhecer e ao entardecer, eles mostram seu poder, principalmente diante de sangue novo, perceberam que eu estava sendo atacado, gentilmente me arrumaram uma rede com um mosqueteiro e um “sentinela” (incenso espiral), me indicaram um atador, não havia “esses”, amarrei o punho da rede na travessa do esteio, firmei bem com o peso do corpo, e depois da janta, acendi o “sentinela”, até hoje comercializado pela Baygon, levantei o mosquiteiro, me passei pra dentro e dormi pesado.

Acordei já com grande movimentação na casa, olhei o relógio nem era ainda cinco da manhã e já parecia que aquele povo estava de pé há mais tempo, o converseiro do dia-a-dia, a algazarra dos bichos no terreiro, o cheiro do café coado, que de tão forte, invadia a casa toda, - Ô coisa boa essa sensação, o cheirinho de mato molhado, me remeteu a outros tempos de criança, quando o nosso pai teve que nos levar ainda muito cedo a passar uma temporada no interior, ele se viu obrigado, não tinha, como temos hoje, irmãos que nos socorrem em momentos difíceis, portanto, sua opção fora nos levar a passar uma temporada no interior, nessa época éramos apenas três irmãos, hoje imagino que seria para poder equilibrar sua situação financeira. Eu era muito pequeno, não tenho lembrança lugar e de qual interior fomos levados, no entanto, me restou sim, um flash de quando ainda éramos transportados por uma grande canoa em direção ao barco fundeado, mais adiante, no porto do Roadway, em Manaus, o qual, embarcamos para essa desconhecida (para mim) localidade. Estas lembranças afloraram à minha mente enquanto os sons daquele lugar me invadiam a alma. Ainda sonolento, com os olhos fechados, me embalava suavemente, fazendo impulso com o dedão do pé, no esteio de acariquara, firmemente fincado para apoio da cumeeira, ouvindo o ranger das cordas no esteio, me senti verdadeiramente em casa com tamanha simplicidade de vida, quase que tive dificuldade em sair da rede.

Desperto, peguei um copo de plástico cheio d’água e fui escovar os dentes com o dedo. Na falta de uma escova, essa era a opção mais coerente para limpa-los. Depois da “higiene”, fiz sala com o Prefeito, disse-lhe que gostaria de outro transporte, por causa da pane no bote, ele prontamente já tinha providenciado outro barco maior e mais seguro, que estaria a minha disposição quando retornasse da vistoria, agradeci-lhe, como também à pousada, em ato contínuo, convidou-me a tomar o tal café aromático, que já nos esperava no bule esmaltado, com pequenas lascas soltas do esmalte branco. O café era torrado e moído lá mesmo, passado em coador de pano, já estava de olho nesse café com mandioca cozida, beiju (bijú) seco e ovos caipira que a senhora fez questão de oferecer novamente, desta vez, foi de galinha mesmo, viu que gostei. Em seguida sai para ver as tais obras, para tal, mudamos de barco, passamos para uma piroga (embarcação indígena a remo, cavada a fogo em tronco de uma única árvore), a canoinha era equipada com um motorzinho de rabeta (de eixo comprido). O mesmo motor servia como bomba d’água, gerador e para moer a mandioca, tirar o tucupi, a goma e os outros produtos. Era só retirar o motorzinho da canoa, adaptar o mancal ao caititu e moer a macaxeira para fazer farinha, a d’água, é melhor, porque é mais mole. Para fazer a farinha d’água, a macaxeira é deixada de molho dentro d’água para amolecer, daí seu nome. Já a seca, pode ser moída tão logo seja descascada.

Saímos em direção ao Igarapé Humaitá, no seringal do Nazaré do Boia, (minha amiga Francinete, morava lá) até a comunidade onde as casinhas de madeira do programa habitação popular, haviam dito estar construídas. Ô lugarzinho difícil de se chegar, tinha sido uma escolha pessoal do Governador, ele devia considerações àquela gente humilde.

A comunidade havia sido contemplada com 7 unidades, espaçadas, ao logo do rio. Quando por lá aportei, os operários se espantaram, não tinham a menor esperança de que um dia, alguém da Empresa apareceria por lá para fiscalizar, assim, as casinhas estavam sendo construídas somente em número de três e ainda inacabadas, nada pronto, tinham toda sorte de falhas construtivas, ia desde a cobertura com palhas, no projeto pedia telhas de fibrocimento, como o afastamento das réguas do piso de mais de dois dedos de largura, com tábuas de 3ª, até o tipo de portas e janelas, que no projeto, pedia uma coisa, e no local haviam feito tal qual as construções regionais, tábuas verticais travadas por duas travessas laterais e uma em diagonal, com dobradiças e ferrolho, muito diferente. O piloteiro, o mesmo que me trouxe, foi quem conduziu a canoinha pelo Igarapé Humaitá, totalmente desconhecido por mim, também ficou abismado com a localização das construções, no meio do nada, para acessar as casas, cada um que fizesse o seu, depois de ganha-las, no momento ela não tinham a menor condição de acessibilidade, chegamos até lá na base do terçado abrindo caminho. A área da construção das casinhas estava dentro das terras indígenas, e que por ali, ainda existiam integrantes do povo Arara, quando soube disso, já estava lá dentro da casinha, me aperreei, tinha sofrido uma experiência não muito agradável com os Waimiri-Atroari, povo que se denominam de kinja (gente verdadeira), na BR-174 km 120, não queria saber mais de índios, me apressei, vi o que podia ver, bati todas as fotos que precisava e “capei o gato” o mais rápido possível.

No retorno à Cruzeiro do Sul, resolvi puxar conversa com o piloteiro que havia sentado ao meu lado, já que o novo barco com toldo, cedido pela Prefeitura rebocava o pequeno bote de alumínio, e com isso, deixava o piloteiro sem função, o Prefeito havia destacado um funcionário da Prefeitura para nos levar. Aproveitei e perguntei-lhe: - “Como é que ele e seu bote haviam sido escolhidos para ser o meu guia e transporte?” Iniciou gaguejando, mas findou dizendo que: - “Primeiro, o bote não era dele, segundo, lhe mandaram de qualquer jeito”, então é isso, fora pego de última hora, continuo contando que o combustível tinha sido ele que completou, porque achava que a gasolina do tanque, não daria para toda viagem, viu também, que não tinha nenhum remo, e foi falando e eu começando a entender a história toda, ao final, contou que até viu outro barco melhor que este, pensou que íamos nele, mas, preferiram me mandar com o senhor nesse aqui, me pediram para não lhe dizer nada, até me pagaram adiantado, - Ah Também retiram da caixa de ferramentas, o outro hélice sobressalente que havia, dizendo estar precisando para outro barco com problema. Compreendi finalmente que os caras armaram para me ver passar aperto, era proposital, não queriam que eu chegasse até o destino e ver suas “obras”, eles apostaram que eu atestaria sem ver, sabiam que não haviam produzido nada significativo, fizeram de tudo para que meu acesso ao local desse errado:

1- Me arranjaram um barco precário sem toldo (cobertura),

2- Combustível insuficiente,

3- Sem remo,

4- Piloteiro sem muita experiência,

5- Nenhum hélice sobresselente,

6- Nenhum equipamento de segurança,

7- Nenhuma garrafa d’água.

Fechou! mas logo comigo? Erraram feio, - Mas então, porque mesmo assim fui? É difícil recusar o transporte que todos usam na região, que alegação faria? Diria que estava com medo? Enfim, aceitei por saber que seria uma viagem curta, precisava ir naquele dia, se não fosse, retornaria sem resultado, e gastaria recurso sem cumprir a missão. Além do mais, nunca atestei nada sem ver de perto, não foi à toa que sempre fiz questão de ir em qualquer lugar, mesmo os mais longínquos e inóspitos. (continua no próximo capítulo #3)

Molar
Enviado por Molar em 06/06/2021
Código do texto: T7273001
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