Supersticiosos
Há muitos anos, na década de setenta, estava procurando emprego, difícil para mim, encadernador artístico.
Numa rua pequena vi uma placa de encadernadora. Precisavam de um oficial. Na frente um rapaz mais ou menos da minha idade carregava para dentro livros e alguns pacotes.
Soube que ainda não Iussef encontrara funcionário, que precisava com urgência. Me apresentei e fomos conversar. Ele me explicou que estava mandando o serviço para a encadernadora do seu tio e lá não sabiam costurar livros à mão e ficavam mal-acabados. Ele me confiou que não entendia nada do assunto e a firma do tio era comercial. Disse a ele que diferença entre a encadernação comercial e a que ele precisava era muito grande. Os livros tinham que ser costurados à mão e em bastidores.
Assim combinamos que eu começaria no dia seguinte.
Compramos o material que precisava e mandei fazer os bastidores. Quando comecei a costurar os fascículos ele ficou surpreso, não entendia nada do assunto.
Tudo foi caminhando bem Iussef era de origem árabe e fizemos amizade rapidamente.
A firma foi caminhando bem e logo tinha dez funcionários aos quais fui ensinando o ofício. A empresa engrenou, ele era dedicado aos negócios, aprendeu rápido e arrumou muitos fregueses. Naquela época lançaram muitas obras em fascículos que as pessoas compravam semanalmente e mandavam encadernar. Nas bancas de jornais era difícil não haver placas de 'Encaderna-se Fascículos'.
Fui morar perto da oficina. Ele morava perto e seus parentes e conhecidos apareciam sempre para tomar um café e jogar conversa fora.
Eu já era uma espécie de gerente e coordenava tudo enquanto ele buscava o serviço e fazia entregas em bancas e shoppings. Ao final da tarde íamos tomar café numa padaria próxima, onde sempre encontrávamos seus colegas de infância e amigos.
Uma tarde estávamos lá quando chegou o senhor Ahmed, pessoa brusca e pouco simpática. Entrou na padaria um cachorrinho de rua e o cheirou. Ele deu um chute no animal que praticamente voou longe. Sempre gostei de animais e falei que um dia encontraria quem lhe fizesse o mesmo. Várias pessoas ouviram-me e estava feito o estrago.
Dias depois Iussef chegou esquisito, me olhando de maneira diferente. Perguntei o que aconteceu e me disse:
- O senhor Ahmed. Um carro passou sobre o pé dele e esmigalhou. Nem nas Clínicas deram jeito. A encadernadora ficava perto do Hospital das Clínicas de São Paulo.
Continuou:
- Ficou aleijado. Vovó Rima diz que foi a sua boca. A rua inteira sabe da praga que você rogou.
- Como assim?
- Ela falou que você é perigoso. Tem boca dura e língua pesada. A praga pegou e quase o matou.
- Não acredito que você...
Ele continuou:
- Que é pra ter cuidado com nosso nome na sua boca. Tá todo mundo falando.
Ele saiu e logo apareceu Alberto, seu amigo de infância de origem italiana.
- Nelson, o senhor Ahmed ficou mesmo aleijado.
Baixou os olhos e continuou:
- A 'turcaiada' (era assim que se referia qualquer um de origem árabe, fosse de que país fosse) comenta que o senhor Ahmed já se sentiu diferente à hora que saiu da padaria. Sabia que alguma coisa ruim ia acontecer com ele. Maldisse a hora que te encontrou aquele dia.
- Mas eu só falei aquilo na hora da raiva, por ele ter chutado o cachorrinho.
- Não é isso que ele diz, fala que já saiu da padaria com um peso, um mal-estar.
Conversamos mais um pouco e ele foi embora. A partir daquele dia comecei a sentir a desconfiança dos moradores da região. Todo mundo se conhecia e as fofocas se espalhavam com a rapidez das mídias sociais de hoje.
Percebi que já não me tratavam como antes. A mãe de Iussef já não me chamava para tomar canja ou comer um kibe, muito bom por sinal. Também não me chamavam para o café da tarde na padaria. O serviço aumentará muito com os lançamentos de outras editoras, o que desviou um pouco minha preocupação. O falatório foi perdendo a força. Mas a pausa durou pouco. Sempre há um, mas.
O dia que nós recebíamos vale era sábado e na sexta feira eu perguntava a cada um o quanto queria. Notei que Iussef demorava a aparecer no sábado para entregar o dinheiro. Resolvi perguntar porque a demora. Ele me disse:
- Eu fico com dó de pagar os vales, vocês não guardam, não economizam, gastam tudo loucamente.
Eu estava com uma faca de desmanchar livros e sem pensar falei:
- Ah, é assim é? Eu não sei onde estou com a cabeça que não te enfio essa faca até o cabo.
Ele arregalou os olhos, me encarou e quase correu para a rua. Eu disse aquilo brincando e o que aconteceu depois me marcou muito.
Na segunda feira não apareceu para abrirmos a oficina. Telefonei para sua mãe e não atenderam. Isso não era incomum naquele tempo. Incomum era funcionar sempre. Mandei um rapaz ir até a casa dele saber o que aconteceu. Ele voltou e disse que Dona Sorrayla viria falar comigo. Logo ela chegou com Dona Rima, a mãe dela. Não entraram e ela foi logo falando, com o sotaque bem carregado, que o filho estava muito mal.
- Não o que você 'fazerr' com meu 'filha'. Meu 'filha' está com 'hemorróóida' de forra, passa ruim, você faz malefício 'bra' ele. Mas não ficar assim não. Ibrahim falar (o marido). - Mandar ele 'emborra', antes de 'matarr' gente. E ela continuou:
- Na minha 'terrra' gente da boca 'durra' e língua pesada apanhar da 'chacote' (chicote) na 'braça' (praça) até 'vumitar' maleficio. 'Badre' (padre) bate e bate mesmo com 'chacote'. Aqui não saber como fazer. Só tem 'macumbis' (macumba) aqui.
Dona Rima me olhava de soslaio ao ajeitar a burca (espécie de capuz preto). Então chegou Alberto e ficou aparvalhado ouvindo aquilo.
- 'Bor favorr, deixarr' meu filha em paz.
E se foi como chegou, com a mãe pelo braço .
- Você tá enrascado, mais baixo que barriga de cobra. O que você vai fazer?
- Não sei.
- Eles são supersticiosos, ainda mais os velhos. Na minha família é assim também. Minha avó diz que decerto você tem "mallochio" (olho ruim) em italiano. Diz que é difícil ver homem assim, mas que é mais perigoso que bruxa na terra dela. Eu falei:
- Você viu, estava brincando com ele.
- Mas há o caso do senhor Ahmed. Eles acreditam nessas coisas. Às vezes até eu fico na dúvida.
- Isso vai mal, muito mal.
A situação foi piorando. Quando Iussef, percebi que o melhor era ir embora.
Dias depois passei lá só para me despedir indiquei Luísa, uma moça que trabalhava bem para ficar no meu lugar. No portão ela me disse:
- Já sei como pedir aumento para o Iussef.
- Como?
- É só falar de uma faca até o cabo.
Pensei um pouco e maldosamente disse:
- Não vai funcionar.
- Por que?
- Porque eu tenho poderes. Você não.
E bati o pé com força no chão. Ela entrou correndo, sem nem dizer até mais. Nunca mais os vi.
Tem gente que não aprende mesmo, dizia minha avó