A FOTOGRAFIA

(Cléa Magnani)

Angela ainda conservava alguns pertences que sua mãe trouxera da sua juventude. Numa pequena caixa de madeira forrada de tecido, agora amarelado e manchado pelo tempo, estavam as lembranças, que Luiza algumas vezes mostrou para as filhas ainda crianças, contando acerca de cada objeto, ou cada fotografia preto e branco que ali estavam, histórias que agora, acometida de Alzheimer, já não lhe diziam mais nada.. Carmem pegou, entre os guardados, a fotografia de um rapaz fardado para a guerra e lembrou-se de uma vez, que mexendo na caixinha, perguntou à sua mãe sobre aquela foto. Luiza lhe disse que quando os soldados vindos do Sul do Brasil para engrossar as topas Paulistas durante a Revolução de 1932, após desembarcarem na Estação da estrada de ferro Sorocabana, o Comandante pediu que as pessoas enchessem os cantis dos soldados que pararam à sombra das árvores da rua. E que quando ela veio com um jarro enorme e encheu alguns cantis, aquele rapaz segurou na sua mão, pediu que ela esperasse, e lhe deu uma foto que mostrava um rapaz aparentando uns vinte anos, com o capacete típico do soldado de batalha. Seu olhar um tanto sonhador, demonstrava um misto de entusiasmo e ignorância dos que não sabiam o que era estar numa Guerra...Nas costas da fotografia, apenas um número de telefone e a promessa: “Quando a luta terminar eu virei te ver. Jorge.” Nada mais. Luiza casou-se oito anos depois, e viveu muito bem nos quarenta e seis anos de casamento com o pai de suas filhas.

Mas porque Luiza ainda guardava aquela foto? Quem seria aquele rapaz?

(Deomídio Macêdo)

O soldado Jorge ao tocar a mão daquela jovem, quando a mesma enchia o seu cantil, sentiu seu corpo estremecer, o coração palpitar e ao perceber os olhos verdes, penetrantes, daquela linda garota, ficou hipnotizado e Luíza pressentiu a mesma energia. Seus lábios tremiam de emoção ao ver aquele jovem soldado. Seria amor à primeira vista? Não sabia dizer. Mas gostava do que sentia. Por uma impulsão, ela beija o rosto do rapaz, quase a lhe tocar os lábios e antes mesmo que ela pudesse se afastar, o moço a segura fortemente e beija a sua boca quase infantil. Naquele exato momento entrega a Luíza uma foto com a mensagem e o número do seu telefone, com a esperança de algum dia poder encontrar com ela novamente. Ao tempo que pergunta: Qual o seu nome? A menina responde encantada: Luíza. Os anos passam céleres. Várias vezes Luíza ligou para aquele número sem nenhum sucesso. Agora, viúva e acometida por Alzheimer são as filhas Ângela e Carmem que dedicam o tempo todo à mãezinha querida. Quando elas mostram a caixa de madeira com as fotografias, a única lembrança que vem a sua mente, é a foto do soldado desconhecido. Então ela sorri e beija a imagem amarelada pelo tempo. Luíza tinha um tratamento extraordinário. As filhas não se descuidavam dela de forma nenhuma. Procuravam os melhores especialistas da área como: neurologistas e psiquiatras para dar o melhor conforto para a mãezinha, que cuidou tão bem delas. A família, certa noite, estava assistindo televisão, quando um senhor psiquiatra, em uma entrevista, falava justamente sobre a doença Alzheimer. Quando de repente, com lágrimas nos olhos, Luíza aponta para a TV e pergunta: É o Jorge?....é o Jorge??....

(Alberto Vasconcelos)

Em pleno fragor da batalha, Jorge Garibaldi, demonstrava toda a bravura que herdara de seus ancestrais Giuseppe e Anita Garibaldi. Não tivera a oportunidade de conhece-los, pois, quase 100 anos separavam as suas gerações, mas as muitas histórias familiares, repetidas mil vezes, quando a família reunida em torno do fogão à lenha nas noites em que o Minuano gelava as coxilhas, fazia o seu sangue ferver de emoção no desejo latente de lutar pela liberdade. Agora em terras paulistas, por sua bravura no resgate de combatentes feridos foi promovido ao posto de Cabo. No hospital de campanha, lutava ombreado com os paulistas contra a ditadura de Getúlio Vargas para devolver ao país a liberdade que só a democracia dá. A crueza das escaramuças com os soldados dos outros Estados que lutavam iludidos pela falsa propaganda separatista não era bastante para afastar de sua mente a bela figura de Luiza nem o perfume daquela menina moça que agora, para ele era mais importante do que a batalha. Depois do fim da revolução e da baixa do serviço militar, Jorge voltou várias vezes àquela região, mas procurou inutilmente por Luiza pois nem sabia o nome da rua, nem do sobrenome dela. Talvez ela pertencesse a uma das famílias de cafeicultores arruinados pela queda do valor de mercado do café, talvez fosse descendente dos diversos imigrantes e em ambos os casos deveria estar reclusa em casa, pois não era seguro estar entre os muitos homens que agora vagavam pelas ruas da capital. Ele não voltaria para o Rio Grande do Sul sem essa resposta. Sua vida não teria nenhuma razão de ser longe dela. Pela prática adquirida no hospital de campanha, foi fácil arranjar emprego na Santa Casa e matricular-se na Escola de Medicina.

(Aristeu Fatal)

Todos os dias 9 de julho, feriado estadual, Jorge não deixava de participar das comemorações da Revolução Constitucionalista de 1932. Guardava com carinho o uniforme que usou durante o combate, sempre bem cuidado! Com prazer e garbosamente participava dos desfiles comemorativos. Com galhardia desfilava ao som da Banda da Força Pública do Estado de São Paulo, como se chamava naquela época a Polícia Militar, tocando a marcha francesa que se tornou uma espécie de hino da revolução, Paris Belfort, de autoria do francês Antonin Xavier Farigoul. Ao ouvir a música ele estufava o peito, e se recordava de seus momentos mais inesquecíveis da batalha, exercendo suas funções no hospital de campanha, como naquele dia em que tombaram em combate os jovens Martins, Miragaia, Drauzio e Camargo, defendendo a causa constitucionalista, e se tornaram os primeiros heróis, formando a sigla MMDC, como ficou conhecida. Lembrava-se dos jovens quando deram entrada no hospital, mas já sem vida. E derramava lágrimas. Mas, jamais deixara de recordar o beijinho que dera em Luiza, quando ela encheu seu cantil. De sua beleza juvenil, que invadiu seu coração. Formando-se médico, optou pela psiquiatria. Dedicado à profissão, tornou-se conhecido especialista, sempre dando palestras, entrevistas nos meios de comunicação. Após aquela apresentação na TV, Ângela e Carmem resolveram procurar o Dr. Jorge, na esperança de, pelo menos, ter um contato e dizer quem eram elas. Sabiam que ele era ligado, ainda, à Santa Casa, fazendo parte do corpo de professores da Faculdade de Medicina. Estavam assaz nervosas e com ansiedade, loucas para conhecer a antiga paixão de sua mãe. Como ele seria? Lembraram da imagem na TV, um idoso simpático.

(Cléa Magnani - final)

Motivadas pela reação de sua mãe ao ouvir o nome do Dr. Jorge Garibaldi, as duas jovens marcaram uma consulta para Luiza com ele, que havia se tornado uma sumidade em problemas demenciais. Dia e hora marcados, as três aguardavam na confortável sala de espera do imponente edifício em Pinheiros. A secretária, delicadamente ofereceu um café, chá ou água. Luiza sorvia aos golinhos o reconfortante chá de hortelã, sem imaginar quem encontraria na outra sala, enquanto Ângela e Carmem seguravam trêmulas os copinhos de café. Seria o mesmo Jorge? - Senhora Luiza Gonçalves, pode entrar. - anunciou a secretária - Aguardando na porta do consultório, Dr. Jorge sorria enquanto cumprimentava as três, que entraram observando a sobriedade acolhedora do belo consultório, onde na parede, junto ao diploma, numa pequena moldura, estava a Medalha do Mérito Militar ao lado de uma fotografia dele no tempo do Exército. Carmem fez um sinal para Ângela, que sentiu um arrepio ao reconhecer o mesmo rosto da foto das recordações de sua mãe. O Doutor iniciava a consulta de Luiza, que o olhava com ternura, como se as imagens de um distante passado bailassem em sua mente. Por alguns segundos ele a fitou e reconheceu aqueles olhos verdes que jamais esquecera. Com uma expressão de quem não acreditava em seus próprios olhos, segurando nas suas as mãos dela, perguntou: - Luiza???...- E ela respondeu : - Sim, Jorge! Te esperei tanto... A guerra acabou agora? - Os olhos do velho médico encheram-se de lágrimas ao perceber a gravidade do estado de Luiza. Que pena... A Guerra os havia aproximado e separado... e o Alzheimer destruíra toda a sua esperança de serem felizes juntos nesta vida...