O salvamento do afogado

Ademir tinha vinte e três anos e bastante apego à vida. Desde criança gostava de aventuras e de correr riscos tais como despencar morro abaixo numa bicicleta comum, nadar em águas desconhecidas, ou em lagoas cheias de sapos e cobras, mexer com bichos venenosos, subir em árvores muito altas e coisas assim. Arriscava-se, mas nem pensava em morrer.

Depois que cresceu e mudou-se para uma cidade grande, todo ano ele voltava à cidadezinha dos seus pais e passava as férias com eles. O município, muito pequeno, até hoje tem três "marcas registradas": um povo muito religioso e honesto, as plantações de "arroz de brejo", e as enchentes periódicas.

A zona urbana situa-se numa "várzea de aluvião" cortada no sentido longitudinal por um rio de apenas 30-40% metros de largura. E tem o Rio das Pombas, afluente que se junta ao curso principal muito perto da cidade. Esses dois rios têm o péssimo costume de sair da caixa dos seus leitos, quando chove um pouco mais que a média. Inundam as ruas, casas, plantações, pastagens, tudo o que há na região. Algumas vezes as enchentes são menores, outras são mais sérias e entram nas casas até a altura das janelas. Já aconteceu de cobrir o telhado até das casas mais altas, seis metros acima do asfalto da rua principal.

Naquele ano as férias de Ademir coincidiram com uma enchente pequena. Sobre a rua principal tinha pouco mais que um metro de água, suficiente para criar boa dose de transtornos aos moradores, mas dava também para se divertir andando de canoa pela cidade como se fosse em Veneza.

Sem nada para fazer, já que estava em férias, Ademir pegou emprestada uma bateira (*) e saiu remando sozinho, até chegar no Río das Pombas, num lugar desabitado onde costumava nadar, nos tempos de infância e adolescência.

Lá chegando, o cenário não era aquele antigo recanto convidativo nas tardes de calor. Ali, a profundidade normal é de um metro, metro e meio no máximo. Mas agora a superfície da água estava mais de sete metros acima do normal e espalhava-se pelo campo de futebol, arrozeiras e tudo mais, aplainando a paisagem com sua cor barrenta. Das margens do rio sobravam apenas duas fileiras de copas de árvores. E, entre essas linhas verdes a água ia muito mais rápido que de costume, formando torvelinhos visíveis na superfície.

Ademir teve a infeliz ideia de navegar sobre esse fluxo, seguindo o curso original do rio, enfrentando as águas revoltas e profundas com a frágil embarcação. O silêncio era sinistro e a bateira deslizava cautelosa sobre os remoinhos da correnteza. Qualquer imprevisto, como um tronco de árvore submerso, poderia por a embarcação a pique, e naquelas circunstâncias até mesmo um bom nadador estaria em sérios apuros. Uma coisa era nadar no curso d'água raso e manso, numa tarde de verão. Outra coisa, bem diferente, era vencer a correnteza nervosa do eixo de uma inundação.

E aconteceu o que era pra acontecer. A bateira bateu em um tronco submerso, virou, Ademir caiu na água. Começou a nadar, mas logo ficou cansado e suas braçadas não mais o mantinham na superfície. O corpo do rapaz foi ao fundo e voltou. Antes que pudesse tomar fôlego, os remoinhos o afundaram novamente e devolveram o corpo quase desfalecido. Por sorte apareceu alguma coisa boiando, Ademir agarrou e assim foi boiando rio abaixo, meio vivo, meio morto até enroscar-se na galhada de um salgueiro.

Quando alguém passou pela ponte, ali perto, viu o corpo e foi correndo buscar ajuda. Sem demora, apareceram quatro homens, com duas canoas, e eles resgataram Ademir e o colocaram sobre terra firme. Mas parecia tarde. Largado em decúbito dorsal, ele não se movia, não respirava, não dava qualquer sinal de vida.

Começou a juntar curiosos, logo umas vinte pessoas rodeavam o afogado, nenhum deles sabia o que fazer.

Nessa hora Ademir abriu os olhos, sentou-se, olhou em torno, estava cercado por um círculo de pessoas que o fitavam consternadas. Pôs-se de pé e caminhou alguns passos, parou, sentia-se estranho. A luz do sol estava diferente. Parecia prateada, tinha um brilho metálico, as cores haviam desaparecido e também não se viam sombras.

Viu-se fora do aglomerado de pessoas. Tentou falar com elas, mas elas não lhe davam atenção. Estavam atarantadas, olhando para baixo. Ademir não entendeu o que estava acontecendo. Resolveu ver o que as pessoas olhavam. Entrou na roda e viu a coisa mais estranha de sua vida: seu próprio corpo lá no chão, inerte, miserável como um cachorro morto.

Ouviam-se murmúrios: "Se afogou". "Conheço, é o Ademir, filho do Natale Vicenzo." "Acharam ele boiando ali na galhada do salgueiro." "Já chamaram a ambulância?" "Que ambulância? Aqui não tem ambulância." "Acho que nem boca-a-boca adianta mais."

Ouvindo as palavras "boca a boca", Ademir teve a ideia de fazer os procedimentos de ressuscitação, que conhecia de ouvir falar, de ver em filmes, e de ler algumas coisas nas revistas. Criou coragem, foi até o corpo e passou a pressionar o peito três vezes seguidas, depois tapava o nariz do afogado, abria a boca dele e soprava com força para encher os pulmões de ar. Fez isso umas cinco vezes, mas era como se não estivesse fazendo nada. Tentou rolar o corpo, para ele ficar de lado e escorrer a água dos pulmões, nas suas mãos passavam através do corpo. Foi nesse momento que ele percebeu que estava separado de seu corpo e que nada podia fazer de fato.

Os curiosos continuavam ali, atarantados, olhando e murmurando. Entre eles estava um conhecido, o Aristides Giovanella, com semblante angustiado. Era visível que ele queria fazer alguma coisa pra ajudar, mas por algum motivo não conseguia.

- Entra nele - alguém falou.

O espírito de Ademir olhou em redor mas não viu quem tinha falado aquilo.

- Entra nele e faz o salvamento - repetiu a voz.

Ademir procurou de novo, não viu quem estava falando.

- Quem é você?

- Não interessa. Entra logo no Aristides e faz o salvamento. ANDA LOGO, ADEMIR, ESTÁ FICANDO TARDE DEMAIS!

Ademir ficou nervoso, não tinha certeza de que tinha entendido direito, nem via quem lhe dava as ordens, mas resolveu parar de pensar e fazer como o desconhecido invisível mandava. Caminhou na direção de Aristides, abraçou, mas não sentiu a matéria do corpo dele. Contudo, um instante depois começou a ver as coisas pelos olhos do amigo. Olhou para baixo, o corpo desmaiado continuava lá. Sem pensar duas vezes, iniciou os procedimentos de ressuscitação, como tinha feito antes, só que agora estava dando certo. Sentia o afogado reagindo, tentando puxar o ar, querendo viver. Foi quando Ademir sentiu um puxão pelas costas tão forte que o arrancaram de onde estava, e por um instante perdeu os sentidos.

Quando recobrou-se, Ademir sentiu-se confuso, fez um esforço para entender onde estava, o que estava acontecendo. Estava novamente deitado, começou a tossir e jogar água pela boca. Sentia-se agoniado, fez força e puxou o ar para dentro de si. Quando conseguiu, abriu os olhos e viu a cara de Aristides meio palmo acima da sua, olhos arregalados de espanto.

As pessoas começaram aplaudir e abraçar Aristides, que aceitava os festejos em silêncio, sem sorrir e sem comentar.

Ademir foi levado ao posto de saúde, recebeu cuidados médicos e conseguiu se restabelecer às custas de soro, oxigênio, antibióticos.

Dias depois, quando o afogado - agora ressuscitado - já estava na casa dos pais, Aristides foi visita-lo.

- Oi, tudo bem?

- Tudo. Muito obrigado, Aristides.

- De nada. Como você está?

- Cada dia melhor. Entrou água no pulmão e tive um pouco de pneumonia, mas o médico do postinho deu um jeito nisso.

- Que bom. Se precisar de alguma coisa é só falar, certo?

- Certo, Aristides. Me diz uma coisa: o que foi exatamente o que aconteceu?

- Pra ser franco, não tenho certeza de nada. Você estava lá, afogado, eu estava pensando fazer uma respiração boca-a-boca, mas tinha medo. De repente, não era mais eu, ali. Parecia que um demônio tinha tomado conta de mim. Quando vi, estava lá, em cima de você, apertando teu peito, e você começou a vomitar água e tossir.

- Amigo, acho que o demônio era eu.

- É, eu pensei nisso.

- Me desculpa.

- Imagina, problema nenhum. Na hora eu estava mesmo precisando que alguém me desse um incentivo.

- É, acho que dei mais que um incentivo...

- Eu sei. Não sabia que existia esse tipo de coisa.

- Nem eu - disse Ademir.

- Coisa esquisita.

- Muito estranho...

- Não conta pra ninguém, tá?

- Tá. Mais uma vez obrigado, e desculpa.

- Tranquilo.

Se despediram e nunca mais tocaram no assunto. Nem cá, nem lá.

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(*) Bateira: canoa feita de tábuas, com fundo chato.

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VERSÃO escrita do ponto de vista de Ademir.

O SALVAMENTO DO AFOGADO

Nos últimos tempos passei a lembrar coisas da minha juventude como se tivessem sido sonhos. São lembranças nebulosas, mas recheadas de saudades e emoção.

Uma dessas memórias é do rio onde íamos nadar nos dias mais quentes do ano, o Rio das Pombas, braço do Rio do Oeste que se junta a ele bem próximo da cidade onde cresci. Ano sim, ano não, esses dois rios transbordam e inundam totalmente a pequena cidade de dois mil habitantes. Hoje não sei mais, mas naquela época para as crianças as enchentes eram uma dor de cabeça para os adultos, uma festa para as crianças e, para os meninos mais crescidos, um ambiente propício para aventuras.

Numa dessas enchentes, eu tinha vinte e três anos, estava passando férias na casa de meus pais. Peguei a bateira (*) de meu pai e fui canoar pela cidade, como se estivesse em Veneza.

Quando cheguei no Rio das Pombas, no lugar onde costumava nadar, o cenário era dantesco. As águas normalmente delicadas agora estavam revoltas e carregavam árvores inteiras arrancadas dos barrancos. O rio, de meros 10 metros de largura, e metro e meio de profundidade, agora extravazava sua “caixa” e não tinha mais margens. O que seria o curso original era agora um fluxo de águas revoltas ladeado por duas fileiras de copas das árvores mais altas. O silêncio era tenebroso.

Numa daquelas decisões inexplicáveis que nem mesmo o gosto pela aventura justifica, decidi descer o que seria o curso original do rio com minha embarcação frágil. Tão logo alcancei o que seria o meio do rio, me arrependi, mas já era tarde. A bateira ameaçava afundar a qualquer momento, e ali nem mesmo um bom nadador poderia garantir-se nos torvelinhos de águas barrentas. E aconteceu o inevitável. A bateira virou e fui ao fundo do rio. Os remoinhos me afundaram, me levaram para a superfície, me fizeram afundar novamente, e voltar, e afundar, e voltar numa agonia de morte.

Como sempre dizia minha mãe, eu tinha mais sorte que juízo. Pouco antes de passar por baixo de uma ponte, alguém me viu, jogou um galho de árvore que arranjou não sei como, me agarrei no galho e fui flutuando rio abaixo, semiconsciente. A pessoa correu para pedir ajuda. O galho enroscou num salgueiro e isso deu tempo para algumas pessoas virem com canoas me resgatar. E conseguiram, mas quando me jogaram na terra firme eu não conseguia mais respirar. Foram chegando curiosos e logo uma dúzia de pessoas cercava meu corpo inerte. Eu também. Olhava meu corpo jogado como se fosse um daqueles curiosos. Sentia-me estranho, a luz do sol estava diferente. Tudo estava prateado, as cores tinham sumido e também não se viam sombras.

Os curiosos falavam baixinho, como num velório: "Se afogou". "Conheço, é o Ademir, filho do Natale Vicenzo." "Acharam ele boiando ali na galhada do salgueiro." "Já chamaram a ambulância?" "Que ambulância? Aqui não tem ambulância." "Acho que nem boca-a-boca adianta mais."

Era certo que me davam como morto. Eles não sabiam como ressuscitar um afogado. Mas eu sabia; eu sabia mas não conseguia fazer nada. Não conseguia nem mesmo chamar a atenção deles. Eu conhecia a técnica teoricamente: devia tirar a água dos pulmões, soprar o ar para dentro, e apertar o coração para ele voltar a bater. Eu sabia, mas o que eu pensava eles não podiam ouvir, e eu olhava angustiado para meu próprio corpo ali estirado, inerte e desprezível como um cachorro morto.

De onde não sei, um relâmpago passou por meus olhos e resolvi obrigar um daqueles homens a ressuscitar meu corpo. Escolhi aquele que parecia ser o mais fácil de controlar. Era o Aristides Giovanella, que tinha sido meu colega de aula no curso primário. Ouvi alguém dizer "Entra nele".

Olhei ao redor mas não vi quem falou. E a voz repetiu: "Entra logo no Aristides e faz o salvamento. ANDA LOGO, ADEMIR, está ficando tarde demais."

Entendi que era melhor fazer logo como o desconhecido estava mandando. Fui na direção do Aristides e entrei nele. Por um instante fiquei perdido, mas logo comecei a ver meu corpo inerte pelos olhos dele. Me abaixei, segurei o nariz do afogado e soprei ar como toda força pela sua boca. E dei algumas pancadas no peito, com os punhos fechados. Não estava dando certo, mas meu desespero era absoluto. Os curiosos, que já eram mais de vinte, olhavam com olhos arregalados, sem saber o que dizer. E eu socava o peito e soprava ar na boca do morto, e gritava “acorda seu filho da puta, volta aqui, acorda!”.

Não lembro o que aconteceu nos momentos seguintes. Lembro, isto sim, de acordar de um pesadelo e ver que estava caído no chão, cercado por moradores da cidade, que aplaudiam e abraçavam o Aristides, e este parecia estar mais atordoado que eu.

Por muito tempo eu tinha somente umas vagas lembranças de todo o acontecido, confusas e sem muito sentido. Só tive a clareza de tudo muito tempo depois, quando criei coragem e conversei com meus conhecidos, pedindo que me contassem a história toda. Eles me olhavam de modo estranho, duvidando que eu pudesse ter esquecido aquilo tudo, mas sentiam minha sinceridade e contavam a história assim: alguém viu eu me afogando no rio e chamou os outros; pegaram canoas e me seguiram rio abaixo até conseguirem me tirar da água. Só que eu já tinha me afogado. Meus salvadores não sabiam o que fazer, mas um deles, o Aristides Giovanella, de repente endoidou e começou a fazer respiração boca a boca. Não parecia ele, gritando coisas e dando socos no meu peito até que eu voltei a respirar, meu coração voltou a bater.

Eles contavam a história, mas eu não contava a minha parte, a parte que naquele barranco de rio eu podia ver de fora meu próprio corpo sem vida. Nunca contei que eu mesmo entrei no Aristides e salvei a mim mesmo do afogamento. Conto somente agora, quase cinco décadas depois, porque na época precisei esquecer, para conseguir levar minha vida normal.

(*) Bateira: canoa feita de tábuas, com fundo chato.

Marco Antonio Mondini
Enviado por Marco Antonio Mondini em 01/05/2021
Reeditado em 13/12/2023
Código do texto: T7245734
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