O ASSALTO (do meu romance Zé Ninguém, retalhos de uma vida)
Zé continuaria sua vida profissional em hotelaria. Agora trabalhava no escritório central de administração de uma rede de Hotéis, que possuía vários hotéis espalhados pela região da Costa Verde. Exercia o cargo de contas a receber, mas especificamente cobrador. Lidava com agencias de turismo do Brasil e do mundo. Tinha grande facilidade em usar o telex, que era o meio de comunicação mais rápido e eficiente da época. Sua fluência em inglês escrito e falado o ajudava muito. Era correto em suas tarefas, cumpridor de seus deveres e horários e muito querido por um dos donos da rede, que era quem administrava os negócios da família tradicional a qual pertenciam os hotéis e não só os hotéis, mas uma grande quantidade te terras por toda a baía de Angra dos Reis ao sul do Rio.
Seu superior imediato era o tesoureiro, pessoa invejosa, perigosa e desonesta, mas que sabia, ou pensava saber fazer bem suas tramoias aplicando dinheiro da empresa em sua conta particular, em uma época de investimentos overnight onde os depósitos rendiam diariamente e os rendimentos podiam ser retirados a qualquer momento, o que lhe facilitava repor o dinheiro na conta do hotel rapidamente se assim precisasse. Intimamente, se preocupava com a ascensão de Zé perante a diretoria, pois ele era chamado diretamente para se reportar ao Dr. Marcos - administrador da rede e filho mais velho da família, O que provocava em Fernando, o tesoureiro, ciúmes e medo de ter suas armações reveladas e perder o emprego.
Sua inveja silenciosa de Zé crescia dia a dia. Afinal o colega já trabalhava ha alguns anos na empresa antes que Zé lá iniciasse e não se conformava em vê-lo ser chamado diretamente à diretoria pra fornecer números dos valores que a empresa faturara ou tinha a receber. Sua função, apesar de correlata a tesouraria estava mais ligada à contabilidade exatamente por ser uma das contas mais importantes do sistema contábil e que revelava diretamente a receita de todos os hotéis da rede. Zé tinha sua mesa de trabalho na sala da tesouraria por uma mera questão de espaço que não dispunha na sala do setor de contabilidade e também por estar a tesouraria localizada mais perto da sala do Dr. Marcos.
Naquele verão, a família resolvera lotear e vender uma grande área nobre na baía de Angra e cujas vendas eram feitas em dólares e em espécie - o que é proibido pela legislação sem que tenha passado pelos trâmites normais e legais, de maneira que Zé muitas vezes tinha que sair a receber valores nunca menores de vinte mil dólares, por ordem do administrador. Cercava-se de cuidados, pois sabia que corria o risco de ser assaltado ou até responsabilizado se isso ocorresse. Embora essa tarefa não fizesse parte de seu trabalho, não podia se negar a fazê-la, pois temia perder o emprego.
Dr. Marcos sempre o chamava em privado para lhe dar o endereço de onde deveria buscar o dinheiro dos negócios ilegais e clandestinos que concretizava. O que permitia a Zé alguma segurança, pois ninguém sabia onde ele iria quando tinha que se ausentar, nem mesmo Fernando, que, entretanto, não ignorava o fato da família estar vendendo os lotes e como as saídas de Zé tornaram-se mais constantes, tinha certeza que era ele quem recebia o dinheiro das vendas.
Zé chegou a recolher muito dinheiro antes que acontecesse o que ocorreu aquele dia.
Ele estava em hora do almoço e Dr. Marcos, que também confiava em Fernando, embora não tanto. Chamou-o a sua sala e lhe deu um endereço onde ele deveria buscar exatamente vinte mil dólares, pois “estava de saída e quando voltasse queria ter o dinheiro em mãos.”
Zé voltou do almoço, e antes mesmo que entrasse na sala onde trabalhavam ele, o tesoureiro, duas garotas e dois garotos que faziam serviços de boys todos presentes, Fernando falou em voz baixa, porém audível ao grupo o que ele teria que fazer e passou-lhe o papel com o endereço.
O empregado tinha algumas estratégias para se proteger do que pudesse acontecer e sempre funcionaram, pois ninguém, além dele e Dr. Marcos, sabiam o que ele iria fazer e onde, mas naquele dia tinha que ser diferente. Ele não se sentia seguro, ainda mais porque Fernando lhe entregara a mochila azul da tesouraria à frente de todos.
O fato o preocupava, porém antes de sair passou pela recepção e sem que ninguém percebesse encheu a mochila, onde já colocara um rolo de fita colante, com revistas que estavam sobre a mesa de entrada. Tomou um táxi e se dirigiu ao endereço no centro da cidade onde receberia o dinheiro. Levou consigo o recibo habitual assinado pelo Dr. Marcos, pois os documentos legais seriam depois registrados em cruzeiros, moeda da época, e num valor menor que o correspondente em dólares. Sonegação, simplesmente.
Quando a secretária do diretor da agência o chamou em sua sala e lhe entregou os diversos maços de notas, Zé, fingindo nervosismo, conferiu devidamente o valor, entregou-lhe o recibo, colocou-os na mochila diante da moça e passando a mão na barriga um tanto desconcertado:
- Desculpe querida, onde fica o banheiro, por favor?
- Primeira porta à esquerda no corredor – disse a moça com leve sorriso.
Ele tinha combinado com Fernando que quando estivesse saindo da agência o telefonaria para que o esperasse à porta do casarão onde eram as instalações da administração central dos hotéis, pois chegaria de táxi e talvez precisasse de cobertura ao descer.
Assim dito, assim feito. Zé chegou à porta da casa pagou ao taxista e Fernando, querendo aparecer para o chefe, pois ele e não Zé lhe entregaria o dinheiro pediu-lhe que lhe entregasse a mochila rapidamente pela janela do carro e Zé o fez. Surpresa grande para os dois quando um motoqueiro com um jovem na garupa, que certamente esperavam sua chegada encostaram ao lado de Fernando e o garupa colocando-lhe uma arma na cabeça tomou-lhe a mochila e arrancaram em velocidade.
Fernando empalideceu, correu para o interior da casa direto para a sala do administrador e anunciou alarmado o que acontecera, acusando imediatamente Zé por negligência “ou quem sabe cumplicidade no que acontecera” e ainda alegando que o bandido havia tirado a mochila das mãos de Zé e não das suas, que era o fato verdadeiro.
O táxi se fora, Zé não tinha nenhuma testemunha ao seu favor, e quando entrou na casa, Rosana sua colega de sala que escutara o que fizera Fernando, segurando-o pelo braço:
- Cuidado, o Fernando está colocando a culpa em você, todos já sabem o que aconteceu.
Zé foi chamado a presença do Dr. Marcos, que bufando de ódio e envenenado por Fernando, com o telefone às mãos, disse que ele teria que dar explicações a policia para quem ele estava ligando naquele momento a apurar o fato, e que “o culpado teria que aparecer”.
Zé calmamente, lhe perguntou:
- A que fato o senhor se refere?
- Ora! Você ficou maluco, Ou o que? - Respondeu Dr. Marcos irritado - está claro que alguém avisou aos bandidos da sua chegada.
- E porque teria que ser eu? - perguntou Zé – várias vezes saí com essa finalidade e nunca tive problema, não lhe parece estranho que somente hoje depois do senhor haver pedido ao Fernando que me desse o endereço e ele haver me comunicado à frente de todos, o que eu deveria fazer, acontecesse esse suposto assalto?
Dr. Marcos parou um pouco para refletir, e perguntou virando-se para Fernando:
- As coisas se passaram assim? - Fernando negou descaradamente.
E Dr. Marcos voltando-se para Zé:
- Suposto assalto?!, Como suposto assalto?
Zé então calmamente, desabotoando as calças tirou sob elas da cintura o cinto de vinte mil dólares que tinha recebido na agência e que cuidara de ir ao banheiro embrulhar nesta forma nas folhas de algumas das revistas que havia levado e vestir para que nem a secretária visse onde os carregava calmamente lhe disse:
- Os bandidos levaram a mochila cheia de revistas, eu pressenti que algo poderia acontecer, pois fugiu a nossa rotina e tomei minhas providências. Aqui está o seu dinheiro, confira-o, por favor. Entregou-lhe o cinto de cédulas, bem embrulhado e fechado com a fita colante.
Dr. Marcos não sabia o que dizer, queria se desculpar, mas não encontrava palavras, Fernando sentindo-se fuzilado por seu olhar baixou a cabeça e saiu da sala.
O fato repercutiu em toda administração onde trabalhavam uns cinquenta funcionários e em todos os hotéis da rede.
Serenamente, Zé voltou a sua sala sob o olhar de todos pelas salas onde passava e Rosana sua colega, que novamente escutara tudo e não gostava de Fernando, dando-lhe um abraço:
- Você é genial! Meus parabéns matou a cobra com uma pisada na cabeça, mas terá que tomar cuidado, pois os bandidos devem estar furiosos.
Claro que o fato foi apurado e a policia, depois de interrogar a todos, descobriu que um dos boys havia dado a informação aos ladrões. Ele lhes telefonara de um orelhão em frente a um bar onde o dono conhecia a todos que trabalhavam na administração dos hotéis, pois almoçavam em seu estabelecimento. Foi ele quem deu a informação que lhe parecera estranho que o menino usasse o telefone público em frente ao bar e não o telefone do hotel no dia do assalto.
Zé teve seu prestígio aumentado, mas não reconhecidamente em seu salário e tendo visto sua honestidade colocada em dúvida, decidiu e informou ao Dr. Marcos que não mais sairia para receber nada que não fizesse parte de sua função como empregado dos hotéis.
Quanto a Fernando, Zé simplesmente entregou a este algumas cópias de seu extrato bancário onde constavam os depósitos e as aplicações feitas em sua conta com o dinheiro dos hotéis, que ele retirara escondido da gaveta de Fernando e copiara, e tranquilamente:
- Você não passa de um canalha, covarde, traiçoeiro e ladrão, mas como tenho pena de sua esposa e filhos estou entregando a você estas provas de sua roubalheira, quando deveria entregá-las ao Dr. Marcos, que, aliás, merece um empregado como você. Você esqueceu que os cheques passavam pelas minhas mãos antes de chegar às suas, portanto eu sabia quanto deveria estar sendo depositado na conta do hotel. Seu cuidado em enrolar o formulário do depósito junto com os cheques antes de entregar aos boys para irem ao banco, chamou minha atenção, então passei a copiar também os cheques antes de lhes entregar.
Fernando empalideceu nada podia dizer ou fazer e teve que engolir calado, até porque não tinha certeza se Zé possuía outras cópias, assim conviveu com essa incerteza durante o tempo em que Zé permaneceu trabalhando na rede de hotéis, que para sua sorte, não foi muito.
Zé insatisfeito com o que acontecera, com receio da represália dos assaltantes e por não ter seus méritos reconhecidos, passou a procurar outro caminho enviando currículos para outras empresas, até que foi chamado à uma entrevista para trabalhar em um centro internacional de pesquisas onde mudaria sua vida para sempre.
(um dos capítulos de meu livro ZÉ NINGUÉM, RETALHOS DE UMA VIDA)