Queima do judas
Queima do judas (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)
Domingo de Páscoa! Tudo já estava pronto para as festividades da “Queima do Judas”, uma festa popular realizada em algumas cidades de Minas Gerais por ocasião do domingo de Páscoa. A tradição era fazer um boneco bem grande, de pano, recheá-lo com balas, amendoins torrados, bombons e outras guloseimas. Terminada a missa das dez horas da manhã, a banda de música tocava e colocava-se fogo no boneco. Algumas bombinhas eram postas dentro e com os estouros, a criançada corria para apanhar as balas, doces.
Marcos Fabiano era o encarregado de confeccionar o boneco. Dona Matilde, Dona Mara e Dona Cleonice eram as senhoras encarregadas de arrecadarem as balas, os doces. Júlio César estava incumbido de colocar as bombinhas, pois trabalhava em uma fábrica de fogos na cidade vizinha.
O pároco local estava com muita tarefa, pois receberia, naquele domingo de Páscoa, a visita do bispo diocesano. Ele não pôde acompanhar a movimentação do judas, mas sempre ficava informado dos preparativos.
João Gavião, um senhor muito conhecido na cidade, pois ele era comprador de ferro velho, miudezas e coisas obsoletas. Muito calmo, mas de vez em quando resolvia beber uma cachaça a mais e fazia alguns discursos nos bares. Falava-se que ele tinha uma grande vocação para ser político, pois, quando estava bêbado, discursava-se como um grande político. Tinha uma boa retórica, com belas expressões, lindas frases e até dizia poemas nos discursos.
Júlio César ainda não tinha aparecido para colocar as bombinhas. Foi comprovado que ele estava internado no hospital, com suspeita de gripe muito forte. As senhoras estavam preocupadas, pois, na falta de Júlio, ninguém mais saberia colocar as bombinhas e tudo parecia ter acabado. O padre ficaria nervoso e iria desapontar o bispo.
Não tendo outra alternativa, as três foram procurar por alguém que pudesse suprir a falta de Júlio César. Andaram bastante, mas não encontraram ninguém. Quando retornaram desapontadas, viram a presença de João, na porta de um bar, porém ainda não estava embriagado. Uma delas disse:
- Bom dia, Senhor João...
- Bom dia Dona Mara, Dona ... Repetiu a saudação a todas e retrucou:
- Qual o motivo do vai e vem das senhoras?
- Senhor João! Estamos apreensivas e correndo contra o tempo. Hoje, conforme sabe o senhor, é a queima do Judas. O Júlio está internado no hospital. Somente ele é quem sabe fazer a montagem. Nós não sabemos e estamos procurando uma pessoa que nos auxilie.
- Senhoras, caso eu sirva, podem contar com minha presença. Vamos, que eu resolvo o problema.
Agradecidas, elas saíram e foram para a igreja.
Gavião saiu logo em seguida, mas antes de ir, pediu uma garrafa da cachaça de marca cinquenta e um. Colocou-a debaixo do braço e caminhou para a igreja. Lá chegando, como estava com um paletó e gravata, ficou com vergonha da garrafa debaixo do braço e a escondeu dentro do paletó. Abotoou e foi logo ao encontro do padre. Foi saudado e recomendado para arrumar o boneco.
Com muita habilidade, ele o arrumou com muito carinho. De vez em quando, ele abria a garrafa e bebia um gole da bebida. Os olhos ficavam embaçados, mas logo melhoravam com mais um gole. E assim por adiante.
No momento da colocação das bombinhas, ele confundiu as pequenas bombinhas com a caixa de fogos de artifícios, que seriam usados na procissão noturna. Bastante embriagado, ele foi logo colocando as bombas de fogos que se enrolavam em papéis. Fez um grande rastilho, lubrificando com material combustível. Assim que terminou, chamou alguns homens que se vestiam com capas vermelhas e eram denominados da Irmandade do Santíssimo. Eles pegaram o boneco e o dependuram no local para a festividade, após a missa.
A missa estava prestes a começar. João saiu rapidamente e foi buscar outra garrafa de pinga. Voltou ligeiro e foi orientado para ele mesmo colocar fogo no boneco. Conforme protocolo, ele teria que acender o pavio no primeiro som de um foguete, que seria solto pelo sacristão da igreja.
Iniciou a missa. O pároco e o bispo estavam no altar celebrando a missa.
Do outro lado da cidade, um grupo de pessoas acompanhava uma partida de futebol. A partida era um clássico entre os times Atlético Mineiro e Cruzeiro. Seria a disputa final do campeonato mineiro. Por razões de segurança, a partida seria realizada na manhã daquele domingo. O grupo lá estava e fazia muito barulho.
João permanecia perto da sacristia. Olhava atentamente para o boneco. Via a garrafa da bebida e de vez em quando tomava mais um gole. Já ficava embriagado, mas mantinha a ordem de não falar sobre política, nem mesmo discursar para toda aquela plateia.
O tempo foi passando e João resolveu dar uma pequena cochilada de mais ou menos cinco minutos. A praça da cidade estava repleta de pessoas. Idosos, jovens, crianças, retratistas e até a emissora de televisão foi convidada para fazer a reportagem da “queima do judas”. A banda de música tocava as lindas canções durante a missa. Tudo caminhava perfeitamente. As crianças estavam comportadas e não viam o momento para buscarem balas, bombons, amendoins e doces. Tudo em paz.
Do outro lado da cidade, a partida de futebol estava animada. Gritos, xingamentos e outros palavrões. Estava quase terminando e tudo estava empatado. A tensão era grande, pois faltava menos de um minuto para o fim da partida. Se finalizasse a partida e com o resultado empatado, teria mais um jogo. A vitória era essencial para um dos times ser campeão. O juiz disse que não daria nenhum minuto de acréscimo. Era falta contra o time do Cruzeiro. O jogador atleticano já posicionava para a cobrança. Era praticamente cinco segundos para o término da partida. Foi autorizado para a cobrança. Com um belo chute, acertou a trave e logo a bola foi parar nas redes do time adversário. Foi festa, pois, naquele momento, o Clube Atlético Mineiro seria o campeão mineiro. Festa para todos e choros para os adversários. Pedro, um fanático torcedor do Atlético, da sacada de sua casa, resolve soltar um rojão bem forte, que foi ouvido por todos.
Já completamente embriagado, João acorda meio sonolento com o barulho do foguete. Sem pensar e virando toda a garrafa de pinga na boca, saiu meio cambaleando. Com uma tocha na mão e não se sabe como ele a ascendeu, os que estavam ali presentes viram João botar fogo na mecha. Imediatamente o fogo tomou conta do boneco. Ao invés de João ter colocado bombinhas, ele encheu o boneco de bombas de fogos de artifícos, que com o fogo, foram explodindo constantemente.
A missa foi interrompida. Idosos saíram correndo, crianças querendo pegar os doces, jovens se empurrando, componentes da banda de música saindo do local. A praça se transformou em estado de guerra. Bombas explodindo, pessoas caindo e algumas se ferindo. No meio dos estrondos, estava João, que conseguiu pegar o microfone localizado onde o coral estava. Então ele discursava e fazia longos e belos poemas. E as bombas explodindo.
Assim que terminou e foi solicitada a presença do grupamento do corpo de bombeiros, João foi levado para o hospital com muitas queimaduras pelo corpo. Não houve a esperada festa do judas, mas ficou marcada para o próximo domingo de páscoa, do ano seguinte.