O que devemos guardar os pães ou as serpentes?

O explicável, exemplificável e palpável torna o mundo muito mais seguro e azul, porém várias situações e acontecimentos não se explicam, não se exemplificam, não são palpáveis ou mensuráveis, fogem da lógica racional, sendo assim, vivenciá-las, ou contemplá-las pode tornar a existência mais obscura e incerta, ou do ponto de vista de outros, a torna muito mais verdadeira e interessante.

No final dos anos 80 residia juntamente com meus pais e minha irmã, em uma casa que possuía uma enorme área de terra, na verdade se trava de uma pequena chácara situada em um bairro suburbano da cidade onde nasci.

A casa construída toda em madeira de pinheiro araucária e imbuia, pintada na cor verde, com janelas de ferro de cor marrom, possuía três quartos, uma cozinha, uma sala, uma pequena dispensa que ficava entre a cozinha e o banheiro, além de uma varanda localizada na parte frontal da residência, entre a sala da casa e o portão de entrada, possuía ao todo sete cômodos.

Aos fundos da residência havia uma cobertura, com chão de terra, que abrigava um forno de tijolos, além de um espaço fechado, com assoalho de tábuas de madeira, que era utilizado como um pequeno galpão. Logo atrás da cobertura existia uma macieira, após ela um chiqueiro, ao seu lado direito um galinheiro com um grande pátio para galinhas, todo cercado por ripas de madeira de imbuia. Nesse pátio existiam muitas árvores frutíferas, dentre elas um enorme caquizeiro, logo atrás do chiqueiro, com um fruto que chamávamos de caqui café, devido à pigmentação de cor marrom que pintava o fruto internamente, lembrando partículas de café. Árvore essa onde subi para me abrigar de muitas coças, ou mesmo para ficar sozinho pensando na morte da bezerra. No mesmo pátio existiam limoeiros e tangerineiras, além de três grandes pereiras enfileiradas.

Ao lado direito da casa corria um gramado, onde minha mãe corava a roupa, também existiam três enormes laranjeiras enfileiradas. Ao lado esquerdo um grande araçazeiro e um pessegueiro. Todo o resto, depois das laranjeiras e mais ao fundo fazendo limite com o pátio das galinhas era de área para cultivo, com mandiocas logo após as laranjeiras, ao lado batata inglesa, descendo aos fundos do terreno, no limite com a cerca do pátio das galinhas, cultivávamos hortaliças, todo resto da propriedade era destinada ao cultivo de milho e feijão.

Sempre tive um sono agitado e muito perturbado, acordava gritando, por causa dos diversos pesadelos. Dormia coberto até a cabeça, mesmo no verão, pois tinha um medo tremendo do escuro e dos mistérios que imaginava que ele guardava. Somado a tudo isso, ainda existia a nossa conturbada vida familiar, ocasionada por brigas e embriagues. Muitas vezes saíamos no meio da madrugada, buscando abrigo na casa de meus avós maternos ou na casa de minha madrinha.

A vida não era fácil nem tranquila, mas estressante e insuportável. Lembro-me de poucos momentos aconchegantes junto dos meus pais enquanto era criança, mas os poucos que tive guardei. Com relação ao equilíbrio entre coisas ruins e boas, lembro-me sempre de uma passagem bíblica que diz: “ Que pai sabendo que o filho tem fome lhe dará uma serpente ao invés de pão? Bem, guardei os poucos pães e abandonei as serpentes. Assim a vida segue mais leve e feliz, quando se deixa o veneno e as picadas para trás.

Não conto isso por remorso, ou por não suportar a carga, ou ainda, por não ter me recuperado dos danos que sofri, pelo contrário, o que não mata fortalece e remeto-me a essas lembranças por que delas não me interessam as serpentes, mas sim, um dos poucos pães recebidos.

O usual para meu pai nos sábados era tomar banho, colocar a melhor roupa (passada a ferro por minha mãe), perfumar-se, pegar sua bicicleta barra circular e sair com destino a algum bar, ou para casa de alguma mulher. Saía lá pelas 16 horas do sábado e só voltava altas horas da madrugada, na maioria das vezes por volta das 03 horas do domingo. Porém, retornava bêbado, agressivo e sempre fungando como um animal ferido. Chegava gritando, chamando minha mãe por palavrões, chutando a porta, por muitas vezes nos tirava da cama, como eu era o mais velho e mais indesejado, sempre estava junto na dança dos loucos. Tudo isso acabava com gritos, choro, agressões e comigo intervindo, porém muitas vezes apanhando. Apanhava, mas sempre teimava! Essa era a nossa doce rotina de todos os sábados.

Lembro-me de poucos finais de semana em que meu pai ficou em casa conosco, sem beber, sem nos agredir e que não tivemos que pedir guarida para terceiros no meio da madrugada.

Em um sábado meu pai acordou com muita dor nas costas, havia se machucado durante a semana no trabalho, almoçamos e ele se dirigiu até a casa de minha avó, todos nós o acompanhamos.

Minha avó, Dona Romalina, fazia alguns benzimentos, dentre eles um que tinha o objetivo de curar machucaduras. Sempre me lembro das palavras e do ritual que ela repetia, presenciei muitas vezes ela benzer pessoas machucadas.

Com a nossa chegada, depois do relato feito pelo meu pai, ela largou sua cuia de chimarrão e apanhou um prato, uma pequena xicara, um pedaço pequeno de pano, agulha e linha.

Pediu que eu colocasse a linha na agulha, enquanto ela colocava água na pequena xicara e despejava no prato, logo após, depositava a xicara virada de boca para baixo no prato cheio de água.

Com a agulha e a linha em uma das mãos e, o pedaço de pano dobrado na outra, ela começava com o ritual , dizendo o seguinte para meu pai:

- O que que eu cozo?

Pergunta que ele respondia com a seguinte frase:

- Osso quebrado, carne rasgada e nervo rendido!

Logo após a entoação ela costurava o paninho por três vezes. Essas repetições seriam realizadas por três vezes iguais.

Ao final ela rezava um Pai Nosso, uma Ave Maria e um Creio em Deus (chamado por eles de Crendiospai). No dia seguinte, quando a água do prato tivesse sido sugada para dentro da xicara se comprovava que era machucadura e que estava curada ou, em fase de cura, caso ainda existisse dor se repetiria o ritual por mais alguns dias.

Como meu pai estava se sentindo desconfortável pela machucadura, não saiu e esse se tornou um dos poucos sábados que tivemos paz, pelo menos momentaneamente, jantamos, assistimos televisão, brincamos, rimos e por fim, como a cama de meus pais havia quebrado, fomos todos dormir na sala.

Por volta das 22 horas colocamos os colchões no chão da sala e deitamos todos juntos para assistir ao Supercine (Sessão de filmes exibida pela rede globo de televisão nos sábados à noite). Recordo-me que adorava ver filmes até altas horas, não lembro qual era o filme que assistimos naquele dia. Logo depois de acabar o filme, meus pais decidiram que era hora de dormirmos, então, desligamos a tv, as luzes e ficamos conversando de forma animada e, descontraída. Aquilo que acontecia era uma anomalia em nosso sistema. Meus pais estavam deitados no meio, eu do lado esquerdo e minha irmã do lado direito, estávamos de frente para a porta de entrada da sala, que dava na varanda, que por sua vez, ficava de frente para o portão de entrada, ao lado da porta, também na varanda, existia uma janela e ao lado direito da sala, outra janela, que ficava de frente para o gramado e as laranjeiras, logo após essa janela, seguindo pela beirada da parede da casa, existia uma pequena escada de madeira dando acesso à porta da cozinha.

Conversávamos e riamos, não lembro o teor da conversa, mas lembro da sensação, momentos raros na minha infância, muito especiais na relação conturbada, entre pais e filhos, que vivenciávamos. A alegria era imensa, enfim eu tinha aquilo que para muitos era corriqueiro, ou até chato, sem valor.

Em meio a tudo isso, escutamos que o portão de madeira na entrada da casa se abriu (estranho foi o calafrio que passou pela minha coluna, senti um frio gelar os dedos dos meus pés) nunca me inteirei do que sentiram meu pai, minha mãe e minha irmã, mas todos ficaram calados e paralisados, como se estivessem com medo de respirar, escutando os barulhos que se sucediam.

Logo após, ao rangido emitido pelo portão que abria, escutamos passos lentos atravessando os cerca de 4 metros de pátio, localizados entre o portão e a escada de dois degraus, que dava acesso a pequena varando em frente a casa. A varanda foi construída em alvenaria e toda revestida de caquinhos de azulejo, prática bem típica nessa região.

Após os passos que atravessaram o pequeno pátio, escutamos lenta e progressivamente os passos que subiam a escada e logo depois se dirigiam até a porta, eram passos de sapatos masculino, muito semelhantes ao que meu pai usava. Conhecíamos os sons dos passos dele, pois o aguardávamos acordados quando ele saía nos sábados.

Os passos vieram até a porta, onde a luz da rua permitia que víssemos através da fresta uma sombra parada á sua frente, ficou ali por alguns segundos, parada, estática, o que mais chamou a atenção foi que nem mesmo meu pai se moveu, ou falou algo visando saber quem era. Escutávamos nossa respiração, a noite parecia ter ficado muda, parecíamos estar no vácuo, então começamos a ouvir o respirar forte, muito similar aquele que presenciávamos meu pai emitir quando chegava alcoolizado em casa.

Ninguém se movia, então ouvimos três fortes batidas na porta, congelei! Sinto um arrepio agora que conto. O vulto então se moveu, o mesmo som dos sapatos do meu pai, caminhando lentamente pela varanda, passou pela janela, que tinha uma cortina com certa transparência. Um vulto alto, que parecia ter uma corcunda, ou carregar algo nas costas. Passou pela janela e saltou da varanda no chão.

Nesse momento meu pai levantou-se e correu até a segunda janela, que ficava na lateral direita da casa, de frente para as laranjeiras, continuamos a ouvir passos que iam lentamente em direção à porta da cozinha.

Minha mãe perguntou ao meu pai:

- Quem é zé?

Ele demorou um pouco a responder, os passos continuavam, ele disse:

-Meu Deus do céu, não tô vendo ninguém mulher!

Os passos seguiram lentamente, meu pai ficou ali parado olhando para fora, até que ouvimos aqueles passos, agora muito mais medonhos, subirem a escada de madeira que dava acesso à porta da cozinha e parar. Escutarmos, como se fosse ao nosso lado, aquele respirar ofegante e raivoso, que se concluiu com três fortes e assustadoras batidas na porta da cozinha.

Ninguém acreditava no que havia acontecido, meu pai disse que deveríamos dormir, sem preocupação, por que aquilo não era nada, nunca tocamos naquele assunto, até fui proibido de falar sobre, era repreendido quando entrava nesse causo.

Porém, sempre fui meio arredio e acabei por contar tanto para minha avó (Dona Romalina), quanto para minha madrinha (Dona Helena). Ambas concluíram que meu pai andava acompanhado de algo muito ruim, que se aproveitava da sua fraqueza pela bebida, por mulheres e por toda sorte de coisa mundana. Desta forma, quando resolveu não sair de casa, contrariando o seu costume de todos os sábados, aquilo que estava acostado a ele veio buscá-lo, para sentir a emoção da estripulia que ele fazia costumeiramente naquele dia.

Não sei o que aconteceu, porém sei que estávamos todos acordados e se foi delírio, foi coletivo, nunca pude explicar logicamente, esse e outros fatos que presenciei, mas também nunca permiti que dominassem minha vida, o que não se explica simplesmente não se explica e a vida segue seu curso normalmente.