MORRENDO E APRENDENDO

Paulistana, “caipira da Cidade”, sempre gostei muito de ouvir pessoas mais velhas (ou experientes) contando causos, histórias e costumes regionais, com o modo de falar de cada lugar; e vou colecionando na memória esses retratos da vida.

Vou contar um causo que ouvi do Seu Luiz, um baiano arretado, pedreiro dos bons, que jurou de pés juntos que o fato aconteceu mesmo com o seu pai, Seu Anginho (com G mesmo, pois o pai dele se chamava Angelo), e assim Seu Luiz, numa tarde, no final de um conserto que fazia em nosso quintal, depois de se lavar no tanque, se agachou, empurrou o boné pra cima da cabeça e me contou com sua voz calma e arrastada:

MORRENDO E APRENDENDO

No sertão da Bahia, por volta dos anos “quarenta e coisinhas”, caia a noite sobre uma choupana de barro coberta de folhas de palma, no sertão da Bahia, lá bem naqueles fundões de Meu Deus. O clarão do sol acabava de dar lugar à luz das estrelas e dos vaga-lumes, naquela noite que nem lua cheia tinha. Dentro da casinha de pau a pique, coberta de palha de coqueiro, uma tênue claridade produzida pelo braseiro do fogão de lenha e de uma lamparina num canto do quarto, iluminava bruxuleantemente uma cena comum naquelas paragens: a agonia de um quase defunto.

Cercado por homens que se preparavam para fazer a sentinela, depois do moribundo entregar a alma ao Criador, e carregar a sua rede mortalha até o seu destino final - uma cova já meio começada ali por perto - numa rede amarrada no canto do quarto de paredes de barro socado, o corpo desmilinguido do homem nos estertores da agonia, aguardava a Morte.

Desde a véspera o agonizante estava naquele estado de morre-não-morre, quase ia... mas não ia.

Como de costume nessa situação, a quase viúva havia preparado umas coisinhas pra comer durante a noite, e os mais chegados trouxeram umas garrafas de pinga, pra esquentar o frio da madrugada e espantar o medo de assombração.

Porém, devido a teimosia do morto em não morrer, as coisinhas já haviam sido comidas e a pinga já estava só um tiquinho na última garrafa. Até o pó de café já estava precisando moer de novo e não ficava bem ficar torrando café numa hora daquelas...

Já haviam rezado ladainhas e terços do rosário, o rosário todo, suplicado a Deus piedade sobre o pobre, para que ele tivesse uma boa morte, mas nada do homem morrer.

Foi então que alguém lembrou:

- Ele inda não se foi, pru módi que num tem uma vela na mão pra indicá o caminhu prele...

- I é issu mêmo, rapaiz! Cuma é qui eli vai incontrá u caminhu do céu sem uma luiz pra crariá o caminho?!

- Pois intão vamu colocá uma vela acesa na mão deli! Óh xente!

Ô cumadi, tem uma vela pur aí ?

- Tem não, cumpadi... tamu numa precisão da gota... nem vela temo...

- Intão nóis coloca a lamparina na mão deli!

- Não!!! Si derramá o óio da lamparina, vai pega fogo na rede, nas paia do teiado, na casa, i o disinfiliz vai acaba indo pro inferno aqui mermo!

-Virge Santa! Nem num fala uma disgracêra dessa!! Lamparina, num dá não!

- I si nóis ponhasse um tição di lenha do fugão nas mão deli, coa ponta acesa?

-Mas ‘cê tá é dodjo!!! Acha qui o pobre vai te força di sigurá o tição? Vai é bota fogo na rede, nas paia do teiado, vai pega fogo na casa....

- ...i o disinfiliz acaba indo pro inferno aqui mermo... – Completou quem já havia rejeitado a idéia da lamparina...

Nisso, “seu” Anginho, que da porta assistia calado o drama que se passava ali, teve uma ideia:

-I si nóis botasse uma brasa na mão dele...

-Home, seu Minino! Mais assim vai queimá as mão do difunto!!!

- Ispéra... dexa eu cabá di falá... – retrucou calmamente “seu” Anginho -... nóis pega um punhadu di areia, dessa qui fica na bêra das casa quano chóvi, coloca na mão do muribundo, i coloca a brasa por cima da areia. Até o calor chegar na mão deli, o pobre já encontrou o caminho du céu.

Aquelas pessoas simples encontraram naquela idéia simples, a única forma de solucionar o problema.

E assim fizeram: Alguém ajudado pela última claridade do ocaso, encontrou em volta da casa a areia lavada da chuva que escorria do telhado (quando chovia, evidentemente), e recolhendo um bocado de areia seca, ajeitando as mãos do quase morto sobre seu corpo com as palmas voltadas para cima, entrelaçaram seus dedos descarnados e encheram a concha formada pelo encontro das duas palmas das mãos, com a areia e colocaram uma brasa viva, retirada do fogão de lenha, por cima.

Todos os olhares se fixaram naquela claridade vermelha que, na falta de luz do quarto, iluminava fracamente o rosto do agonizante, na expectativa do que poderia acontecer, pelo inusitado da solução.

Quando o pobre homem sentiu a areia protegendo sua mão contra o calor da brasa, abriu com muita dificuldade um dos olhos e disse com um fio de voz e um fraco sorriso:

- É... cuma diz... o ditado...: Morrendo.... e... aprendendo.........

E morreu.

Cléa Magnani
Enviado por Cléa Magnani em 24/03/2021
Reeditado em 24/03/2021
Código do texto: T7214439
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