FASCINAÇÃO
FASCINAÇÃO
Um dia ela resolveu inventar uma receita diferente. Como tanta coisa que fez em sua vida, dedicou-se de corpo e alma àquela receita diferente e deliciosa.
Naquele dia haveria um sarau entre amigos músicos, com um lanche, onde cada um levaria “um pratinho”; ela se apresentaria cantando Fascinação e achou que seria uma boa ocasião para apresentar sua invenção culinária e receber as opiniões de seus amigos.
Se o prato fosse servido quentinho, certamente seria um sucesso. Então saiu em busca de algum artefato que resolvesse o problema. Próximo à sua casa havia um “bric-a-brac” onde ela passava de vez em quando e ficava vasculhando entre aqueles objetos antigos e cheios de história. Quantas coisas diferentes... Para o que serviriam? Por quanto tempo teriam sido usados? Quais as histórias de seus antigos donos? Eram abajures, malas, utensílios domésticos, cabides, instrumentos musicais, livros, móveis... E ela passava horas lá dentro observando, imaginando, sonhando...
Um dos objetos era o seu favorito; um velho piano de cauda. Ela o “namorava” havia muito tempo. Sonhava e se via tocando Fascinação em suas teclas amareladas pelo tempo em sua sala de apartamento, e nem notava a incompatibilidade entre o enorme instrumento e o local; nem avaliava a impossibilidade de fazê-lo entrar pela janela estreita do oitavo andar. Na realidade nem avaliava empecilho algum. Queria o piano e um dia ele seria seu!
Naquele dia porém, ela estava preocupada com o aquecedor para o seu prato e nem pensava no piano. Mas quando estava conversando com o dono da loja ouviu algo que a arrepiou: alguém tocava brilhantemente, a Valsa Fascinação “no seu piano”... Como que hipnotizada por aquele som e aquela melodia ela deixou o vendedor falando sozinho e aproximou-se do instrumento. No banquinho do piano um homem magro de cabelos grisalhos e terno bege, tocava “a sua música”. Ela ficou ali extasiada até o último acorde e gritou “Bravo! Bravo!” no final.
Surpreso pela manifestação o homem a olhou arregaçando os lábios num sorriso meio esquisito e iniciou a execução de uma vibrante marcha Norte Americana, que foi seguida de muitas e muitas execuções primorosas. Ao final de cada música, ele sorria e seus olhos muito azuis tinham um brilho estranho. Mas ela nem percebeu. Foram conversando e iam contando os porquês de estarem os dois ali naquele momento. Ela lhe disse que iria cantar Fascinação no dia seguinte, e que gostaria que ele fosse ao sarau, onde ela poderia “pagar” pela satisfação de vê-lo tocando naquele instrumento tão caro para ela, com a degustação de seu prato. Ele contou que era filho de pianista, que havia morado nos Estados Unidos, e que adorava tudo o que se referisse àquele país e gostava muito de tocar piano, tanto que vinha ali periodicamente e pedia ao dono para tocar um pouco; aliás, esse era um costume que cultivava havia anos: ir às lojas de instrumentos musicais ou onde houvesse um piano, como nalguma estação do Metrô, e tocar por horas....
Cada vez mais ela se sentia tocada por tudo o que acontecia. Talvez mais pela situação em que se conheceram do que por outra coisa qualquer, ela se sentia envolvida pela presença daquele homem. O clima daquela loja de antiguidades era mágico. Os olhos do pianista, azuis como os de um Príncipe de contos de Fadas, brilhavam quando ele falava sobre sua paixão pelos Estados Unidos e ele mostrava umas enormes fotos e um mapa de lá. Sua música a hipnotizava e ainda mais, ele tocava o “seu piano”. Era a realização do seu sonho. Ouvir aquele piano tocando, “falando” aos seus ouvidos ávidos de sons doces e agradáveis a conduziam a uma atmosfera de sonho.
Conversaram por três horas. O dono da loja ofereceu um aquecedor muito eficiente. O pianista prometeu que iria ao sarau. Ela comprou o aquecedor e voltou para casa.
Passou o resto do dia e o dia seguinte, revendo cada pormenor do prato, do funcionamento do aquecedor, decorou a letra de Fascinação e a cantarolou inúmeras vezes, o dia todo, durante o banho, e antes de adormecer ainda repetia mentalmente os versos da linda valsa.
Na noite seguinte ela estava bem bonita; caprichou na maquiagem; vestiu-se elegantemente combinando os mínimos detalhes, perfumou-se discretamente e se encaminhou para a reunião levando o seu prato, o aquecedor, a letra da música copiada num papel para prevenir qualquer esquecimento, e muita, mas muita emoção. Como uma garotinha que se prepara para o primeiro encontro ela tentava disfarçar a ansiedade arrumando tudo para estar quentinho para depois do sarau, quando degustariam os lanches e a sua iguaria. Procurava não demonstrar nervosismo, mas o tremor em suas mãos era evidente.
Pontualmente no horário marcado, o homem apareceu com o mesmo terno bege, o sorriso esquisito, o brilho estranho nos olhos azuis e o punhado de fotos dos Estados Unidos debaixo do braço. Os demais participantes o receberam amistosamente enquanto ele falava sem parar sobre datas, fatos e heróis Americanos, que ia confundindo enquanto arregalava os olhos e exibia os dentes um pouco grandes demais, num misto de sorriso e careta, evidenciando que algo nele não era muito normal...
Ela conservou-se na cozinha do local até o momento do sarau.
Houve o sorteio da ordem da apresentação e ela foi a primeira a ser chamada. Enquanto ela cantava emocionada, ele, parecendo não ouvir nada, com o olhar perdido no espaço ficava fazendo “não” com a cabeça, sorria e franzia o cenho como se estivesse conversando com um interlocutor invisível; esparramava e tornava a juntar as fotos e o mapa e parecia estar só, ali. Seu comportamento foi igual até a última apresentação. Não aplaudiu ninguém.
Ao final, gentilmente ele foi apresentado como convidado dela e convidado a tocar algo no piano do local. Levantou-se rapidamente colocou suas fotos sobre o piano e executou uma bela marcha Americana. Foi bastante aplaudido. Mesmo avisado de que serviriam os lanches, ele iniciou o Hino Norte Americano, como se esperasse que todos se levantassem e colocassem as mãos nos peitos.... Todos se levantaram mas se dirigiram para o local onde seriam servidos os lanches pois teriam horário para encerrar o evento. Ao ver que todos saiam, ele interrompeu o hino e foi para lá também, não sem antes pegar suas fotos. Rodeou a mesa e, como se pensasse não estar sendo visto por ninguém, começou a colocar partes dos alimentos que se encontravam sobre a mesa, nos bolsos das calças, misturando doces e salgados; e rindo freneticamente dizia que já havia comido dezenas, centenas de doces....
Ela, envolvida com a degustação de sua iguaria na cozinha, ao ser alertada do que acontecia com o seu convidado, discretamente o convidou a se retirar. E ele, sem discutir, como se estivesse acostumado a situações semelhantes, desapareceu noite a dentro com os bolsos cheios e as fotos debaixo do braço... E ela ficou sem saber o que pensar.... Seu Príncipe-pianista de olhos azuis havia desaparecido na escuridão da noite sem aplaudi-la nem provar de sua iguaria... Seu Príncipe virou Sapo...
Mas ela não era de se deixar derrubar por tão pouco. Continuaria a sonhar com seu piano e então, em seus sonhos o seu Príncipe de olhos azuis tocaria Fascinação só para ela. E a sala minúscula do seu apartamento se tornaria um suntuoso salão finamente decorado onde, movidos pela magia da música, ele a enlaçaria em seus braços e os dois, olhos nos olhos se deixariam levar pela melodia executada por dedos invisíveis, valsando pelo salão até desaparecerem rumo ao balcão banhado pela luz do Luar....
Ela tinha aquele poder de transformar Sapos em Príncipes...