A arte de sorrir
Meu avô era protético. Dentista prático. Jamais fora à academia, jamais estudou formalmente coisa alguma. Aprendeu sozinho a fazer dentaduras e as suas eram consideradas as melhores da região. Resistentes, bem feitas, capazes de atravessar décadas numa boca sem comprometer o visual do cidadão.
Seu Felintro aprendeu a fazer fazendo. Essa arte de melhorar sorrisos exigiu que alguém lhe fosse cobaia e para tal intento escolheu minha avó, Dona Lorde - como era conhecida. Uma mulher bonita, de olhos azuis e, submissa irremediável, enfrentou a tortura de ter todos os dentes arrancados para que o marido pudesse treinar a técnica.
Valeu à pena, não ficaram ricos, mas conseguiram ter uma vida boa, confortável e digna, fazendo sorrir todos os desdentados da pequena Taiobeiras. Ela o ajudava na produção, mas ele era o artista conhecido por todos. Isso era uma coisa muito comum naquela época. Muitas mulheres se submeteram a atos semelhantes para exaltar a situação social, política, artística, ou qual fosse a condição do marido. Era para o bem da família, então era aceitável.
Em tempos modernos dificilmente se encontrará outra dona Lorde por aí. Capaz de comprometer a própria beleza e qualidade de vida para que o marido aprenda um ofício que possa sustentar a família. Isso era dignidade! Isso era papel da mulher.
Hoje não. Ninguém mais quer perder dentes para agradar a quem quer que seja. Muito pelo contrário, está cheio de gente super a fim de “sorrir com a dentadura alheia”.
Não obstante ser a dentadura algo de extrema pessoalidade, há quem a empreste vez ou outra - no sentir de minha sogra. Ela usa tal expressão quando alguém se apodera de algo, ou alguma ideia de outrem a fim de promover-se. É muito comum ver pessoas em evidência por algo que não fizeram. É um livro que você encomenda e coloca seu nome como autor, é uma música que você compra (quando não furta), grava e vende como se sua fosse, é uma monografia que você apresenta e assume como sua mesmo sem ter escrito uma linha que seja, é uma aparência que você ostenta embora esteja atolado em dívidas para manter.
Mas a dentadura alheia, além de nojenta, pode não lhe caber perfeitamente. Ela lhe será desconfortável por toda vida. Imagine se declarar autor de uma obra que foi feita por outrem! Uma hora a máscara cai. Alguém perceberá que seu vocabulário não corresponde ao do “seu” livro, alguém perceberá que seu conhecimento é tacanho em relação à obra a que chama de sua.
Como em algum momento as mentiras que você sustentou por tanto tempo irão ruir. “Não há nada oculto que não venha a ser revelado” (Mc. 4:22)
Já não se fazem mais dentaduras como as de Seu Felintro, sob medida, resistentes e de excelente qualidade, como já não há mais mulheres como Dona Lorde. Há cada um com seu cada qual, e que cada qual aprenda a valorizar o que lhe é próprio e a respeitar o que é do outro, creditando de forma respeitosa, seja a obra, seja o trabalho, seja a aparência.
O segredo dos bons sorrisos é a honestidade. Nenhum sorriso é mais bonito do que aquele que não deve nada a ninguém.