Crônica da semana – Encontro na loja
Crônica da semana – Encontro na loja (José Carlos de Bom Sucesso – Academia Lavrense de Letras)
Tarde quente de sexta-feira. O termômetro da praça marca quase trinta e quatro graus. O sol, já bastante quente, fazia com que todos transpirassem o suor nos rostos e em outras partes do corpo. Uma pequena brisa suave soprava o ambiente. Pequenas folhas, minúsculos papéis e pequenos gravetos lentamente eram empurrados pela brisa, pois, lá ao fundo, onde os olhos ainda alcançavam, negras nuvens eram formadas e deveria haver chuva mais tarde.
Na loja de conveniência, logo ali na praça, onde se vende de tudo um pouco, dois senhores de aproximadamente oitenta e cinco a noventa anos de vida, se encontram e a longa conversa se estende:
- Olá, Sr. Joaquim! Quanto tempo não vejo o amigo?
- Que enorme prazer ver “ocê”, João das Garotas...
- Olha, amigo, não diz isto por aqui. Ali, na frente, segurando alguma coisa na mão, deve ser um envelope contendo dinheiro ou papeis de serviços dele, está o poeta da cidade. Ele tem ouvidos muito bons e escuta tudo. Imagine se ele escutar o meu apelido e contar para a Mariquinha?
- Oh! Aquele é ele?
- Sim, amigo. Ele está olhando para o nosso lado...
Apesar o calor infernal, sentando em um dos bancos da praça onde a visão era diretamente para a loja, o poeta estava lá. Trazia nas mãos um envelope pardo e dentro dele estavam alguns documentos. Eram recibos de contas pagas na agência bancária.
Um dos senhores estava sentado em um banquinho de madeira, no degrau acima da calçada. O outro, um pouco lento, quis sentar-se no degrau da escada, mas uma funcionária rapidamente trouxe outro banco e o colocou para que ele sentasse. Agradeceu e a conversa entre os dois foi longa.
- João das Garotas. “Vos me ocê” ainda está bem sacudido. Está gordo, de cores boas, não está pálido...
- Que nada, “boyzinho”, “tô” tomando muito remédio. Bebo quase vinte compridos por dia. Hoje eu saí e fui ao banco para fazer uma tal prova de vida dos aposentados.
- Uai! Coincidência, amigo! Eu também fui lá. Aquele guarda muito enjoado estava lá. Pediu para colocar minha penca de chaves na bandeja. Sabe que eu não gosto de mostrar minhas chaves para ninguém.
- Ainda guarda o patoá de alho, com cebola e fumo?
- Lógico, amigo. Sem ele como vou chegar nas garotas. O velho tem a simpatia...
- Eu é que sou o João das Garotas!
Devido à pandemia da Covid 19, os dois estavam de máscaras. As vozes não saiam bem, mas em um certo momento, um deles falou:
- Esse bicho está acabando com “nóis”. Não consigo respirar direito. “Tô” meio surdo, acho que é a idade. “Ocê” concorda, Boyzinho?
- É... Eu também “tô” na mesma opinião sua.
- Sabe, João. Eu casei mais duas vezes. Infelizmente as esposas morreram todas. Do primeiro casamento, tenho dois filhos. Do segundo, mais dois. Do terceiro, tenho uma menina. Ela “tá” com vinte anos. Mora na Capital. Arranjou um homem que trabalha no banco. Acho que casou ou juntou. Dificilmente ela vem aqui. Não “tô” sozinho não. Arrumei a Mariazinha. Ela ficou viúva. Conversei com ela e “tamos” juntos. Vou casar de novo. Ainda “tô” um touro. Por isso sou o Boyzinho.
- É, eu estou na contramão. Casei, fiquei viúvo. Não quis casar mais. De vez em quando, “ocê” sabe, tem a Marta, que vai lá em casa. “Nóis” tem um caso, mas minhas filhas não sabem não. Falo que vou à casa da sobrinha e elas acreditam. Fico em casa e recebo a visita da Marta. “ocê” sabe, né?
- Quem é a Marta?
- É a filha da Joana, aquela que foi sua namorada.
- É, amigo. Eu gostei muito dela. Ela tinha o beijo mais gostoso...
- Concordo, amigo. Eu também experimentei...
- Ah! Safado. Só não lhe dou um murro porque não aguento. “Ocê” namorou com ela também?
- Ué, amigo. Quando “ocê” viajava, eu dava uns beijos nela...
- Eu também namorei com a Manuelina. Ela também foi sua namorada.
- Então foi por sua causa que ela acabou o namoro comigo?
- Não sei...
- Eu queria pegar na sua mão, mas o bicho não deixa. Ando com um vidro de álcool no bolso. Tem hora que dá vontade de beber, mas a remedada não deixa.
- Eu, de vez em quando, bebo uma branquinha. É para rarear o sangue.
- Conta a sua vida, João?
- Eu, amigo, continuo o mesmo. Já conto com mais de oitenta e oito anos. Fiquei viúvo. Tenho os filhos e moro com minha filha. Já não tenho tanta disposição como antes. Sinto dores no corpo todo. Tem dia que dói a perna, tem dia que dói as costas. Vou sempre ao médico e ele me receita muito remédio.
João foi interrompido por uma funcionária da loja, que lhe trouxe um copo com água e dois comprimidos. Bebeu e pediu mais água. A funcionária, gentilmente, perguntou se Boyzinho queria também. Ele respondeu que sim, pois tinha comprido para beber.
Após tomarem os remédios, a conversa retorna.
- Meu amigo. Eu sempre sonhei com as garotas. Por isso tenho o apelido de João das Garotas. Namorei muito, tive muitas namoradas. Casei somente uma vez e fiquei viúvo. Lembro de todas as mulheres que passaram em minhas mãos. O amor é um só. Ele é verdadeiro. Poderão vir vários amores, mas o importante é aquele puro, aquele está dentro de cada um. Fui amado por minha falecida esposa. Amei muito a ela. Hoje, tenho os filhos, que são o meu tesouro. Estou esperando para ir ao encontro de Deus, quando Ele quiser.
Ouvindo a palavra do amigo, Boyzinho disse:
- Meu amigo. Eu também amei a minha primeira esposa. Não encontrei amor nas outras mulheres que tive. Hoje, espero o tempo passar. Tomo os remédios para viver um pouco mais para recordar de meu amor verdadeiro, que será sempre a minha primeira esposa. Meus filhos estão todos bem. Eles não precisam mais de mim. Trabalhei muito com o cabo da foice, da enxada, do velho e amigo carro de boi para poder educá-los. Estou velho. O tempo será curto para mim, mas eu espero o chamado de Deus. Lá, quem sabe, conseguirei ver minhas esposas e quem sabe ver a minha verdadeira esposa.
Como o vento soprava um pouco forte, pois as nuvens aproximavam-se rapidamente, o poeta levanta do banco em que estava sentado e aproximando dos dois, assim diz:
- “Sentados no banco, falando de amores,
Contam também os terrores,
Da morte que se aproxima,
Está perto, ali na esquina...
Um, que conta a vantagem
Outro, escuta com coragem...
Os anos vividos,
Em dois mundos distorcidos.
A confiança em expressar o amor,
Neste sol quente, neste dia de calor.
Assim é o Universo,
Que pode ser contado em um único verso.
O amor é único, é verdadeiro...
Não importa que seja o primeiro.
É o verdadeiro amor,
Seu Doutor...”
Saindo o poeta lentamente e não olhando para trás. Somente ouviu alguém dizer ser a crônica da semana.