Quem já colocou Judas na Sexta-feira Santa?
Algumas tradições, costumes e brincadeiras muito legais que existam em meu tempo de moleque estão desaparecendo na atualidade, ninguém mais joga bola de gude, pula corda, pula amarelinha, elástico, joga peteca (daquelas feitas com palha de milho e penas de galinha), até as tripas do porco que eram preenchidas com carne, miúdos, ou sangue de porco, para o feitio do chouriço e da linguiça, hoje foram substituídas por material sintético.
Algumas dessas mudanças vieram para melhor, mas outras nem tanto assim, hoje as pessoas conversam por celulares, não interagem, nossas crianças chegam a ser translúcidas por falta de sol e de poeira.
Eu pingava plástico queimado, motivo pelo qual tenho uma cicatriz de queimadura na parte de cima do pé direito, brincava de pega-pega (aqui chamado de mãe), motivo pelo qual tenho uma cicatriz no joelho esquerdo, fazia guerrinha de pelotas de barro vermelho e araçá, motivo pelo qual me lembro de uma coça que levei, quando acertei umas pelotadas valendo em minha irmã.
O fato é que vivíamos em outro tempo, que sempre diremos ser melhor do que esse que nossos filhos vivem, mas a grande verdade é que não existem tempos melhores, ou piores, o que existe é diferença, meu tempo de criança foi diferente do atual, mas por conta das lembranças felizes, ou tristes que possuo, sempre será o melhor tempo para mim, sempre puxamos a brasa para o nosso assado, isso é inerente a todos os seres humanos, mas se estivéssemos certos sobre ser esse, ou aquele tempo melhor, o que seria da evolução?
Dessas coisas muito legais que fiz enquanto garoto, lembro-me das expedições ao Morro da Cruz, onde exploramos algumas grutas lá existentes, que só depois de muito tempo fui saber se tratarem de paleotócas, subir o pequeno rio vermelho, com água pelas canelas e em alguns trechos pela cintura, até a ponte quebrada – uma antiga ponte que havia caído dentro do rio- os banhos de rio sempre foram escondidos de meus pais. De todos os costumes que cultivávamos, naquela época, um deles eu achava excepcional, a tradição de fazer um Judas e colocá-lo na casa de alguém, para que fosse malhado no dia seguinte.
Nunca gostei de malhar o Judas, enforcá-lo, tocar fogo, mas sempre gostei de confeccionar o Judas, fazíamos com roupas velhas de homem, as enchíamos com serragem, as vezes até com xaxins, sempre fazíamos em tamanho natural, também era costume deixar uma carta jocosa no bolso do boneco, endereçada a quem ele era destinado. O que mais me divertia era a pessoa tentando imaginar e descobrir quem deixou o Judas em sua porta.
Em determinado ano a Polícia Militar havia proibido a brincadeira, patrulhariam a cidade a noite toda, para que não fossem colocados Judas, ou pelo menos foi o que nossos pais nos disseram, quem sabe para evitar que saíssemos altas horas da noite para efetivar a brincadeira. Com proibição, ou sem ela, nós faríamos nosso Judas e colocaríamos na casa de nossa vítima a qualquer custo.
Passamos à tarde, na Sexta-feira santa, fazendo o coitado do Judas, pois nesse ano o Fernando (hoje meu compadre) queria se vingar de umas vizinhas suas – pia é bicho bocó, não acha como chamar a atenção da meninada, ou pelo menos naquele tempo era assim - arrumamos serragem, roupas velhas, paletó, até chapéu fizemos, a cabeça era feita de uma bola de plástico. Acredito que nosso amigo, Judas, ficou com mais de 1, 80 metros de altura, escrevemos a carta costumeira, onde o Judas pedia uma das meninas em casamento e ficamos aguardando a noite chegar para enfim colocar o boneco em seu devido lugar.
Deixamos bicicletas a postos para evitar barulhos à noite, pois sairíamos meio escondidos. Lá por volta da meia noite saí de casa, o ponto de encontro era uma pracinha, onde havia um local escuro, ela ficava bem próxima ao modulo policial (para os nossos objetivos um ótimo lugar para se encontrar portando um Judas) aos fundos existia um campo de pouso e decolagem, mas o principal motivo da escolha do local era a proximidade da casa das vítimas.
Chegando ao local encontrei o Ederson, Fernando, Marcelo e o Claudio, cumprimentei todos e perguntei:
-Cadê o Jeferson?
O Fernando respondeu:
- Tá vindo, ele vai trazer o Judas.
Quando concluiu essa frase escutamos o barulho de uma bicicleta que falhava quando se pedalava – problema típico de quando os rolamentos da caixa da bicicleta estão gastos - era o Jeferson. Ele havia modificado uma bicicleta Monark, barra circular, de cor bordo: colocou 18 marchas, um guidão reto e outras parafernálias, mas a manutenção não era das melhores. Chegou junto a nós com o judas amarrado á bicicleta, a cabeça estava no guidão, o corpo passava pelo varão, as pernas entrelaçavam no canote do banco, terminando amarradas na garupa da bicicleta.
Combinamos de aguardar um pouco ali, para evitar alguma patrulha da Polícia Militar, que poderia nos pegar com o Judas, tínhamos um medo de sermos pegos, pois além dos problemas legais, havia aqueles oriundos do laço que levaríamos em casa, diga-se de passagem, bem pior que o primeiro.
Enquanto aguardávamos para a execução da nossa ação militar coordenada, conversávamos, contávamos causos, imaginávamos a reação das meninas quando vissem o Judas e riamos muito da situação.
Escutamos vozes vindas da rua. Olhamos! Era um homem que falava de forma arrastada e gritava toda espécie de xingamentos e maldições, andando em ziguezague, se tratava de um bêbado. Ele não podia nos ver, mas nós o víamos.
Era uma noite fria, eu usava uma jaqueta, um número maior que o meu, feita com uma espécie de pelagem sintética de coloração cinza clara. Foi nesse momento, que decidi pregar uma peça no ébrio e saí uivando, fazendo grunhido e rugidos, o mais alto que conseguia, apoiei as duas mãos no chão, como se fosse um animal quadrupede e saí em direção ao homem.
Inicialmente não prestou atenção, mas quando percebeu, não esperou para ter certeza do que seria, empreendeu fuga, correndo de forma cambaleante e sumiu sem deixar rastros. Todos ajudaram nos efeitos sonoros, chegamos a deitar no chão para rir, nos divertimos muito à custa do cozido (como chamávamos os bêbados).
Resolvemos então seguir até a casa onde deixaríamos o Judas, no meio do caminho avistamos a viatura com o giroflex ligado, mudamos rapidamente o nosso rumo e saímos em direção a ruas próximas do Rio Vermelho, para nos esconder durante um tempo e depois poder concretizar, como diria minha avó, a daninheza. Imagina escapar da polícia por causa de um Judas! Isso duvido que acontecesse na atualidade e não falo pela perda do costume de colocar Judas. Tínhamos, ainda, uma tamanha inocência, para adolescentes com 14 anos de idade.
Chegamos até a última rua, que ficava bem no inicio do banhado do Rio Vermelho, seguindo pelo banhado o rio ficava a aproximadamente uns quinhentos metros. Uma rua escura, sem casas, local ermo, perfeito para ocultarmos nosso amigo Judas até que a polícia fosse embora.
Ficamos ali conversando, passando o tempo, rindo, já eram mais de uma e meia da manhã, toda aquela brincadeira e estratégia para evitar perder o boneco havia nos tomado tempo, teríamos que colocar o Judas o mais rápido possível, para voltarmos para nossas casas antes que arrumássemos encrenca. Odiaria passar a Páscoa com o lombo ardendo.
Estávamos conversando de forma bem descontraída, quando começamos a ouvir um barulho de mato seco quebrando no banhado, começamos a ficar quietos, para poder identificar de onde vinha. Parecia que algo corria de um lado para ou outro, quebrando o mato, Comecei a ficar um pouco desprovido de coragem. O barulho só fazia em aumentar e a chegar perto de nós, já tínhamos certeza que alguém estava no mato. O barulho cessou, ficamos quietos, nem respirávamos para ouvir o que estava acontecendo.
Na verdade estávamos todos com medo, mas como ninguém quer ser o primeiro a debandar, não quer admitir na frente dos outros que tá com um baita cagaço, coisa de orgulho masculino, diga-se de passagem, bem desprovido de lógica. Mas o barulho cessou, começamos a argumentar que era melhor sair daquela escuridão e ir colocar logo aquele Judas, mesmo com a Polícia por perto.
Quando iríamos sair, olhamos a viatura passando longe, mas bem na direção que seguiríamos, nos detivemos ali mais um pouco, mas eu não parava de olhar para aquela escuridão, estava desconfortável ali.
Escutamos então um rugido estridente, que parecia vir de perto do rio, estava longe de nós. Ninguém conseguiu identificar ao certo, já escutamos um barulho de mato quebrando e mais um rugido daqueles, que penetrava nos ossos, nada poderia fazer um barulho daqueles. Certamente não era um ser humano nos pregando uma peça, começou então uma sucessão de rugidos e de barulho de mato quebrando, como se algo nos rodeasse.
Eu tremia de medo! Quando olhei o Ederson, percebi que já se retirava do local e sucessivamente todos os outros. Não fui o primeiro a correr, mas alcancei e passei todo mundo. A coisa estava louca dentro do banhado, o som do rugido era horripilante.
Mas o que mais foi engraçado, lógico que depois de passado o perigo, era que se ouvia a bicicleta do Jeferson falhando, enquanto ele tentava fugir. Além da bicicleta que estava ruim, ele ainda tinha o Judas amarrado à bicicleta, o que não facilitou em nada para a sua fuga. Ouvíamos o Jeferson gritando:
- Piazada do djanho! O bicho tá perto! Me ajudem com o Juda!
Mas ninguém parou. É como se diz: “Quem tem, tem medo.”
Ouviam-se cada vez mais distante os gritos:
- Djanho! Me esperem o bicho tá brabo! Tá loco piazada!
Chegamos rápido até um gramado, que ficava em frente à casa do Ederson, largamos as bicicletas e deitamos na grama, dávamos muita risada. E logo já ouvimos a bicicleta que falhava, era o nosso amigo chegando. Ofegante e reclamando:
- Vocês são tudo uns cagão, me deixaram pra trás, não quero mais papo!
Recuperamos o folego e a amizade do Jeferson. Apesar do “cagaço” que levamos, ainda assim, completamos a missão. Fomos até a casa e colocamos o boneco, com a carta e tudo mais.
No outro dia, no período da manhã, estávamos todos na casa do Fernando, que ficava em frente ao nosso alvo, na expectativa da reação dos moradores quando encontrassem o Judas lhes dando bom-dia.