Duro contra Duro: quebrará o duro mais mole

O campo e sua realidade bucólica, o verde, os pássaros, as lendas encantadoras, como por exemplo, dizer bom dia ao Bugreiro (Lithrea brasiliensis Marchand), quando se passa por debaixo de seus galhos, para assim evitar uma coceira terrível por todo o corpo. Dentre tantos outros costumes acolhedores que promovem uma sintonia com a natureza e com a divindade.

Em oposição a tudo isso estão aquelas realidades, costumes e histórias assustadoras, oriundas de uma má distribuição de recursos, educação e saúde, que levava e leva o homem simples do campo a viver sob o julgo daqueles, com mais poder financeiro e de educação, também os obriga, a condições precárias de saúde e de vida em geral. Considero que exista, ainda hoje, não só no campo, uma má distribuição de educação e não de conhecimento, pois existe a possibilidade de se possuir conhecimento, daquele popular, empírico e não se possuir educação, daquela formal, institucionalizada, que possibilita a um indivíduo participar ativamente da sociedade, entendendo seus direitos e deveres, podendo reivindicá-los, saindo assim das margens sociais.

Partindo do pressuposto, que se comete um erro Crasso, quando se afirma que esse, ou aquele indivíduo, não possui cultura, ou não detém educação, ou até, tem pouco, ou nenhum conhecimento, por que não possui efetivamente a nossa cultura, a nossa educação e o mesmo conhecimento que possuímos, ou valorizamos, conclui-se, que dentro de um mesmo país, de uma mesma sociedade, de um mesmo povo poderemos encontrar diversas culturas, educações e conhecimentos.

Recebi uma educação inicial, baseada em mitos e lendas, em histórias fantásticas de meus familiares mais próximos, em toda gama conceitual, que regia suas vidas no dia a dia, nos conhecimentos empíricos, como por exemplo: Céu azul, sem nuvens, em dias de inverno, significa geada na manhã seguinte. Observação essa, que quase sempre está certa aqui no Sul, nessas condições, quando não tem geada a temperatura cai muito. Dessa educação primordial e logo após apoiada na educação formal, parti para outras histórias, outros conceitos e, outros conhecimentos.

Partir, por exemplo, da frase repetitiva de meu avô paterno: “Pedras que rolam não criam limo.” Até chegar ao “The Rolling Stones” (As Pedras Rolantes), que com base na canção “Rolin’ Stone”, de Muddy Waters, deram nome a sua banda, chegando há pouco tempo atrás, durante uma palestra de Mário Sérgio Cortella, à realidade, de que o ditado repetido, insistentemente, por meu avô, mesmo sem ele saber sua real origem, é um ditado antigo e popular na Inglaterra, por isso, o interesse da banda inglesa na canção do músico de blues norte americano, que por consequência eclodiu no nome dado a banda, tudo isso partindo de meu avô, que não conhecia os Stones, muito menos o Mudy e tão pouco apreciava blues, ou rock. As culturas populares não são inferiores, não são besteiras, não são lorotas, são somente diferentes, muito contribuindo para a formação cultural dos indivíduos e da sociedade.

Depois das delongas conceituais um tanto, quanto mal formadas, sobre cultura, educação, conhecimento e seu desenvolvimento, compartilho a nona história relevante, que ouvi não só de minha avó materna, mas de outros familiares, como, por exemplo, de sua irmã, Dona Pelegrina, uma senhora que após o falecimento de minha avó, sempre me recebeu para tomar um café e prosear, nunca saía de lá sem ela apanhar alguns ovos no galinheiro e dá-los a mim, era uma demonstração de afeto. Sempre oferecemos aquilo que nos é mais valioso para aquelas pessoas a quem temos apreço.

Das mulheres da família Silva, que da ascendência materna provinham dos Dalprá, nasceram três irmãs: Romalina, Vírgulina e a mais nova, Pelegrina. A primeira, minha avó, a segunda conheci pouco, morreu antes das irmãs, mas lembro-me de que fui benzido por ela quando pequeno, a terceira e mais jovem, tia Pelegrina, tinha a pele mais clara do que as outras e também os olhos azuis, dizia minha avó, que fora uma moça muito bonita, também que havia saído a família da mãe, que era de origem italiana. A lembrança que tenho delas é de sua velhice, tanto Pelegrina, quanto Virgulina usavam lenço na cabeça e vestiam calças por debaixo das saias, minha avó já destoava desse costume.

Existia uma história, que não era uma magoa, nem ocasionava uma desavença entre minha avó e Dona Pelegrina, mas que as duas contavam com muita naturalidade. Quando jovens estavam interessadas no mesmo rapaz, de nome João Estácio, que após, veio a se casar com Pelegrina, quando o conheci já era um homem velho e cego, de quem tenho poucas lembranças, pois faleceu quando eu era muito novo.

A família Estácio, na localidade do Jararaca, interior do município paranaense de Paula Freitas, crescia muito na época em que João Estácio casou-se com Dona Pelegrina, contava-se, que João, no dia do casamento estava preso, pois era valente e decidido, um homem jovem e forte, que não costumava levar desaforo para casa, envolvera-se em uma briga feia, em um baile, na noite anterior ao casamento, foi solto, como diziam os familiares, para se casar. Mas essa característica do Caboclo rude e valente que “desmanchava baile” é muito comum como apontamento de caráter do homem interiorano.

Sempre levava, ao menos é o que se conta, seus negócios com mãos de ferro, adquiria terras, era bom com números, dominava as operações da matemática, o que era bom, principalmente em um tempo onde muitos não possuíam uma educação formal de qualidade, seu tino para os negócios, aliado a muito trabalho, trouxe à família Estácio alguma prosperidade.

Passado algum tempo, minha avó já residia no Porto, assim como Dona Vírgulina - chamavam-se de Porto, pelas pessoas interioranas, as duas cidades limítrofes: a paranaense União da Vitória e à catarinense Porto União, pelo fato da região, onde estão situadas as duas cidades, terem sediado um porto fluvial no final do século XIX e início do XX, quando o Rio Iguaçu era utilizado para escoamento de produtos – Pelegrina e João Estácio, meus tios avós, moravam ainda no interior de Paula Freitas, mas nesse tempo já possuíam alguns anos de casado e filhos, que já ajudavam o pai na lida do campo, plantavam roças de fumo, possuíam algumas terras, extraiam madeira, tanto lenha de bracatinga, por exemplo, para uso doméstico, quanto de madeiras usadas na fabricação de móveis e residências, oriundas de Pinheiro Araucária e Imbuia.

Conta-se que João Estácio era homem ativo, que se impunha com muita força para defender seus pontos de vista e suas posses, segundo sua própria afirmação tudo que conquistara era à base do sustento de sua família, não podendo permitir, dessa forma, que fossem levadas facilmente, como a época exigia certa energia, pois contra a força, que imperava, não existia resistência, a não ser aquela provinda da dureza da própria força, sendo assim, ele era duro, forte e energético.

Certa vez um desafeto começou a mudar os limites de sua terra, com o objetivo de aumentar sua área cultivável, dessa forma, invadiu muito da propriedade da família Estácio, os limites foram rapidamente restaurados e o invasor repelido, porém, como não aceitara a imposição, passou a cavalgar pelas terras de João e fazer galanteios para as mulheres da família. Em um dia que cavalgava pelas terras alheias, se deparou com João, que não pensou duas vezes, o derrubou do cavalo, o desarmou e com o açoite, que o desafeto carregava, lhe deu uma surra, o desafiante chegou em casa sem cavalo, sem arma, quase nú em pelo e com o “lombo cortado de çoiteira”, era como se chamava o açoite naquela região.

O tempo já havia passado, os filhos de João e Pelegrina estavam crescidos, foi nesse ponto que teve inicio uma história estranha e cabulosa acontecida com essa família. Tudo se deu com a aparição de um homem estranho, de cabelos encaracolados e negros, barba comprida e negra, alto, de pele clara, que aparecia pela propriedade, danificava coisas, batia nos proprietários, assustava as mulheres e quando perseguido sumia na mata, sem nunca ninguém conseguir tocá-lo, ou capturá-lo.

Começaram a perceber que os porcos, os cavalos e o gado eram soltos dos mangueirões, coxilhas e pasto durante a noite, atacando as lavouras da família, destruindo e trazendo prejuízos, outras vezes, atacavam as terras e lavouras de outras pessoas, o que acarretava desavenças, problemas e dívidas. Mas não entendiam como isso acontecia.

Também começaram a desaparecer animais, as galinhas diminuíram bastante a produção de ovos, o leite das vacas diminuiu e durante a noite era normal pedras enormes com mais de quilo ser lançadas sobre o telhado, o arrebentando e indo parar direto dentro da casa.

Durante mais ou menos um mês viveram com esses ataques noturnos, até que Tio João e os filhos, juntamente com outros parentes decidiram que iriam tocaiar os responsáveis. Ficaram acordados, se esconderam, esperando para pegar o desgraçado que estava sabotando suas vidas. Os filhos ficaram em um paiol bem próximo a casa, tio João e mais um cunhado no interior da cozinha, todos armados. Já passavam da meia noite quando as galinhas fizeram um reboliço, junto com elas os porcos, cavalos, toda a criação ficou agitada, sequencialmente, como das outras vezes, ouviu-se cair sobre o chão da cozinha uma pedra enorme que havia furado o telhado, em seguida mais duas. Saíram, tanto quem estava na casa, quanto quem estava no paiol e se deparam com um homem alto, com barba e cabelos negros, vestido com roupas que pareciam de saco de estopa (algodão cru), plantado no meio do terreiro, apontaram as armas e perguntaram:

-Quem é você, porque está invadindo e destruindo nossas propriedades?

Mas o estranho nada respondeu, ficou ali parado, imóvel, sem nada fazer. Todos, por respeito, esperavam a iniciativa do patriarca, mas ela não veio. O homem olhou para todos apontando com o dedo indicador da mão direita e gargalhou em tom de desafio. O filho mais velho, que herdará muito da iniciativa e dureza do pai, ao ver aquele desrespeito, mesmo sentindo certo temor, originado na falta de temor que demonstrava o estranho, apontou o revolver na direção dele e disparou praticamente a queima roupa, uma, duas, três vezes, mas o homem nem se mexeu, o que o fez travar por um momento, o estranho gargalhou e correu em direção ao mato, sumindo na escuridão.

Depois desse encontro a coisa piorou, o homem aparecia durante o dia e se aproximava da casa, ficava observando as mulheres enquanto elas estavam sozinhas, retirava as roupas do varal e as pendurava em árvores no início da mata, matava os cachorros que o perseguiam. O terror havia tomado conta de todos, pois não adiantava persegui-lo, assim como aparecia, desaparecia, continuando a destruir tudo que encontrava em seu caminho. A violência dos ataques começou a ficar mais incisiva, primeiro matou cachorros, que ousaram persegui-lo, logo depois os demais animais começaram a aparecer mortos, alguns até com as cabeças arrancadas. Acordavam de manhã e se deparavam com uma cabeça de porco ou cavalo na porta da casa. Estavam todos aterrorizados, já tinham feito toda espécie de simpatia, reza, benzimento e encanto, nada adiantou.

Acordaram certa noite com o paiol, onde guardavam os alimentos para consumo da família, ardendo em chamas e mais a frente enxergaram a claridade vinda da roça de fumo, tudo queimado, viraram cinzas, tanto paiol, quanto a roça. Não queriam desistir, queriam lutar por tudo que haviam conquistado, mas João começou a ficar melancólico, acuado, não demonstrava a energia que tivera sempre durante sua vida, estava sendo afetado por tudo que acontecia.

O filho mais velho trabalhava juntamente com outros camaradas contratados pela família, em um grande corte de lenha, já estavam no meio do mato há quase uma semana, precisavam terminar o serviço, para com o dinheiro ganho, tentar cobrir parte dos prejuízos que tiveram pela praga que grudou na família. Em certo dia, antes do almoço, por um pequeno momento, o primogênito se afastou dos demais homens, ficando sozinho, quando se deu conta o estranho que os aterrorizava, apareceu bem na sua frente, vestido do mesmo jeito, com o mesmo sorriso debochado, porém dessa vez estava ali, durante o dia, a poucos metros do rapaz, pôde olhar bem para o rosto do homem, mas o que viu o encheu de terror, pois segundo aquilo que narrou, os olhos do “pertuve” brilhavam como olhos de gato na escuridão. Assustado e temendo pela própria vida o rapaz sacou do coldre, que estava junto à cintura, o revolver de calibre 38, fazendo disparos a menos de 5 metros, diretamente, por mais de uma vez, a queima roupa, contra aquela desgraça, porém, o homem não se moveu, sempre sorrindo, O rapaz gastou todas as munições, mas nem um ferimento no corpo do danado. Dessa vez a figura medonha falou:

- Já não tentou me atirar uma vez? Você mesmo enxergando, não enxerga! Será que ouvindo, ouvirá?

Terminando essas frases se lançou contra o rapaz, que relata só ter sentido receber uma saraivada de golpes por todo corpo, que pareceram durar poucos segundos, a próxima coisa que lembra é de estar caído no chão, sem poder se mover pelos ferimentos, pelos ossos quebrados, com o homem o segurando pelo colarinho e dando seu último aviso:

- Como te disse: você enxergando, não havia enxergado! Agora que ouviu, ouvirá? Agora que sentiu, entenderá? Da próxima vez que me encontrarem não terão a oportunidade de contar a história, aproveitem e abandonem esse lugar, mas fiquem com suas vidas.

Dizendo essas últimas palavras, sumiu no mato como fizera tantas vezes antes. Os homens que haviam escutado os tiros e os gritos do patrão chegaram ao local, mas nenhum deles viu sequer o vulto do maldito. Acudiram o rapaz que conseguiu sobreviver ao ataque, demorando alguns meses para se recuperar.

Abandonaram as terras, venderam o que conseguiram, a um preço muito menor do que realmente valia e se mudaram todos para o Porto. Seu João foi ficando cada vez mais cabisbaixo e logo a cegueira veio, passou o resto da vida na escuridão, até que o descanso eterno o alcançou. Nunca retornaram a antiga morada.

Nunca soube realmente a verdade sobre os fatos narrados nessa história, ou se a verdade não era essa mesma. Mas como foi dito anteriormente, para combater a força, se faz necessário ser forte, pois contra a força não há resistência, mas se a nossa força não for maior do que aquela que nos oprime, que se opõe, que se impõe, como no causo narrado, aprenderemos que não há resistência possível contra aquilo que não controlamos, que não entendemos e que foge de nossas capacidades naturais. Em suma: duro com duro, quebra o duro mais mole.