Os bodes do condomínio
OS BODES DO CONDOMÍNIO
Miguel Carqueija
Os moradores daquele condomínio tinham muitas razões para se queixarem. Inúmeros vazamentos, entupimentos, canos furados e enferrujados, fiações velhas, problemas no interfone, rebocos caindo, pintura gasta etc. Estavam sempre se queixando ao síndico, mas ele pouco fazia além de prometer.
Entretanto as queixas foram se acumulando e o síndico foi sendo cada vez mais incomodado, a ponto de já não passar um dia sem ouvir reclamações.
Então um belo dia ele apareceu no condomínio com um caminhão e alguns ajudantes. Para espanto geral fizeram descer uma dúzia de bodes e cabras e os soltaram pelo local. A quem vinha explicar ele explicava:
— É que o meu sítio está em obras e eu tive de trazer os meus bodes para cá por uns tempos.
— Mas bode cheira mal!
— Isso é um absurdo!
— Eles vão sujar por toda parte!
— Sinto muito, mas o regulamento não proíbe o síndico de criar bodes no condomínio! Eles vão ficar!
E ficaram. Nos dias que se seguiram o condomínio tinha virado um filme de terror. Os caprinos entravam pelos corredores dos prédios, passeavam pelos salões de festas, pelo estacionamento, comiam as roupas que encontravam, bodejavam por toda parte. Ninguém se atrevia a fazer nada porque diariamente havia veterinários examinando toda a cabraria, além disso eles eram bem dispostos a se defenderem com seus chifres. Nem cachorros havia para enfrentar os intrusos já que o regulamento do condomínio proibia cachorro, proibia gato, proibia passarinho, mas não proibia bode. E o cheiro dos ruminantes alastrava-se pelo local.
Depois de um mês de sofrimento o síndico veio com o mesmo caminhão e recolheu tudo quanto era cabra ou bode e os levou de volta ao sítio, obras terminadas, não sobrou um caprino no lugar.
Todos — mulheres, homens, crianças, velhos — respiraram aliviados.
— Que bom! Não vamos mais ter aquele cheiro horrível!
— Ficamos livres da praga!
— Como o condomínio ficou legal, depois que saiu aquela bodarada toda! Que alívio!
E ninguém lembrou, no começo, que todos os problemas elencados no início desta história continuavam intactos e até agravados, visto que o síndico nada fizera para consertar coisa alguma...
NOTA – Para bom entendedor meia palavra basta, mas como esses são poucos, vou ter que explicar tudo.
O condomínio é a Terra. Os bodes e cabras são o coronavírus. As pessoas estão falando em “voltar ao normal” relacionando isso com o fim da pandemia. Mas e os problemas monstruosos que se agigantavam no mundo antes da pandemia e que nesse ínterim, até se agravaram? Vamos ficar satisfeitos e conformados só porque os bodes foram retirados?
Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 2020.
imagem pinterest
OS BODES DO CONDOMÍNIO
Miguel Carqueija
Os moradores daquele condomínio tinham muitas razões para se queixarem. Inúmeros vazamentos, entupimentos, canos furados e enferrujados, fiações velhas, problemas no interfone, rebocos caindo, pintura gasta etc. Estavam sempre se queixando ao síndico, mas ele pouco fazia além de prometer.
Entretanto as queixas foram se acumulando e o síndico foi sendo cada vez mais incomodado, a ponto de já não passar um dia sem ouvir reclamações.
Então um belo dia ele apareceu no condomínio com um caminhão e alguns ajudantes. Para espanto geral fizeram descer uma dúzia de bodes e cabras e os soltaram pelo local. A quem vinha explicar ele explicava:
— É que o meu sítio está em obras e eu tive de trazer os meus bodes para cá por uns tempos.
— Mas bode cheira mal!
— Isso é um absurdo!
— Eles vão sujar por toda parte!
— Sinto muito, mas o regulamento não proíbe o síndico de criar bodes no condomínio! Eles vão ficar!
E ficaram. Nos dias que se seguiram o condomínio tinha virado um filme de terror. Os caprinos entravam pelos corredores dos prédios, passeavam pelos salões de festas, pelo estacionamento, comiam as roupas que encontravam, bodejavam por toda parte. Ninguém se atrevia a fazer nada porque diariamente havia veterinários examinando toda a cabraria, além disso eles eram bem dispostos a se defenderem com seus chifres. Nem cachorros havia para enfrentar os intrusos já que o regulamento do condomínio proibia cachorro, proibia gato, proibia passarinho, mas não proibia bode. E o cheiro dos ruminantes alastrava-se pelo local.
Depois de um mês de sofrimento o síndico veio com o mesmo caminhão e recolheu tudo quanto era cabra ou bode e os levou de volta ao sítio, obras terminadas, não sobrou um caprino no lugar.
Todos — mulheres, homens, crianças, velhos — respiraram aliviados.
— Que bom! Não vamos mais ter aquele cheiro horrível!
— Ficamos livres da praga!
— Como o condomínio ficou legal, depois que saiu aquela bodarada toda! Que alívio!
E ninguém lembrou, no começo, que todos os problemas elencados no início desta história continuavam intactos e até agravados, visto que o síndico nada fizera para consertar coisa alguma...
NOTA – Para bom entendedor meia palavra basta, mas como esses são poucos, vou ter que explicar tudo.
O condomínio é a Terra. Os bodes e cabras são o coronavírus. As pessoas estão falando em “voltar ao normal” relacionando isso com o fim da pandemia. Mas e os problemas monstruosos que se agigantavam no mundo antes da pandemia e que nesse ínterim, até se agravaram? Vamos ficar satisfeitos e conformados só porque os bodes foram retirados?
Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 2020.
imagem pinterest