O NOVO VIGÁRIO, A SANTA QUE CHORA E O LADRÃO DE GOIABAS.

A pequena e pacata cidadezinha de São Tomé das Candeias, incrustada entre as belas serras mineiras, amanheceu com o triste badalar dos sinos da matriz de Nossa Senhora de Fátima. O bêbado Olegário esbugalhou os olhos, ainda deitado no banco da praça, recebendo as primeiras doses de raios de sol. -"Eita, miséria. Teve morte na cidade!" Ele colocou a garrafa no chão. Dobrou o velho cobertor e se pôs de pé. Deu uma espreguiçada e passou as mãos no cabelo. Lavou o rosto na fonte e deu a volta na igreja. O sacristão Belarmino parecia uma vela, de tão branco. -"Bom dia, Belarmino. Quem bateu as botas?" O sacristão fez o sinal da cruz. -"O Senhor chamou o bom padre Eustáquio!" O outro ergueu as mãos. -"Eu não chamei ninguém. Tá louco?!" O sacristão tinha tristeza na voz. -"O Senhor Deus o chamou. Padre Eustáquio faleceu. Encontrei ele caído, no banheiro da casa paroquial." A notícia se espalhou. A população veio até a igreja e a casa paroquial. O carro funerário, da cidade vizinha, chegou uma hora depois. Botaram infarto fulminante na certidão de óbito do religioso de setenta janeiros, um fumante inveterado e frequentador assíduo das mesas de pôquer. A população ficou três semanas sem ter missas. Finalmente, o bispo nomeou um novo vigário para a localidade. O jovem jesuíta Apolinário desceu da jardineira, debaixo de um sol escaldante. O ponto de ônibus, o único da cidadezinha, ficava em frente ao armazém de secos e molhados Esperança, cujo dono era o Badaró, filho de tradicionais fazendeiros da região. Algumas crianças jogavam bolinha de gude na calçada. -"Esse padreco que não chega!" O sacristão aguardava a chegada do novo vigário. -" Já desceram todos os passageiros da marinete e não vi padre nenhum." Ele entrou no armazém. Uma senhora comprava farinha de mandioca. Um jovem alto degustava uma gelada, encostado no balcão. -" Boa tarde, Badaró. O bispo Francineudo ligou anteontem, dizendo que o novo padre chegaria hoje. Não vi nenhum padre descer do ônibus!" O comerciante deu de ombros. -"Não vi ninguém de batina, Belarmino." O jovem se levantou. -" Eu sou o novo padre. Você é o sacristão Belarmino?" Disse o jovem, abrindo a carteira pra pagar a cerveja. O sacristão o cumprimentou. Teve os ossos da mão esmagados pelo aperto de mão do sacerdote. -"Haroldo. Padre Haroldo." O sacristão estranhou os óculos escuros e o piercing na orelha do rapaz. -"Belarmino. Prazer, padre. Seja bem vindo. A casa paroquial é na rua detrás da igreja." Eles atravessaram a praça. Os olhares curiosos das pessoas. -"Se está com Belarmino, deve ser o novo vigário!" Disse o pipoqueiro Ganimedes a beata Maria Francisca. -"Que museu. Vou ter que mudar tudo aqui." Disse, olhando os móveis da casa. A cozinheira Perpétua tremeu ao ouvir a voz do padre, entrando na sala da casa paroquial. Ela ajeitou o avental e foi até a sala. Mancava da perna, devido a uma queda no quintal, brincando com os netos. Estava há vinte e dois anos servindo na casa paroquial. Cozinhava, lavava e limpava. Era a conselheira e confidente do antigo padre. -"Boa tarde. Sou a cozinheira Perpétua. Seja bem vindo, senhor padre." Ela arrancou um sorriso do novo vigário. O coque no cabelo branco, a roupa estampada debaixo do avental, os chinelos de couro e os óculos lembravam a avó dele, que morava no distante Rio Grande do Sul. -"Boa tarde, dona Perpétua. Me chame de padre Haroldo apenas. O Senhor está no céu!" Ela sorriu. -" O Senhor está em todo lugar! Fiz um pastelão de forno para o senhor. Um lanche da tarde." O padre ergueu a voz. -" Você, quer dizer, a senhora fez o quê. Repete!" A mulher colocou as mãos para trás. -" Pastelão de forno. Se o senhor padre não quiser, posso fazer um pão na chapa ou ovos mexidos com bacon!" O novo vigário abraçou a mulher e a beijou. -" Eu amo pastelão! Há séculos não como!" Eles foram até a cozinha. -"Que cheiro divino." Perpétua tirou a assadeira do forno. Serviu uma porção generosa ao padre. Ele olhou para o sacristão. -" Sente, homem de Deus. Venha provar essa delícia!" O sacristão ficou sério. -"Não devo. O saudoso padre Eustáquio gostava de comer sozinho. Eu o aguardarei no escritório." O padre empurrou uma cadeira com os pés. -"Senta e me faça companhia, amigo. Perpétua, venha também." A senhora olhou para o sacristão. Eles nunca sentavam com o outro padre. A conversa durou um bom tempo. O padre era simpático. A cozinheira ficou aliviada, ao saber que o padre iria mantê-la no cargo. -" Não posso dispensar uma cozinheira com tamanho talento. Estou ansioso pela janta. Vou contratar alguém pra lavar e passar, Perpétua. Chega de escravidão! A senhora vai trabalhar apenas de manhã. Faz o café, o almoço, deixa minha marmita pra janta e vai pra sua casa descansar. Você já deveria estar aposentada, mulher!" Os olhos dela brilharam. Padre Eustáquio nunca havia elogiado a comida que ela fazia. Jamais falara em aposentadoria nem em contratar outra pessoa pra lavar e limpar aquele casarão. O padre quis conhecer a igreja. O forro estava velho, caindo aos pedaços. -"Não têm os ventiladores para a assembléia, Belarmino! Ridículo!" A pintura é antiga, não tem bebedouro de água. caiu de costas, tempo depois, ao analisar com o sacristão, as finanças da paróquia. -" Mesmo assim, ele iniciou a reforma do salão de festas? No vermelho, Belarmino?" O sacristão não falava nada. -"O dízimo é pouquinho, mal paga as contas! Precisamos de um milagre, Belarmino!" Dias depois, houve uma missa festiva de apresentação do novo vigário. Com o tempo, ele foi apresentando suas novas idéias. Os mais idosos torciam o nariz para as modernidades do sacerdote. -"Mal saiu dos cueiros, cheirando a leite e quer nos ensinar?" Diziam uns, saudosos de padre Eustáquio. A ala feminina adorou o rapaz, de porte atlético e gentil. -"Desperdício um deus grego desses ser celibatário!" Diziam algumas moçoilas nada recatadas. -"Tanta carne aqui e eu passando fome lá em casa!!" Diziam outras mais afoitas e apaixonadas. A paróquia ainda estava no vermelho. O padre precisava de um veículo para atender os fiéis nas fazendas. -" Só mesmo um milagre de Nossa Senhora de Fátima!" Disse o padre, olhar fixo na bela imagem da matriz. Joãozinho tinha dedurado o Filinto, aluno da sexta série. Diante da diretora da escola, ao lado da turma da rua das Bromélias, ele ficou acuado e confessou tudo. -"O Filinto surrupiou os gabaritos das provas bimestrais." Novas provas marcadas e o Filinto suspenso por três dias. A merendeira Nita, tia do garoto, contou a ele sobre o dedo duro. O Filinto reuniu a sua turma. -"Vamos dar uma lição no Joãozinho. Uma surra pra não esquecer." O Joãozinho voltava da fazenda Nova Aliança, onde fora roubar goiabas. As melhores goiabas da região, brancas e vermelhas. Um lugar perigoso, devido aos cães bravos da fazenda. Um pasto com touros, antes de chegar a porteira. O dono gostava de afugentar os ladrões de goiaba com dia espingarda de chumbinho. Uma verdadeira missão impossível mas que valia a pena pela qualidade e tamanho das goiabas. O garoto ludibriou os cães, colocando uma carcaça de frango assado do lado oposto aos pés de goiaba. Ele esperou o dono sair de casa. A caminhonete verde passou a porteira, levantando poeira. O Joãozinho entrou em ação. Ágil como um gato, subiu nas goiabeiras. O embornal cheio de frutas. O chiqueiro lá embaixo. Um salto do galho da goiabeira. O chão, finalmente. A sede. A porteira. O pasto. Filinto o viu. Um assovio forte. Os outros três garotos da turma vieram. Filinto correu atrás do Joãozinho. Os garotos quase alcançando o Joãozinho. Um touro não gostou de toda aquela agitação. A turma do Filinto correndo do touro e o Joãozinho correndo da turma. Os garotos se dividiram. O touro parou de repente. A cerca de arame a frente. Joãozinho mirou os espaços da cerca. Um salto entre os fios de arame. Filinto subiu na porteira. O Joãozinho atravessou a cerca. Caiu sobre o embornal e rolou na terra vermelha. Ele se levantou e correu para a cidade. O ar faltando. A praça. A matriz. Ele precisava se esconder de Filinto. A tarde caindo. A escada do sacristão, nos fundos da igreja. Joãozinho subiu até o telhado da sacristia. Um salto e estava no telhado da nave principal. -"Daqui vejo a cidade toda e ninguém me vê." Ele sentou. O embornal junto dele. Sentiu algo gelado nas pernas. Achou que era suor. Passou a mão e viu o sangue. -"Raspei a perna no arame da cerca!" O sangue escorreu pelo velho telhado. Uma gota de sangue caiu sobre a cabeça da imagem da Virgem de Fátima. As senhoras do Grupo de Oração reunidas. Dona Cotinha foi a primeira que viu o sangue escorrendo dos olhos da imagem. A mulher desmaiou. As outras mulheres a socorreram. Ela voltou a si. Apontou para a imagem chorando sangue. As mulheres caíram de joelhos. Os gritos. Aplausos e glórias. O padre saiu da sacristia. -" Meu Deus. A santa chora lágrimas de sangue pela humanidade pecaminosa, em nossa paróquia!" O rapaz caiu de joelhos. Outra gota de sangue caiu, direto no outro olho da imagem. A população foi chamada para ver o milagre da santa que chora. Joãozinho tirou a camiseta e amarrou a perna. Vira isso num filme. A noite caiu. Joãozinho comeu algumas goiabas. Caminhou até a torre da igreja e adormeceu ali. A notícia da santa que chorava sangue caiu na rede e viralizou. O padre deu entrevistas aos jornais e tevês. A cidade amanheceu tomada de peregrinos de todo o Brasil. Joãozinho quis descer do telhado. -" O Belarmino tirou a escada! Lasquei-me." Os bispos e até o Nuncio Apostólico vieram a cidadezinha. A imagem foi analisada e protegida numa redoma de vidro. Um dia inteiro de missas na igreja lotada de fiéis. As pessoas depositavam rosas no altar. Dona Jurema chegou aflita ao plantão policial. Seu filho Joãozinho tinha sumido. O delegado pensou em sequestro. A foto do garoto nos postes. As buscas. Até o Filinto estava arrependido de ter perseguido o garoto desaparecido. As orações para o garoto aparecer. Joãozinho olhou o embornal vazio. Comera todas as goiabas. A chuva caiu durante a noite. A cidade dormia. Um raio na torre da igreja, perto do garoto. A calha do telhado se soltou. Joãozinho com muito medo, os cabelos arrepiados pela descarga elétrica. A ponta da calha pendurada. A água da chuva na calha. Joãozinho pulou na calha, deslizando até perto do chão. Ele saltou e bateu a cabeça na calçada. Desacordado, o menino foi encontrado pelo Olegário. O bebum chegou ofegante a casa paroquial. -" O Joãozinho está do lado da igreja, padre. A santa o achou!" O padre foi ver o menino, enquanto o Olegário avisava o delegado. A cidadezinha amanheceu com a feliz notícia. Esse foi considerado o primeiro milagre da santa. O ferimento da perna do garoto fechou, duas semanas depois, graças ao pó de café usado, colocado na ferida. O Joãozinho virou herói na cidade e na escola. Filinto virou seu amigo e protetor. O dízimo e doações cresceram absurdamente, devido ao grande fluxo de peregrinos a matriz da santa que chora sangue. O comércio da cidade se beneficiou. A praça está sempre tomada de barracas e ambulantes. A cidade ganhou lojas, um shopping, hotéis, uma moderna rodoviária e restaurantes. Só o Olegário não mudou, continua bebendo muito e dormindo no banco da praça. FIM

marcos dias macedo
Enviado por marcos dias macedo em 07/01/2021
Reeditado em 07/01/2021
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