O MENINO DA JANELA
PRIMEIRO TEXTO COLETIVO GANDAVOS
Com participações de (por ordem alfabética): Alberto Vasconcelos, Celêdian Assis, Denise Coimbra, Jussara Burgos. Maria do Rosário. Maria Mineira, Marina Alves, Socorro Beltrão
(Socorro Beltrão) O dia está frio, a casa é humilde... Betinho sai à janela. Sente o frio que vem de fora, está com fome. Os pais já saíram para tentar arranjar alguma comida. Ele sabe que não pode sair de casa. Como é um garoto muito obediente, apesar de recentemente ter completado 6 anos, fica a esperar.
— Será que vai dar para brincar hoje? Não tem sol — pensa o garoto — Mamãe, chegue logo, estou com fome...
(Celêdian Assis) Seu olhar parece perdido, mas para quem o pudesse observar atentamente, perceberia que havia ali um brilho especial: era a esperança que brotava daqueles olhinhos. E o que poderia manter a esperança de um garotinho senão um sonho que ele alimentava?
(Maria Mineira) Um sonho que parecia impossível para quem conhecia a realidade por trás daquela vidraça. Aquela criança nunca brincava na rua ou fazia o que todas as crianças faziam, tampouco não molhava seus cabelos correndo descalço na chuva. Os pais entristecidos não sabiam mais o que fazer.
(Marina Alves) Quem passava pela rua não podia deixar de notar aquele rosto a olhar pela vidraça. Havia um pedido de socorro naqueles olhos infantis que tocavam até os corações mais insensíveis. O que haveria por detrás daquele semblante que parecia carregar em si todo o peso do mundo? Foi então que Tereza, uma professora que passava sempre por ali a caminho da escola, resolveu tomar uma atitude.
(Celêdian Assis) Tomada por impulso maternal, Tereza não se conteve, atravessou a rua e, determinada, subiu as escadas que davam acesso ao segundo andar daquele prédio tão desgastado pelo tempo. Não hesitou. Bateu à porta por algumas vezes... Mas as batidas eram em vão, ninguém respondia lá de dentro. Foi então que teve uma ideia: tomou papel e caneta e passou a escrever. Deixaria um bilhete sob a porta...
Quando ainda escrevia, notou que chegara alguém e a observava. Ela se virou e fitou uma mulher ainda jovem, mas com traços sulcados na face, olhos fundos e algumas olheiras, sinais que a tornavam com aparência muito mais velha.
— Quem é a senhora? — Perguntou a mulher, um tanto curiosa com a presença de Tereza.
(Denise Coimbra) — Olá! Meu nome é Tereza e vim aqui para conhecer vocês. Quem sabe poder ajudá-los... Todos os dias meus olhos encontram os de seu filho a olhar pela janela e eu imagino poder estender-lhe as mãos e levá-lo comigo para a escola. Assim, quem sabe, as inúmeras brincadeiras e a presença de outras crianças tais como ele, possam apagar a tristeza imensa que vejo em seus olhos.
(Marina Alves) A princípio, a mulher fitou Tereza com olhar desconfiado: naquele meio em que vivia, aprendera que nenhuma bondade vinha de graça. Em troco do quê aquela moça tão estilosa e elegante se propunha a ajudar seu filho? Seria ela uma criminosa disfarçada de boazinha? Quem sabe uma daquelas sequestradoras de crianças que via nos jornais da TV? Melhor ir com cuidado, com muito cuidado! Mas Tereza a olhava com tranquilidade, de um jeito sereno que a desarmava. Aos poucos, foi baixando a guarda e resolveu ouvir o que a moça tinha a lhe dizer. Chamou-a para entrar, assim poderiam conversar com mais calma.
Tereza adentrou a modesta sala, mobiliada com um sofá roto e manchado de café. No chão, um tapete esgarçado e já quase sem cor. A moça correu os olhos pelo ambiente: mais que reparar no que compunha a sala, ela procurava pelo menino... Ah, queria vê-lo de perto, poder fitar sem a interferência da vidraça aqueles olhinhos que tanto a impressionavam! Pediu que a mãe fosse chamá-lo.
(Maria do Rosário) Mal sabiam que o olhar do menino na janela observava a vida borbulhando lá fora, se emocionava com as cantigas suaves dos passarinhos e acompanhava o movimento da natureza que o convidava a ir viver do outro lado da janela. Não sabiam que ele olhava o que preenchia a sua vida lá fora, enquanto fugia do vazio que vivia ali dentro.
(Alberto Vasconcelos) Absorta em pensamentos tristes, Tereza, que permanecera sentada na ponta do sofá, em prontidão, como quem aguarda a qualquer momento algo que a fizesse sair correndo, nem se deu conta de que Betinho já estava arrumando os seus brinquedos favoritos no restante do assento: pião, bolinhas de gude, uma pipa rota sem a rabiola, um barquinho de papel e alguns pregos enferrujados. Depois da meticulosa arrumação Betinho olhou bem nos olhos de Tereza e perguntou:
— Você trouxe os seus brinquedos?
(Socorro Beltrão) — Não, querido — Tereza respondeu — sua mamãe e eu vamos levá-lo a um lugar que acho que você vai gostar. Você vai conhecer muitos amiguinhos de sua idade e se gostar, pode ir mais vezes.
A professora vinha levando proventos e roupas para eles já havia alguns dias. Conquistara o amor da criança e dos pais. Eles estavam passando uma situação difícil. Seu Roberto perdera o emprego há alguns meses. Marta, a mãe, não estava bem de saúde.
(Celêdian Assis) Betinho, com alguma dificuldade para locomover-se, limitava-se naquele pequeno espaço, ora a brincar na sala, ora a postar-se em frente àquela janela que dava para a rua. O menino nascera com um problema ortopédico em um dos pés, que lhe dificultava pisar no chão com segurança. Tereza, em suas visitas à família, queria abordar sobre um tratamento para a criança, mas notou que os pais tentavam de certa forma, esconder aquela situação.
(Marina Alves) Por fim, depois de ganhar a confiança da família, Tereza abordou o assunto sobre as dificuldades de locomoção de Betinho. Convenceu a mãe de que, frequentando a escola, o menino poderia também ser encaminhado para os serviços de atendimento especial. Em primeira mão, o importante é que ele pudesse encontrar outras crianças de sua idade, para brincar e trocar experiências. Em seguida, iriam ver também uma avaliação para seu pezinho. Tudo ficaria bem, ela acreditasse! E assim, depois de tudo conversado, marcaram o encontro para a segunda-feira na escola em que Tereza lecionava. Uma nova etapa de vida em breve começaria para o menininho triste da janela.
(Maria Mineira) À noite, quando foi dormir, com o coraçãozinho cheio de esperança, o menino ouviu um barulho na cozinha. Com dificuldade, caminhou até lá e ouviu soluços do pai segurando a mãe nos braços.
— Papai, o que a mamãe tem? — perguntou assustado —. O pai, em meio ao desespero e às lágrimas parecia não ouvir. Ele chamava e a mulher não respondia. Betinho gritou, pediu socorro para os vizinhos, mas nada adiantou. Sua mãe estava morta! Pela primeira vez sentiu uma tristeza maior que a de não poder brincar e andar igual aos outros garotos. Nunca havia visto o pai chorar e ele agora se debulhava em lágrimas.
(Marina Alves) — Marta, minha querida, por que nos abandonou? — A pergunta desesperada de Roberto ecoou no vazio da cozinha, encontrou como resposta apenas o silêncio. Marta tinha partido, deixando sós o companheiro de quase dez anos e o filho com 6 de idade. Justo agora que a professora Tereza tinha vindo como um raio de luz para ajudá-los, abrindo uma réstia de esperança na vida da família! Mas assim era a vida: uma caixa se surpresas, algumas muito amargas.
No fim da manhã, quando o corpo de Marta desceu à sepultura, Roberto saiu pelo portão do cemitério com o coração tomado por uma tristeza imensa. Desolado, encaminhou-se para casa, onde Tereza fazia companhia a Betinho. Sim, aquela moça era um anjo que Deus lhes havia enviado. O que seria deles agora? O que faria desempregado e com um filho pequeno para criar? Marta era um esteio, seu amparo. Sem ela, sentia-se terrivelmente só. Chegando a casa, rodou a chave na fechadura e mal pôde crer no que viu.
(Alberto Vasconcelos) No canto da sala, algemada na cadeira de ferro, Tereza mantinha os olhos baixos, enquanto o investigador perguntava:
— O senhor conhece essa mulher? Vocês têm alguma coisa a ver com ela ou a família dela?
— Não senhor, foi a única resposta de Roberto.
— Pois ela é traficante de crianças! Quanto ela ofereceu pelo seu filho?
(Socorro Beltrão) O pobre Roberto ficou paralisado. Surpreso com tudo aquilo, exclamou:
— Meu Deus, o que eu faria se perdesse também meu filho? — ele pensou — e murmurou uma prece: Obrigado Senhor por este livramento.
(Celêdian Assis) Mas ainda assim Roberto não podia crer no que acabava de ver. Não era possível que a professora que os vinha amparando fazia alguns dias com tanta bondade, pudesse ser uma criminosa. Foi quando disse:
— O senhor deve estar enganado, isso não é possível!
— O senhor é que está sendo ingênuo! — disse-lhe o investigador.
Roberto se postou frente à Tereza e fitou-lhe no fundo dos olhos, como se esperasse uma resposta dela. A moça então, com grande esforço para que o “investigador” não percebesse, sussurrou:
— Socorro... Este homem me persegue.
Ele não entendia bem o sentimento que lhe assaltou naquele momento, mas algo lhe dizia que confiasse em Tereza.
(Marina Alves) Roberto era um homem dotado de muita sensibilidade. Resolveu apostar em seu sétimo sentido e se algo lhe dizia que Tereza era inocente, então ela era mesmo! Viu Betinho chorando baixinho num canto da cozinha e decidiu agir rápido. Com um golpe que aprendera quando mocinho na escola de karatê, ele dominou o "investigador". Deixou-o imobilizado e soltou as algemas da professora, que suspirou aliviada:
— Obrigada, Roberto! Agora senta aí para ouvir o que tenho para contar. Essa é uma longa história.
— Tereza! Que sufoco! Sou todo, ouvidos! — disse ele, com expressão de grande curiosidade.
Depois de verificar que o "perseguidor" estava bem dominado, a moça correu para acalmar Betinho. Antes, deu um telefonema para a Delegacia de Polícia e só então pôs-se a falar. E era dolorosa cada palavra que saía de sua boca.
(Celêdian Assis) Eu era ainda muito nova, uma mocinha ingênua e cheia de sonhos, quando na minha cidade apareceu uma companhia de teatro mambembe. Armaram o palco na única pracinha da cidade. Ficaram por lá durante umas duas semanas, apresentando peças, na maioria, autorais. Era uma felicidade geral, afinal, tudo por ali era uma pasmaceira. Álvaro, aquele sujeito asqueroso que ali está — apontou para o “investigador” — à época, era um rapaz charmoso, interessante, galanteador e de pronto atraiu a atenção das moças da cidade. Comigo não foi diferente, me encantei por ele e ele por mim. Meus pais chegaram a proibir-me de vê-lo. Parece que sentiram de longe o cheiro do perigo. Eu não via perigo algum, só me apaixonava cada vez mais. Foi então que ele me propôs que eu fosse embora com ele e a companhia de teatro.
— Então me conte, já estou curioso, você foi embora com ele? — perguntou Roberto.
(Marina Alves) De repente, Tereza viu surgir a chance de lavar a alma de todo o ressentimento do passado que carregava consigo e pôs-se a contar:
— Sim! Para a minha infelicidade, segui esse traste, que em pouco tempo revelou sua verdadeira face. Sofri com seu ciúme sem limites, sua tortura psicológica diária e, por fim, com suas agressões físicas. Esse homem é um tirano! No mais completo sentido da palavra, Roberto! Não me deixava ter contato com a família ou conhecidos, proibiu-me as amizades, não me deixava trabalhar. Tornei-me dependente por completo desse miserável! E depois descobri as traições. Uma após outra! Passei a viver na pior degradação a que uma mulher pode se submeter. E vivia sob ameaças de morte. Jurou que viria atrás de mim... Consegui fugir, mas vejo que cumpriu sua jura, olha aí, de novo o canalha no meu caminho. Só que agora farei as denúncias que por medo nunca fiz. Daqui seguirei para a Delegacia. A Lei Maria da Penha está aí para ser cumprida e dela esse verme não escapa!
(Celêdian Assis) Após ouvir o triste relato de Tereza, por um momento, Roberto perdeu-se em pensamentos. Lembrou-se do passado também triste, de sua recém-finada esposa, da relação conflituosa que ela mantinha com a mãe, dona Virgínia, que se enviuvando muito cedo, casara-se de novo. O padrasto de Marta era homem abastado, de posses, e proporcionava à mãe e filha uma vida bem confortável. Entretanto, nem tudo era o que parecia. Era um homem dissimulado, sem nenhum caráter. Vivia assediando Marta. Esta, receosa de criar um caos na relação dele com a mãe, que parecia feliz, escondeu por muito tempo as investidas indecorosas daquele homem asqueroso. Até que um dia, conheceu Roberto. Eles se apaixonaram, e o rapaz a convencera de que a mãe devia tomar ciência do que vinha acontecendo. Dona Virgínia teve uma péssima reação: não acreditou no que a filha contara e ainda lhe atribuíra a culpa por despertar o interesse do padrasto, caso realmente fosse verdade que ele a assediava. Foram muitas discussões e mal-estares entre elas e o padrasto acabou convencendo-a a expulsar Marta de casa. Roberto então propôs a ela que fossem embora dali juntos: mesmo sendo pobre, sem poder dar a ela o conforto a que estava acostumada, se casariam. Desde então, mãe e filha nunca mais tinham se visto, mas dona Virgínia vivia corroída pelo remorso e quem sabe um dia repararia seu erro. Roberto recobra-se das lembranças.
(Jussara Burgos) Nisso bateram palmas à porta da casa. Era a dona Virgínia, sogra do Roberto que soubera do falecimento da filha. Não conseguira chegar a tempo para o sepultamento, mas vinha se propor a ajudar na criação do neto, aquela seria uma forma de redimir-se do passado. Ela morava num sítio próximo à cidade, numa casa confortável, com quintal, muitas árvores frutíferas e um belo jardim. Além disso, tinha uma condução que levava as crianças daquela localidade para a escola. O menino ficou feliz com a presença da vó e diante da possibilidade de viver no sítio, que lhe pareceu um lugar muito prazeroso. O pai, sem ter muita opção, meio a contragosto, acabou por consentir que a avó levasse o menino, prometendo que ia vê-lo nos finais de semana.
Betinho renasceu depois que foi viver com a avó, que estava viúva novamente. Ocupou o quarto que era da sua mãe, fez amizades com a meninada, com as crianças dos arredores, jogava bola depois que voltava da escola ainda com muita limitação por conta da bota ortopédica que passou a usar. Sua vó lhe contava lindas estórias antes de ele adormecer e lhe fazia guloseimas. Ele sentia falta do pai no dia a dia, mas gostou do novo momento que estava vivenciando. Agora ele não via o mundo através de uma janela, passou a viver como criança.
(Socorro Beltrão) Betinho achou seu caminho. Sob tratamento com excelente médico que a avó lhe arrumara, já podia se locomover melhor. Sempre que podia, seu pai ia vê-lo, eram momentos deliciosos que passava com ele, mas era bem melhor quando a Tereza vinha também. Claro que nunca esquecera sua mãezinha, porém a vida continuava e era preciso seguir em frente. Roberto tinha reformado a casa, que agora estava mais bonita e com um jardim na frente. Ele estava trabalhando de faz-tudo na escola. Da diretora ao zelador, todos o admiravam. Tudo estava bem.
Betinho ficou feliz quando recebeu a notícia do casamento do pai com Tereza. A moça convidou Betinho para entrar com ela na igreja. Ela era órfã de pai, e sua mãe, dona Margarida, sugeriu que fosse Betinho a entrar com ela. A mãe de Tereza adorava o garoto e ele agora seria seu mais novo neto. A igreja estava florida, trabalho das outras professoras, colegas e amigas de Tereza. Seu vestido era simples, mas ela estava linda. Betinho a entregou ao pai. Alegre, percebeu que ele estava feliz. Ali começava uma nova família sob as bênçãos de Deus...