Pé do corvo e a história mal contada por um passarinho
Existem tantas histórias que são repassadas e quando perguntamos quem foi que contou, a resposta é "um passarinho". Pois bem, vou contar um caso que presenciei e acreditem, sou eu o passarinho.
Não sei dizer em que década se passou, apesar de meter o bico na vida alheia, não aprendi contar o tempo. Me lembro da moça no auge de seu afloramento, vestido rodado a cobrir os joelhos e a esconder o espartilho, sorria com timidez e rosava as bochechas. Sua família era rígida, e ela filha única, compromissada com um rapaz que se quer conhecia o rosto. Sobre ele, ela sabia que morava na cidade vizinha e que tinha sobrenome importante, não para ela, para aqueles interessados por política.
Quase esqueci de dizer, sua graça era Margarida. Antes de prosseguir, quero esclarecer algo. Eu costumava ficar próximo da janela de Margarida e não por ser bisbilhoteiro, e sim por ter uma árvore na frente dela, onde fiz meu ninho. Parece óbvio que os humanos apreciem plantar árvores em frente de suas janelas.
Margarida não podia sair de casa, a menos que fosse para igreja ou quermesses beneficentes. E foi numa quermesse que ela conheceu um moço atravessado com palavras, porém talentoso com olhares e venda de pé-de-moleque.
Margarida quase morreu engasgada com amendoim, tanto que segurava pra não rir de Augusto. Conversaram discretamente por poucos minutos e descobriram que estudaram juntos na época da professora Filhinha. Assim que Augusto demonstrou interesse maior, Margarida revelou estar comprometida.
Naqueles tempos, as pessoas não demoravam muito para dar um passo adiante e meter os pés num casamento. Diante do encantamento de ambos, Augusto propôs a Margarida uma fuga no meio da madrugada, já que romper o noivado seria impossível. Prometeu-lhe avisar o dia apropriado para fugirem através de um bilhete que um lindo pássaro, não mais lindo que eu, levaria em sua janela.
Mal terminaram de falar, a mãe de Margarida com feição descontente, aproximou-se da filha e a levou embora.
Os dias passavam e Margarida passava por eles debruçada na janela a espera do pássaro, até mesmo perguntava a mim se tinha algo para ela.
Bem que eu gostaria de ser o mensageiro desse amor juvenil, no entanto, ela percebeu que minha morada era ali. O único pássaro além de mim, era um corvo quase depenado e de tão feio, Margarida olhou seu bico e não olhou os pés. Ela não conhecia a expressão "da cabeça aos pés".
Desiludida, desistiu da espera e se prostrou em sua cama para desespero de seus pais. Margarida não se alimentava de tão deprimida, e o corvo cada dia mais feio ficava, não saía da janela nem para comer. Eu, que via tudo de fora, notei que os dois definhavam na mesma medida. O que Margarida não via, era que no pé do corvo havia um bilhete amarrado tão forte que o feria.
Às vésperas do casamento com o noivo de renome, Margarida morreu de coração partido. O corvo perdeu o pé, pois a linha com o bilhete de Augusto torou-lhe a canela, junto a janela, antes de cair duro no chão.
A mãe de Margarida entrou no quarto, esbaforida e ansiosa, com uma maleta de pó de arroz colorido para disfarçar a palidez da noiva, abriu a janela e achou o bilhete. Zangou-se. Virou-se impetuosa para brigar com a filha, então viu o corpo sem vida.
Bateram na porta da casa vigorosamente. Era Augusto desesperado. Sua pele estava coberta de urticária purulenta provocada pelo estresse da espera pela resposta da fuga, tendo o conhecimento sobre a data do casamento de Margarida, pois acreditava que ela desistiu dele para cumprir a promessa do pai.
O pai, sem saber que a filha estava morta no andar de cima, ao ouvir a pergunta de Augusto e sua declaração de amor por ela, foi consumido pela ira. Nisso, a mãe desceu a escada aos prantos sem conseguir dizer uma palavra, entrou na sala e entregou o pé do corvo com o bilhete ao marido, que ao ler, pensou que o choro de sua esposa era pela filha ter perdido a honra com o petulante que estava diante dele.
Atirou em Augusto! Bem no peito.
Queria eu ter contado um causo com final feliz...
Depois de ver o moço caído no assoalho da sala, ver seu sangue misturar-se ao pus da pele, não esperei para ver mais nada. Fui até a janela, despedi-me da gélida moça e do corvo sem pé, juntei meu ninho e parti.
Hoje tenho um ninho no telhado de uma casa e pouco sei sobre o que acontece nela. Não vejo nada da vida dos moradores, mas receio que ultimamente, tenho ouvido vozes...