Tarde dominical em Divinópolis
Tento recompor a imagem do tio-avô Leopoldo assim que vejo a foto de um Austin Morris antigo, dum azul claro quase branco de esmaecido. Pois foi a bordo de automóvel desses que, provavelmente no ano de 1964, quando de uma ida de papai a Divinópolis para comprar forro de pinho, que o tio deu uma volta pela cidade conosco, no caso, papai, eu e o mano Beu.
Enquanto o carrinho sacolejava feito um guarda-louças rodante pelos paralelepípedos de já animada mini-metrópole do centro-oeste mineiro, e até entrou na ampla praça da catedral, à época ainda de chão batido e rachado de seco, o tio ia narrando a papai algumas passagens de sua aventurosa existência, em meio a um ou outro reparo sobre o progressista burgo que tinha sob os pneus seus...
Mexia com o fabrico e a venda de doces. De leite e de amendoim. Tudo feito num enorme tacho de cobre no pequeno quintal da casa no bairro Sidil. E já tivera um rosário de ocupações na vida, sempre revelando um gênio criativo e irriquieto, mas nem sempre acompanhado pelo sucesso financeiro...
Sua mulher Elza supervisionava a casa, os filhos e as tachadas. Mas nesse último quesito a inventividade do marido em muito lhe facilitava as nem sempre doces tarefas. O tio havia desenvolvido, a partir de umas polias e até mesmo duma antiga roda de bicicleta, uma engenhosa maneira de mexer aquela massa-caldo fervente com o mínimo esforço humano. Elza cuidava mais era de manter a acesa a chama do fogão e de tentar temperar a fogosidade do companheiro.
De nosso passeio, que se deu num morno fim de tarde dominical, quando até as matinês do Cine Arte Ideal e do Cine Popular, já haviam acabado, tio Leopoldo, que muito gostava de prosear com papai, a quem tratava como um próprio sobrinho, relatou-lhe um caso um tanto inusitado. Tratava-se
de um cliente refratário que vinha se furtando a acertar seus atrasados.
Tendo chegado de surpresa à casa do indigitado, foi surpreendentemente recebido com certa cordialidade, e a conversa começou de forma até amena, mas quando Leopoldo tocou no tema dos atrasados...o freguês pediu licença e foi à cozinha para voltar logo em seguida munido de um garfo, com a ponta voltada para o cobrador...
Tio Leopoldo que era um homem esguio, um tanto alourado quanto acalorado, não se abalou. Apenas, afetando a calma de um leopardo antes do bote fatal, arrazoou com o freguês:
- Esse utensílio, meu amigo, não é para disputas, e muito menos ainda para o desfecho de um golpe, sendo de mais apropriado emprego em torno de uma refeição, tanto de um palácio quanto de uma tapera. Eu, como já almocei, dispenso o convite e me retiro...
E tio Leopoldo, como se risse da tragicomédia ainda perguntou a papai o que ele próprio teria feito naquela circunstância, ao que papai, sem deixar a peteca cair, apenas completou:
- Garfado, basta uma vez, né...?