O ECLÍPSE NO INTERIOR

O ECLÍPSE NO INTERIOR

Autor: Moyses Laredo

Já anoitecendo seu Raimundo Antão, dono do barco que fazia vendas nos portos, conhecido por todos como Regatão, de repente, se viu na necessidade de atracar àquela hora da noite, o casco estava fazendo água, o poço do eixo estava alagado, o batelão até já navegava um pouco adernado, achou que tivesse batido numa pedra de algum banco de areia, muito frequente na seca, o batelão carregado não sentiu muito o impacto, mas seu Antão até que sentiu a travada que o batelão deu, quando passou pelo banco de areia, sabe dizer direitinho onde foi que aconteceu, pensou que não fosse nada, pois tinha que sair dali o quanto antes, às vezes, o banco de areia chupava o casco de tal modo que prendia de jeito, que não era com pouca coisa que se tirava ele dali, teve casos que precisou desembarcar toda a carga, mas, no caso, ele conseguiu com esforço se desvencilhar do encalhe, suou frio de medo, toda sua economia estava ali naquele barco, inclusive o próprio barco, se perdesse aquilo era o seu fim e dos anos que lutou para chegar até aquele ponto de sua vida. Conforme navegava, percebeu que as pélas de borracha, produto dos escambos já feitos, começaram a escorregar para um lado, isso é um mal sinal, o aderno do barco só dizia uma coisa, o casco tinha sido avariado. Imediatamente atracou no porto mais próximo, pois já era noite, as sanefas do barco já estavam arriadas, porque ventava um pouco e salpicava tudo no convés, e ali, tinham paneiros de farinha. No local onde aportou, por coincidência morava seu Bigode, um velho conhecido seu. Subiu o barranco por uma escadaria aos desmantelos, e foi se ter com ele, assim que alcançou o terreiro do home, bateu palmas e chamou por seu nome, de pronto o seu Bigode já deu sinal lá de dentro do barraco, com um ronco bufante seguido por um tossido seco. Isso era coisa de sete e pouco da noite, o pessoal da casa já tinha se deitado, o seu Bigode ainda enrolava um porronca, que acendeu, logo depois, na chama da lamparina, hábito dele antes de pegar no sono, foi quando ouviu as palmas no terreiro, desceu da rede de tucum, trocada com os índios de uma aldeia mais abaixo, por uma faca, feita por ele mesmo com cabo, de chifre de veado vermelho, conhecido como veado-mateiro, de muito bem trabalhado.

Naquela noite, ainda a caminho do porto do seu Bigode, ouviu pelo radinho já arriando a noite, que no dia seguinte haveria um eclipse solar durante o dia, o locutor ainda salientava que, o dia ia virar noite ia escurecer tudo. Mas que diabo, como é que podia ser isso? O dia virar noite? Pra onde vai o sol? Procurou posição no estreito banquinho do timão, esperou mais notícias sobre o que acabara de ouvir, mas nada o locutor falou. Também, tinha acabado de sintonizar o radinho de pilha, mas, mesmo assim, diante do pouco que ouvira ficou muito pensativo, nunca tinha tido notícias de um negócio desses, isso só pode ser coisa do “coisa ruim”.

Depois do cumprimento normal, seu Antão puxou o amigo pro lado e lhe falou do tal do equips, seu Bigode arregalou os olhos, pediu para repetir, mas, nunca tinha ouvido falar disso, nem os mais antigos sabiam desse negócio de “equips”, mas podia ser coisa ruim, todos ficaram apreensivos com a notícias.

Seu Bigode agradeceu a seu Antão, e o convidou para jantar “mais” ele, queria saber mais dessa história do tal equips, o convite foi aceito, mas antes, precisava calafetar o batelão, que estava se enchendo d’água, e se deixasse do jeito que estava, de manhã podia estar no fundo. Seu Bigode concordou, saíram os dois para calafetar o batelão. Seu Bigode levou uma bola de estopa e alcatrão e foram atapulhar (Introduzir desordenadamente ou a força o buraco no casco, até tapar o furo) por sorte, o seu Bigode tinha um pouco de estopa alcatroada que usava no reparo de suas canoas. O trabalho foi extenso, para “desgotar” a água do casco, depois de seco, tamparam o furo que havia, foi só uma tábua do casco que havia rachado com o impacto e por ali entrava água, fizeram a tábua voltar para a posição, calafetaram tudo e o trabalho ficou completo em pouco mais de trinta minutos.

A janta era tracajá assado no casco, acompanhado com ensopado de jacaré tinga, variedade não muito comum no prato do seu Bigode, parecia que esperava visitas. O tracajá, ele tirou da boca do jacaré tinga de uns 1,5 metros, que havia calculado mal o tamanho de sua boca, e ao morder o tracajá, ficou com os dentes preso no casco, os dois lutavam pra se soltar um do outro, o seu Bigode chegou na hora e os agarrou, ao mesmo tempo, os convidou para o jantar daquela noite. Sorte do tracajá que não foi devorado pelo tinga, como também, a mesma sorte teve o tinga que ficou livre do tracajá. Se não fosse a intervenção do seu Bigode, talvez os dois tivessem morte trágica.

Durante a janta não se conversa nada, ali é ambiente de se comer, todos comem em silêncio, é costume no interior, depois, os dois saíram e foram para o terreiro pitar um porronca, mas para isso, mandou buscar um meio mói (molhe), depois migou (picou) com uma faca bem amoladinha, usou um cepo de cumaru-ferro, quando acabou, amontoou uma quantidade suficiente pros dois, enrolou no papelim, (um papel fino, usado para enrolar os cigarros artesanais), que sempre tinha à mão, acendeu e continuou a conversa do tal do equips.

Seu Bigode começou pelo lado mais direto da conversa. – “E aí meu amigo, me conte direito como é essa história do equips, por aqui, nunca ninguém tinha ouvido falar disso”. – “Então, o senhor não sabe o que é?” Perguntou o velho Antão, como se ele também fosse muito conhecedor de equips, mas, o pouco que sabia, e que tinha ouvido de relance no seu radinho de pilha, já bem no final da reportagem, coisa pouca, dizem que: “quem tem um olho, em terra de cego, é rei”. Ele mesmo tinha ficado curioso com o pouco que ouvira, mas, sabido como era, home de negócio, acostumado a engalobar os cabocos enquanto regateava, esticou um pouco do que ouviu e aumentou um ponto. Também dizem que, “quem conta um conto, aumenta um ponto”, falou que o dia ia virar noite de uma só vez, sem avisar nada, quem tivesse andando na mata, ia se perder, que de tão escura, não se enxergaria nada, nem que usasse vinte lamparinas da língua grossa. Seu Bigode, assustado com aquilo, só conseguiu dizer: – “Vixe nossa senhora!”. Depois da conversa, o regatão voltou para o barco, armou a rede e por lá se arriou. Sem saber, deixou o pobre do amigo na maior aflição, esta noite pouco pregou o sono. Malmente amanheceu, coisa de cinco e pouco, tocou horror em casa, botou todo mundo pra fora das suas redes e anunciou que hoje o sol ia deixar de alumiar o céu, ia virar noite que de tão escura não se veria nada. As mulheres começaram a chorar, a criançada sem saber do que as mães choravam, também se danaram a chorar mais alto, ficou uma gritaria que chamou a atenção do seu Antão, que ainda dormia lá no batelão, ancorado no pequeno porto de um tronco só, pulou da rede e veio de lá assustado, pensando no pior, “Será que deu onça na casa do home?” Ao pisar no terreiro, viu a confusão, muito diferente de quando chegou, havia um corre-corre, das mulheres e das crianças, que mais parecia o rebuliço de baratas, quando se desvira a caixa de abafamento, das pencas de bananas de vez.

O seu Bigode, acalmou todo mundo e deu as ordens, mulheres para a cozinha fazer comida, as mais novinhas, colher e limpar macaxeira, para as outras mais novinhas, pegar umas frangas, matar e depenar e assim, foi encaminhando cada uma, em suas tarefas doméstica, dizendo que, se o dia virar noite mesmo como dizem, não vai pegar a gente desprevenida, vamos logo preparar a boia que pelo menos agora a gente está vendo tudo. Seu Bigode mandou também uns curumins saírem nas veredas, para avisar os vizinhos mais distantes sobre esse tal de equips.

Molar
Enviado por Molar em 22/11/2020
Código do texto: T7117556
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