A Morte

Muitas e muitas histórias sobre a morte ouvira o pequeno Octávio. Parecendo-lhe que sentiam um gozo mórbido em lhas contar, ao verem-no arrepiar-se com tais histórias, sabendo do seu amor pelo avô, já bem velhinho.

Numa altura viu passar na rua um individuo de capa, completamente todo de negro e de gadanha no ombro. Pensando ser a morte o seu coração estremeceu, mas enchendo-se de coragem entabulou conversa com ele.

- O senhor é que é a morte? - Perguntou o pequeno.

Apanhado de surpresa, José Salgado ia para dar uma resposta torta; já o tinham chamado de muita coisa devido a trajar sempre de negro. Tísico, o Pro- costela, Só-osso, Estica, Esqueleto Ambulante, Gigante sem carne, e outros mimos devido à sua magreza e altura, mas associarem-no à figura da morte só porque o tempo apertava e a capa era uma mais-valia para o frio, era um pouco estranho. A gadanha que transportava nada mais era do que uma ferramenta que precisava de ser soldada, para isso viera ao ferreiro daquela aldeia.

Olhou para o pequenote e apeteceu-lhe brincar. Com a voz mais cavernosa que conseguiu, respondeu:

- Quem é o reles mortal que se atreve a dirigir-me palavra?

O pequeno recuou, meio assustado. Não restavam dúvidas, aquela sinistra figura é que era a morte. Era bem mais feio e alto do que o pintavam. Magro, pernas muito altas e aquela voz que parecia vinda do fundo de um túnel não enganava ninguém.

Diziam que só aqueles que iam morrer o viam…era o que contava o seu avô, que dizia ter visto a morte, por uma fracção de segundos, quando uma granada explodiu à sua frente na Flandres. Mas não era para si que a morte se mostrara, mas para o seu camarada ao lado.

- Sim, sou eu morte! Que me queres amostra de gente?

O garoto aterrorizado recuou um passo, perante o olhar inquisidor daquele ser sinistro que se dobrou como se quisesse vê-lo melhor.

- Não é pa…pa.. ra…mim. – Gaguejou o menino. – É pró meu avô que já é velhinho, mas não queria que o levasse já.

José sentiu um estranho arrepio perante tão louvável sentimento do garoto, ao mesmo tempo que uma vaidade maquiavélica o incentivava a prolongar os seus dotes dramáticos de actor na colectividade da aldeia.

- Está descansado que ainda não é a hora dele! – Soltou com voz rouca. – A tarefa que me traz aqui não se prende com ele.

O pequeno empalideceu. Submisso deitou os olhos ao chão e convenceu-se de que se não era pro avô era a ele que a morte vinha buscar. Duas lágrimas teimosas correram no pequeno rosto juvenil, mas era um homem e um homem não chora. Conformado com a sua sorte perguntou se poderia despedir-se da mãe.

José Salgado ao ver o rosto da criança chorando sentiu um baque no coração. Tinha que terminar com a farsa antes que o pequeno pegasse num choro pegado e alguém lhe pedisse explicações. Na oficina do ferreiro o cheiro do fumo da forja recordou-o ao que vinha. Tinha que acabar com a brincadeira. Todavia, o arrependimento, o estremecer do pequeno num choro silencioso emudeceram-no sem saber o que dizer.

Da oficina ouviu-se a voz grossa do mestre ferreiro:

- Pode vir. Estou pronto!

O garoto esbugalhou os olhos, e sem olhar para trás desatou a correr direito a casa. Afinal não era ele quem a morte vinha buscar. Já em casa tentou convencer a mãe que vira a morte.

- É verdade! Só que não era a mim que ela queria, era o senhor Tomé, o ferreiro. Eu bem ouvi ele dizer que esperava pela morte…

Nesse momento uma enorme explosão interrompeu a dissertação do petiz. Um enorme alarido soou lá para as bandas do ferreiro. O sino tocou a rebate e em pouco tempo a rua era um mar de gente que se interrogava sobre o que tinha acontecido.

O sistema artesanal de fabricar o gás com carbureto que em conjunto com o oxigénio de garrafa que lhe permitia soldar, explodira matando o ferreiro. Não havia sinais de mais ninguém apanhado pela explosão. A dúvida permanecia em todos os rostos interrogando-se como pudera tal coisa acontecer.

Apenas um tinha a resposta, era o pequeno Octávio, mas a ele ninguém ouvia.

Lorde
Enviado por Lorde em 15/11/2020
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