Imagem: Carlos Lopes
Texto produzido em coautoria: João Batista Stabile, Marina Alves, Celêdian Assis e Maria do Rosário Bessas.
Parte 1 — João Batista Stabile
|No seu confortável apartamento, num bairro de classe média alta na cidade do Rio de Janeiro, Maria da Conceição olhava o espelho. Ela não via uma senhora de 83 anos, mas a jovem que aos 18 anos de idade travou uma verdadeira batalha contra os padrões sociais da época, em nome de um ideal.
Enfrentou o preconceito de uma sociedade — que naquele tempo era mais machista que hoje, e o de uma tradicional família de imigrantes italianos, principalmente por parte de seu pai, um renomado médico, diretor de um hospital, numa cidade de grande porte no interior do Estado de São Paulo. Ambicioso e autoritário, o pai a tratava como a uma criança. Tinha em seu desfavor o fato de ser mulher e a caçula de cinco irmãos, sendo o mais velho também médico, e os outros três encaminhados profissionalmente, com as bênçãos do pai.
Maria da Conceição pôde contar apenas com o apoio de uma pessoa: a avó paterna, sua confidente desde criança, e cúmplice no seu plano de desviar-se do destino traçado por seu pai, que era o de mandá-la à capital de São Paulo, para ingressar na universidade e se preparar para a carreira acadêmica, como professora universitária. Sua mãe, apesar de em segredo torcer por ela, não teve coragem de se indispor com o marido, manteve-se neutra.
Quando num jantar de família ela comunicou a todos o que há muito vinha pensando, foi um alvoroço. Tentaram de todas as formas demovê-la de seu intento, até ameaças recebeu, mas não cedeu nem um milímetro. Buscava forças no olhar discreto, mas expressivo de sua protetora. Por fim, contra a vontade de todos, menos da avó que a ajudou com dinheiro de suas economias, partiu para o Rio de Janeiro em busca de realizar seu sonho....
Parte 2 — Marina Alves
Da janela do trem, Maria da Conceição vislumbrou as primeiras paisagens da belíssima metrópole, onde pretendia viver dali por diante. Ali estava seu mundo, sua vida e nada a faria mudar de ideia, ou voltar atrás: o Rio de Janeiro abrigava tudo que queria para si desde muito cedo, quando folheava as revistas que a mãe assinava. Ali haveria de realizar seus mais ousados desejos! E foi pensando nisso que ela saltou na estação e chamou o carro de aluguel que a levaria ao endereço que a avó secretamente lhe havia confiado na véspera de sua partida, quando conversaram por longo tempo a portas fechadas. Duas horas depois ela saltava à porta de um pequeno sobrado onde se lia “Há vagas para moças” e apresentava-se ao senhorio:
— Con Ricceli! — disse estendendo a mão direita para cumprimentar o homem baixinho e atarracado que viera atendê-la.
Após acomodar os poucos pertences da pequena mala e tomar uma boa chuveirada para descansar o corpo cansado da viagem, a moça sentou-se numa cadeira de palhinha postada ao lado da cama. Retirou da maleta de mão um espelho oval, com cabo de madrepérola que a avó lhe dera também na véspera. Olhou-se demoradamente e o que viu a deixou muito satisfeita: cabelos louros cacheados, o lindo rosto de pele fina e branca, olhos claros de uma limpidez espantosa, a boca de lábios cheios e bem desenhados, sobrancelhas espessas e bem traçadas, conforme os ditames da moda. Não havia dúvida: Con Ricceli — que era como seria chamada e reconhecida dali por diante, era uma mulher lindíssima. Sim! A beleza lhe abriria as portas do sucesso... Além, é claro, da voz, seu mais caro e poderoso atributo! Sorriu para si, refletindo no espelho a fileira de pérolas dos dentes perfeitos. A vida era bela! E ela também!
Após uma noite de sono repousante, em que evitou pensar no que deixara para trás, Con levantou-se com uma disposição que não sentia, há anos. Arrumou-se com extremado zelo, vestindo o que tinha de melhor. Chamou um carro, desta vez, para levá-la a outro endereço cuidadosamente pesquisado e anotado em sua cadernetinha azul: o da Rádio Litoral...
Parte 3 — Celêdian Assis
Em pouco mais de meia hora lá estava ela, fascinada, diante daquele prédio que nada tinha de imponente, mas por estar diante da possibilidade de realizar o que sempre sonhara. Con ficou alguns minutos ali parada, tomando coragem para entrar. Já na portaria se deparou com o primeiro obstáculo: ao se apresentar e dizer que precisava falar com Cassiano Duarte, foi questionada pelo porteiro, se havia marcado entrevista e por quem havia sido indicada. Ao responder que não marcara e que não havia nenhuma indicação, que estava ali pelo anúncio de um show de calouros, recebeu dele uma resposta seca e nada amistosa, que as inscrições já estavam encerradas e que não conseguiria falar com o famoso Radialista. Ela agradeceu e saiu dali desolada, mas sem desistir de achar uma saída, pensaria em alguma estratégia e voltaria a Rádio. Andou a esmo pela Cidade Maravilhosa horas a fio, observando tudo à sua volta, deslumbrada com tantas novidades. Retornou exausta à pensão. Dormiu mal, pois ficara maquinando ideias do que poderia fazer.
No dia seguinte, bem cedo, aprontou-se e decidida voltou a Rádio. Levava consigo um bilhete que ela mesma escrevera e no qual simulava a recomendação de alguém importante, um nome famoso que por acaso ouvira em um programa de rádio. Por sorte, o porteiro não era o mesmo do dia anterior e enquanto ele fazia-lhe as mesmas perguntas do anterior, mostrou-lhe o bilhete e ele prontamente, sem nenhuma resistência a mais, a encaminhou à presença de Senhor Cassiano.
Ao vê-lo, ficou espantada, pois esperava encontrar alguém mais velho, mas era um rapaz que aparentava aproximadamente 30 anos, muito magro, pálido e com os cabelos mal arrumados. De cabeça baixa, vendo alguns papéis e sem sequer fitá-la, ele perguntou a Con do que se tratava a sua visita. Ainda meio desconcertada, optou por não continuar mentindo e afobadamente contou-lhe sobre o falso bilhete que forjara e também uma breve história sobre a relutância da família pela sua decisão de tornar-se cantora. Contou também que viera do interior de São Paulo atraída pelo anúncio do show de calouros, mas encerradas as inscrições ficou sem rumo, pois tratava-se da grande oportunidade de sua vida, de mostrar o seu talento musical. Foi então que Cassiano a olhou pela primeira vez, e extasiado pela sua beleza, perguntou qual o seu nome e a sua idade. Con, ainda de pé diante dele, sentiu-se um pouco constrangida com aquele olhar perplexo que parecia desnudá-la, mas que ao mesmo tempo revelava certa ternura. Ele, ainda sem saber exatamente o que decidir, disse a ela que voltasse no dia seguinte e que veria o que poderia fazer. Ela agradeceu efusivamente e saiu dali direto para a pensão, sabia que seria um longo dia e uma longa noite de muita ansiedade.
Amanheceu, e Con tratou de vestir a sua melhor roupa, de pentear-se com esmero, de passar o seu batom preferido e lá se foiem busca de seu destino. Só não contava com uma surpresa que tomou conhecimento ao chegar a Rádio...
Parte 4 — Maria do Rosário
Chegando ao hall de entrada, foi recebida pelo mesmo porteiro do dia anterior que a informou da mudança do local do ensaio para o programa e que ela estaria entre os selecionados, se fizesse uma boa apresentação. Con sentiu o coração bater forte, apanhou o papel com o endereço e novamente entrou num táxi que a levou ao seu destino. Achou estranho o silêncio e o vazio do lugar, mas tomou o elevador e subiu para o sexto andar, onde seria o ensaio. Ali chegando, tocou a campainha, a porta se abriu e do outro lado lá estava Cassiano, com um olhar bem mais atencioso que o do dia anterior. Convidou-a a entrar e ela estranhou não ver mais ninguém. Perguntou se seria ali mesmo o ensaio do programa, ao que ele respondeu com um sorriso enigmático que havia reservado uma audição apenas para ela. Con sentiu-se desconfortável com a resposta, olhou para os lados e, de repente, seu olhar doce e sereno foi ganhando traços de desconfiança e medo. Percebendo a sua reação, Cassiano disse que poderia ficar à vontade, que dali a pouco chegaria um pianista para acompanhá-la, que deveria estar atrasado.Pediu que ela se sentasse, o que ela fez, meio a contragosto. Passados alguns minutos, em que um silêncio estranho pairava no ar, Cassiano começou a perguntar de sua vida, de onde viera, que planos tinha para o futuro. Ela começou a falar de si meio timidamente, mas aos poucos foi se revelando, deixando que ele conhecesse um pouco do seu perfil, sem entrar muito em detalhes. Pouco a pouco, ele foi se aproximando, e sem que ela esperasse, de repente, pegou uma de suas mãos. Ao ver seu olhar assustado, falou calmamente:
— Calma, menina linda! Só quero ver se você tem mãos de fada ou de musicista. Toca algum instrumento ou apenas canta?
— Apenas piano, mas prefiro só cantar. É meu sonho, desde menina, ser uma grande cantora, um dia. Vim para o Rio em busca de uma carreira no ramo da música. Será que vamos demorar?
— Bem, vou ser franco com você. Não estamos esperando ninguém. Pedi que viesse aqui porque queria vê-la, sozinho. Percebi que é uma boa moça e não queria que você fosse exposta em meio a uma centena de calouros e jurados sem paciência para quem está começando. Queria que você cantasse sozinha para mim. É possível?
Cassiano a olhou de um jeito tão terno e ansioso, que ela, de repente, sentiu-se um pouco mais aliviada e mais à vontade. Mostrou-lhe o piano no fundo da sala, e ela timidamente começou a soltar as primeiras notas. Quando definiu o que queria, soltou a voz devagarinho. E, de repente, a música Lábios de Mel ecoou pela sala, primeiro baixinho, depois até superando a interpretação maravilhosa que ele ouvira da cantora Ângela Maria. Ele a ouviu emocionado, e ficou sem palavras quando o último acorde trouxe o silêncio de volta.
— Menina, estou maravilhado! Meu sexto sentido estava certíssimo quando não me deixou lhe expor no teatro da Rádio. Você nasceu para cantar. Não acredito no que acabei de ver e ouvir. Você tem uma voz de anjo, com a força de uma leoa cantando. Nem sei o que dizer.
Con ouvia constrangida, meio encabulada, mas já se sentindo encorajada pelo entusiasmo do Radialista. Resolveram sair e combinar o programa, e foram andando juntos pela avenida, enquanto esperavam um táxi. Ele a convidou para um café, já que estava ficando tarde, e ela aceitou. Conversaram no café como se já se conhecessem há muito tempo e, de repente, ela se assustou ao sentir que estava começando a se sentir atraída por ele. “Deve ser natural isso, pensou. Ele está me ajudando a realizar um sonho, gostou da minha voz e isso está despertando minha simpatia. Para Cassiano Duarte, eu devo ser só mais uma que ele ajuda na carreira artística”.
Mas não era. Desde o primeiro programa, Cassiano mostrou-se totalmente atencioso com ela, pedia que ela o esperasse até terminar seu horário e sempre iam almoçar juntos, ou passear para que ele lhe mostrasse a Cidade Maravilhosa. Quando percebeu, estavam namorando. Ele apaixonado pela sua beleza, simplicidade e talento, e ela, pela atenção e carinho que ele demonstrou, desde o primeiro encontro. Tudo ia bem, até que Com recebeu o convite para gravar o primeiro compacto. Ela correu ao encontro dele para contar a grande novidade, mas a expressão que viu em seu olhar a desarmou e a deixou sem palavras:
— Jamais, Con!! Nossa vida está ótima como está, nós dois estamos a cada dia mais apaixonados, quero construir minha vida ao seu lado. Você é tudo que sonhei, mas não quero dividir minha futura esposa com o palco, seja do que for. Quero que você cante só para mim, no nosso círculo de amizades. Não quero que você perca essa ternura e essa pureza na sujeira do mundo artístico. Você não sabe como é a vida de quem entra nesse círculo vicioso, em que a rivalidade impera e cada um quer passar por cima do outro. A luta pelo sucesso é cheia de espinhos e eu não vou deixar você se machucar.
Ela ficou em silêncio, sem saber o que dizer, mas sentiu o chão fugir-lhe aos pés, quando ouviu palavra por palavra. Como ele podia estar falando assim, se sabia que o motivo de sua vinda para o Rio era a luta pela carreira? Como podia, de repente, sentir-se dono do seu destino? Olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas e sentiu o coração explodir, porque sabia que das suas palavras dependia seu destino...
Final — João Batista Stabile
Con disse secamente:
— Amanhã conversamos sobre isso! — e foi embora.
Eles namoravam havia quatro anos, ela morava num modesto apartamento. Já em casa, Con não conseguia acreditar no que estava acontecendo, e pensava: “Eu não briguei com toda a minha família e com alguns amigos que não aprovaram minha decisão, para chegar aqui e outro homem controlar minha vida. Isso nunca!”. Dormiu mal naquela noite, mas acordou decidida: “Se é esse o preço, vou pagar!”.
No caminho para a Rádio em que Cassiano trabalhava, ela ia pensando e juntando as coisas. Ele sabia que seu objetivo era se apresentar num programa da Rádio Nacional. No entanto, não demonstrava interesse nisso, sempre com a desculpa de que queria prepará-la primeiro, pois a concorrência era grande e não queria que fracassasse. Com isso, ia levando-a com algumas apresentações em outras Rádios, cantando em boates ou em festas com os amigos dele, que ela acabara conhecendo. E sempre que tinha uma oportunidade dava a entender que ela deveria continuar assim, que o caminho da fama era muito perigoso e não o agradava.
Con Ricceli chegou decidida e disse sem rodeios, antes que fraquejasse:
—Cassiano, eu não admito que você decida por mim. Vim para o Rio de Janeiro com o objetivo de ser uma cantora de Rádio, profissional. Vou conseguir isso, com ou sem você, essa é a única decisão que lhe cabe. Disse isso com o coração apertado, pois o amava.
Ele, surpreso com a determinação da moça, ficou sem reação. Pensando que ela iria voltar e suplicar sua ajuda, disse apenas:
— Está bem! Se é isso que você quer... Siga em frente, se conseguir! Mas não conte comigo, nosso relacionamento acaba aqui.
Foi a última vez que conversaram. Ela, mesmo sofrendo não voltou atrás. Foi mais difícil dali por diante, pois algumas portas se fecharam com o fim do relacionamento, mas gravou o LP, e manteve-se firme no seu propósito de cantar na Rádio Nacional.
Con mantinha a avó informada, por carta, de tudo que lhe acontecia. Quando ela já estava meio cansada daquela peregrinação por Rádios e shows, um golpe de sorte fez com que conhecesse nada menos que a estrela do Rádio, Ângela Maria. Encontrou-a, por acaso, num café, e nem se lembrava direito como foi, mas conseguiu contar sua história e deu-lhe um disco de presente. Ângela prometeu que iria ouvir com carinho, que a procurasse dentro de três dias. Com Ricceli foi para casa, maravilhada. Não acreditava que tinha conhecido pessoalmente a famosa cantora. Passados os três dias, foi procurá-la. Ângela Maria a tratou com cortesia e disse:
— Você é uma lutadora como eu. Gostei do seu disco, vou apresentá-la a um amigo que tem um programa na Rádio Nacional, daí para frente é por sua conta.
Foi a partir daí que as coisas melhoraram. Ela conseguiu um contrato com a Rádio Nacional, vieram outros LPs. Enfim, a fama! Em pouco tempo, tornou-se a sensação do Rádio, concentrou-se em sua carreira fechando seu coração para o amor. Até teve alguns envolvimentos com outros homens, mas nada sério, não suportava que se metessem em sua vida.
Um dia, passado um tempo, Con recebeu uma carta de sua mãe comunicando o falecimento de sua avó. Mas dizia para não ficar triste, que ela morrera feliz, sabendo que sua neta preferida era uma famosa cantora de Rádio. Dizia ainda a carta que seu pai, agora aposentado, todas as noites após o jantar, sentava-se em sua poltrona, para ouvi-la cantar no Rádio, ou mesmo na vitrola tocando seus discos. E que por várias vezes o viu com o rosto banhado de lágrimas que poderiam ser de arrependimento, saudade ou orgulho.
Con Ricceli, ainda olhando no espelho oval de cabo de madrepérola, presente da sua querida avó, pensava: “Paguei um alto preço por tudo isso, pois gostaria de ter tido marido e filhos, uma família como outras cantoras têm”. Mas ao mesmo tempo, pensava: “A vida é feita de escolhas e eu fiz a minha! Não me arrependo de nada que fiz. Se pudesse voltar no tempo faria tudo novamente se necessário fosse”.
Texto produzido em coautoria: João Batista Stabile, Marina Alves, Celêdian Assis e Maria do Rosário Bessas.
Parte 1 — João Batista Stabile
|No seu confortável apartamento, num bairro de classe média alta na cidade do Rio de Janeiro, Maria da Conceição olhava o espelho. Ela não via uma senhora de 83 anos, mas a jovem que aos 18 anos de idade travou uma verdadeira batalha contra os padrões sociais da época, em nome de um ideal.
Enfrentou o preconceito de uma sociedade — que naquele tempo era mais machista que hoje, e o de uma tradicional família de imigrantes italianos, principalmente por parte de seu pai, um renomado médico, diretor de um hospital, numa cidade de grande porte no interior do Estado de São Paulo. Ambicioso e autoritário, o pai a tratava como a uma criança. Tinha em seu desfavor o fato de ser mulher e a caçula de cinco irmãos, sendo o mais velho também médico, e os outros três encaminhados profissionalmente, com as bênçãos do pai.
Maria da Conceição pôde contar apenas com o apoio de uma pessoa: a avó paterna, sua confidente desde criança, e cúmplice no seu plano de desviar-se do destino traçado por seu pai, que era o de mandá-la à capital de São Paulo, para ingressar na universidade e se preparar para a carreira acadêmica, como professora universitária. Sua mãe, apesar de em segredo torcer por ela, não teve coragem de se indispor com o marido, manteve-se neutra.
Quando num jantar de família ela comunicou a todos o que há muito vinha pensando, foi um alvoroço. Tentaram de todas as formas demovê-la de seu intento, até ameaças recebeu, mas não cedeu nem um milímetro. Buscava forças no olhar discreto, mas expressivo de sua protetora. Por fim, contra a vontade de todos, menos da avó que a ajudou com dinheiro de suas economias, partiu para o Rio de Janeiro em busca de realizar seu sonho....
Parte 2 — Marina Alves
Da janela do trem, Maria da Conceição vislumbrou as primeiras paisagens da belíssima metrópole, onde pretendia viver dali por diante. Ali estava seu mundo, sua vida e nada a faria mudar de ideia, ou voltar atrás: o Rio de Janeiro abrigava tudo que queria para si desde muito cedo, quando folheava as revistas que a mãe assinava. Ali haveria de realizar seus mais ousados desejos! E foi pensando nisso que ela saltou na estação e chamou o carro de aluguel que a levaria ao endereço que a avó secretamente lhe havia confiado na véspera de sua partida, quando conversaram por longo tempo a portas fechadas. Duas horas depois ela saltava à porta de um pequeno sobrado onde se lia “Há vagas para moças” e apresentava-se ao senhorio:
— Con Ricceli! — disse estendendo a mão direita para cumprimentar o homem baixinho e atarracado que viera atendê-la.
Após acomodar os poucos pertences da pequena mala e tomar uma boa chuveirada para descansar o corpo cansado da viagem, a moça sentou-se numa cadeira de palhinha postada ao lado da cama. Retirou da maleta de mão um espelho oval, com cabo de madrepérola que a avó lhe dera também na véspera. Olhou-se demoradamente e o que viu a deixou muito satisfeita: cabelos louros cacheados, o lindo rosto de pele fina e branca, olhos claros de uma limpidez espantosa, a boca de lábios cheios e bem desenhados, sobrancelhas espessas e bem traçadas, conforme os ditames da moda. Não havia dúvida: Con Ricceli — que era como seria chamada e reconhecida dali por diante, era uma mulher lindíssima. Sim! A beleza lhe abriria as portas do sucesso... Além, é claro, da voz, seu mais caro e poderoso atributo! Sorriu para si, refletindo no espelho a fileira de pérolas dos dentes perfeitos. A vida era bela! E ela também!
Após uma noite de sono repousante, em que evitou pensar no que deixara para trás, Con levantou-se com uma disposição que não sentia, há anos. Arrumou-se com extremado zelo, vestindo o que tinha de melhor. Chamou um carro, desta vez, para levá-la a outro endereço cuidadosamente pesquisado e anotado em sua cadernetinha azul: o da Rádio Litoral...
Parte 3 — Celêdian Assis
Em pouco mais de meia hora lá estava ela, fascinada, diante daquele prédio que nada tinha de imponente, mas por estar diante da possibilidade de realizar o que sempre sonhara. Con ficou alguns minutos ali parada, tomando coragem para entrar. Já na portaria se deparou com o primeiro obstáculo: ao se apresentar e dizer que precisava falar com Cassiano Duarte, foi questionada pelo porteiro, se havia marcado entrevista e por quem havia sido indicada. Ao responder que não marcara e que não havia nenhuma indicação, que estava ali pelo anúncio de um show de calouros, recebeu dele uma resposta seca e nada amistosa, que as inscrições já estavam encerradas e que não conseguiria falar com o famoso Radialista. Ela agradeceu e saiu dali desolada, mas sem desistir de achar uma saída, pensaria em alguma estratégia e voltaria a Rádio. Andou a esmo pela Cidade Maravilhosa horas a fio, observando tudo à sua volta, deslumbrada com tantas novidades. Retornou exausta à pensão. Dormiu mal, pois ficara maquinando ideias do que poderia fazer.
No dia seguinte, bem cedo, aprontou-se e decidida voltou a Rádio. Levava consigo um bilhete que ela mesma escrevera e no qual simulava a recomendação de alguém importante, um nome famoso que por acaso ouvira em um programa de rádio. Por sorte, o porteiro não era o mesmo do dia anterior e enquanto ele fazia-lhe as mesmas perguntas do anterior, mostrou-lhe o bilhete e ele prontamente, sem nenhuma resistência a mais, a encaminhou à presença de Senhor Cassiano.
Ao vê-lo, ficou espantada, pois esperava encontrar alguém mais velho, mas era um rapaz que aparentava aproximadamente 30 anos, muito magro, pálido e com os cabelos mal arrumados. De cabeça baixa, vendo alguns papéis e sem sequer fitá-la, ele perguntou a Con do que se tratava a sua visita. Ainda meio desconcertada, optou por não continuar mentindo e afobadamente contou-lhe sobre o falso bilhete que forjara e também uma breve história sobre a relutância da família pela sua decisão de tornar-se cantora. Contou também que viera do interior de São Paulo atraída pelo anúncio do show de calouros, mas encerradas as inscrições ficou sem rumo, pois tratava-se da grande oportunidade de sua vida, de mostrar o seu talento musical. Foi então que Cassiano a olhou pela primeira vez, e extasiado pela sua beleza, perguntou qual o seu nome e a sua idade. Con, ainda de pé diante dele, sentiu-se um pouco constrangida com aquele olhar perplexo que parecia desnudá-la, mas que ao mesmo tempo revelava certa ternura. Ele, ainda sem saber exatamente o que decidir, disse a ela que voltasse no dia seguinte e que veria o que poderia fazer. Ela agradeceu efusivamente e saiu dali direto para a pensão, sabia que seria um longo dia e uma longa noite de muita ansiedade.
Amanheceu, e Con tratou de vestir a sua melhor roupa, de pentear-se com esmero, de passar o seu batom preferido e lá se foiem busca de seu destino. Só não contava com uma surpresa que tomou conhecimento ao chegar a Rádio...
Parte 4 — Maria do Rosário
Chegando ao hall de entrada, foi recebida pelo mesmo porteiro do dia anterior que a informou da mudança do local do ensaio para o programa e que ela estaria entre os selecionados, se fizesse uma boa apresentação. Con sentiu o coração bater forte, apanhou o papel com o endereço e novamente entrou num táxi que a levou ao seu destino. Achou estranho o silêncio e o vazio do lugar, mas tomou o elevador e subiu para o sexto andar, onde seria o ensaio. Ali chegando, tocou a campainha, a porta se abriu e do outro lado lá estava Cassiano, com um olhar bem mais atencioso que o do dia anterior. Convidou-a a entrar e ela estranhou não ver mais ninguém. Perguntou se seria ali mesmo o ensaio do programa, ao que ele respondeu com um sorriso enigmático que havia reservado uma audição apenas para ela. Con sentiu-se desconfortável com a resposta, olhou para os lados e, de repente, seu olhar doce e sereno foi ganhando traços de desconfiança e medo. Percebendo a sua reação, Cassiano disse que poderia ficar à vontade, que dali a pouco chegaria um pianista para acompanhá-la, que deveria estar atrasado.Pediu que ela se sentasse, o que ela fez, meio a contragosto. Passados alguns minutos, em que um silêncio estranho pairava no ar, Cassiano começou a perguntar de sua vida, de onde viera, que planos tinha para o futuro. Ela começou a falar de si meio timidamente, mas aos poucos foi se revelando, deixando que ele conhecesse um pouco do seu perfil, sem entrar muito em detalhes. Pouco a pouco, ele foi se aproximando, e sem que ela esperasse, de repente, pegou uma de suas mãos. Ao ver seu olhar assustado, falou calmamente:
— Calma, menina linda! Só quero ver se você tem mãos de fada ou de musicista. Toca algum instrumento ou apenas canta?
— Apenas piano, mas prefiro só cantar. É meu sonho, desde menina, ser uma grande cantora, um dia. Vim para o Rio em busca de uma carreira no ramo da música. Será que vamos demorar?
— Bem, vou ser franco com você. Não estamos esperando ninguém. Pedi que viesse aqui porque queria vê-la, sozinho. Percebi que é uma boa moça e não queria que você fosse exposta em meio a uma centena de calouros e jurados sem paciência para quem está começando. Queria que você cantasse sozinha para mim. É possível?
Cassiano a olhou de um jeito tão terno e ansioso, que ela, de repente, sentiu-se um pouco mais aliviada e mais à vontade. Mostrou-lhe o piano no fundo da sala, e ela timidamente começou a soltar as primeiras notas. Quando definiu o que queria, soltou a voz devagarinho. E, de repente, a música Lábios de Mel ecoou pela sala, primeiro baixinho, depois até superando a interpretação maravilhosa que ele ouvira da cantora Ângela Maria. Ele a ouviu emocionado, e ficou sem palavras quando o último acorde trouxe o silêncio de volta.
— Menina, estou maravilhado! Meu sexto sentido estava certíssimo quando não me deixou lhe expor no teatro da Rádio. Você nasceu para cantar. Não acredito no que acabei de ver e ouvir. Você tem uma voz de anjo, com a força de uma leoa cantando. Nem sei o que dizer.
Con ouvia constrangida, meio encabulada, mas já se sentindo encorajada pelo entusiasmo do Radialista. Resolveram sair e combinar o programa, e foram andando juntos pela avenida, enquanto esperavam um táxi. Ele a convidou para um café, já que estava ficando tarde, e ela aceitou. Conversaram no café como se já se conhecessem há muito tempo e, de repente, ela se assustou ao sentir que estava começando a se sentir atraída por ele. “Deve ser natural isso, pensou. Ele está me ajudando a realizar um sonho, gostou da minha voz e isso está despertando minha simpatia. Para Cassiano Duarte, eu devo ser só mais uma que ele ajuda na carreira artística”.
Mas não era. Desde o primeiro programa, Cassiano mostrou-se totalmente atencioso com ela, pedia que ela o esperasse até terminar seu horário e sempre iam almoçar juntos, ou passear para que ele lhe mostrasse a Cidade Maravilhosa. Quando percebeu, estavam namorando. Ele apaixonado pela sua beleza, simplicidade e talento, e ela, pela atenção e carinho que ele demonstrou, desde o primeiro encontro. Tudo ia bem, até que Com recebeu o convite para gravar o primeiro compacto. Ela correu ao encontro dele para contar a grande novidade, mas a expressão que viu em seu olhar a desarmou e a deixou sem palavras:
— Jamais, Con!! Nossa vida está ótima como está, nós dois estamos a cada dia mais apaixonados, quero construir minha vida ao seu lado. Você é tudo que sonhei, mas não quero dividir minha futura esposa com o palco, seja do que for. Quero que você cante só para mim, no nosso círculo de amizades. Não quero que você perca essa ternura e essa pureza na sujeira do mundo artístico. Você não sabe como é a vida de quem entra nesse círculo vicioso, em que a rivalidade impera e cada um quer passar por cima do outro. A luta pelo sucesso é cheia de espinhos e eu não vou deixar você se machucar.
Ela ficou em silêncio, sem saber o que dizer, mas sentiu o chão fugir-lhe aos pés, quando ouviu palavra por palavra. Como ele podia estar falando assim, se sabia que o motivo de sua vinda para o Rio era a luta pela carreira? Como podia, de repente, sentir-se dono do seu destino? Olhou para ele com os olhos cheios de lágrimas e sentiu o coração explodir, porque sabia que das suas palavras dependia seu destino...
Final — João Batista Stabile
Con disse secamente:
— Amanhã conversamos sobre isso! — e foi embora.
Eles namoravam havia quatro anos, ela morava num modesto apartamento. Já em casa, Con não conseguia acreditar no que estava acontecendo, e pensava: “Eu não briguei com toda a minha família e com alguns amigos que não aprovaram minha decisão, para chegar aqui e outro homem controlar minha vida. Isso nunca!”. Dormiu mal naquela noite, mas acordou decidida: “Se é esse o preço, vou pagar!”.
No caminho para a Rádio em que Cassiano trabalhava, ela ia pensando e juntando as coisas. Ele sabia que seu objetivo era se apresentar num programa da Rádio Nacional. No entanto, não demonstrava interesse nisso, sempre com a desculpa de que queria prepará-la primeiro, pois a concorrência era grande e não queria que fracassasse. Com isso, ia levando-a com algumas apresentações em outras Rádios, cantando em boates ou em festas com os amigos dele, que ela acabara conhecendo. E sempre que tinha uma oportunidade dava a entender que ela deveria continuar assim, que o caminho da fama era muito perigoso e não o agradava.
Con Ricceli chegou decidida e disse sem rodeios, antes que fraquejasse:
—Cassiano, eu não admito que você decida por mim. Vim para o Rio de Janeiro com o objetivo de ser uma cantora de Rádio, profissional. Vou conseguir isso, com ou sem você, essa é a única decisão que lhe cabe. Disse isso com o coração apertado, pois o amava.
Ele, surpreso com a determinação da moça, ficou sem reação. Pensando que ela iria voltar e suplicar sua ajuda, disse apenas:
— Está bem! Se é isso que você quer... Siga em frente, se conseguir! Mas não conte comigo, nosso relacionamento acaba aqui.
Foi a última vez que conversaram. Ela, mesmo sofrendo não voltou atrás. Foi mais difícil dali por diante, pois algumas portas se fecharam com o fim do relacionamento, mas gravou o LP, e manteve-se firme no seu propósito de cantar na Rádio Nacional.
Con mantinha a avó informada, por carta, de tudo que lhe acontecia. Quando ela já estava meio cansada daquela peregrinação por Rádios e shows, um golpe de sorte fez com que conhecesse nada menos que a estrela do Rádio, Ângela Maria. Encontrou-a, por acaso, num café, e nem se lembrava direito como foi, mas conseguiu contar sua história e deu-lhe um disco de presente. Ângela prometeu que iria ouvir com carinho, que a procurasse dentro de três dias. Com Ricceli foi para casa, maravilhada. Não acreditava que tinha conhecido pessoalmente a famosa cantora. Passados os três dias, foi procurá-la. Ângela Maria a tratou com cortesia e disse:
— Você é uma lutadora como eu. Gostei do seu disco, vou apresentá-la a um amigo que tem um programa na Rádio Nacional, daí para frente é por sua conta.
Foi a partir daí que as coisas melhoraram. Ela conseguiu um contrato com a Rádio Nacional, vieram outros LPs. Enfim, a fama! Em pouco tempo, tornou-se a sensação do Rádio, concentrou-se em sua carreira fechando seu coração para o amor. Até teve alguns envolvimentos com outros homens, mas nada sério, não suportava que se metessem em sua vida.
Um dia, passado um tempo, Con recebeu uma carta de sua mãe comunicando o falecimento de sua avó. Mas dizia para não ficar triste, que ela morrera feliz, sabendo que sua neta preferida era uma famosa cantora de Rádio. Dizia ainda a carta que seu pai, agora aposentado, todas as noites após o jantar, sentava-se em sua poltrona, para ouvi-la cantar no Rádio, ou mesmo na vitrola tocando seus discos. E que por várias vezes o viu com o rosto banhado de lágrimas que poderiam ser de arrependimento, saudade ou orgulho.
Con Ricceli, ainda olhando no espelho oval de cabo de madrepérola, presente da sua querida avó, pensava: “Paguei um alto preço por tudo isso, pois gostaria de ter tido marido e filhos, uma família como outras cantoras têm”. Mas ao mesmo tempo, pensava: “A vida é feita de escolhas e eu fiz a minha! Não me arrependo de nada que fiz. Se pudesse voltar no tempo faria tudo novamente se necessário fosse”.