ACABOU VIRANDO O CONTO DO DIA
A campainha tocou numa hora muito imprópria. Eu não estava apenas com os usuais afazeres domésticos, estava mais impossibilitado ainda. Estava no trono. Ora, isso leva não só um tempinho maior, mas prende mais que a prisão que o ventre exige para completar a obra, pois tem o dispêndio da higiene posterior.
O fato é que o autor do disparo da campainha normalmente não leva qualquer possibilidade de demora em consideração. Simplesmente repete o toque e até insiste, como foi o caso deste de hoje.Mas enfim o anunciante teve que aguardar ser atendido o tempo que me foi possível.
Aqui em casa a porta da rua fica distante do portão onde está a campainha e o passeio público. No jardim na frente da casa tem uma rampa com escada que me leva até lá no portão onde o interfone não esta’ funcionando. E hoje o dia está sob aquela chuva fina molhando a rampa escorregadia.
Desci assim mesmo até meia rampa e gritei: “ pronto! O que deseja ?”. Não consegui ouvir direito a resposta do indivíduo agarrado ao portão. Além da minha já fraca audição, o indivíduo, com estampa de pedinte e faminto, balbuciou o inaudível. Além do que, o trânsito de carros e motos que sobem a rua íngrime acelerando não é pouco. Resultado, tive que descer até o portão para atender.
— Muito bem, o que deseja ?
— Não sou daqui e não tenho ninguém e estou doente, preciso de remédio...
Pode me dar algum trocado para eu me curar? O Sr. Jesus vai te abençoar por isso...
Entendi de imediato que aquela fala baixa, inclusive com a melodia de súplica decorada, já era muito mais velha e usada do que a urgência clamada.
Então perguntei direto, tipo “papo reto”: — sabe em que cidade está?
Assustado com a incomum pergunta vacilou: — sei...é Juiz de Fora...
— Pois então lhe digo: esta cidade como muitas outras estão dentro do Brasil. E ainda ontem um amigo meu, que mora em São Paulo, me disse pelo celular que o Brasil é um país doente, muito doente...
Ele reagiu tentando reforçar sua individualidade: — Eu não sou o Brasil, sou eu que estou pedindo. Eu que estou precisando agora, não o Brasil.
Bem, resolvi encerrar o atendimento no meu portão, já bem molhado e correndo o risco de um resfriado além de estar a menos de dois metros de um estranho em tempo de pandemia: “Olha, aqui não tenho remédios e nem dinheiro pois uso cartão.”
Voltei pra dentro de casa sofrendo com mais essa doença de sentir culpado pela falta de socorro. Meu subconsciente desatando a ruminar minha mente com aquela parábola bíblica de Lucas do Bom Samaritano, inculcada em mim desde as aulas de religião no currículo escolar: o moribundo só é socorrido pelo bom samaritano...
Que solução encontrei ante tal confusão humana? Voltei ao banheiro onde tudo começou. Lá, diante do espelho sobre a pia perguntei: “ Espelho meu, sabes de alguém que esta charada já resolveu?” Ele em mim respondeu: “ se o Brasil depender dos seus dirigentes fudeu”.