Um conto da Serra

Há muito tempo, na Serra Gaúcha, lá no Rio Grande do Sul, ocorreu um julgamento que mudou a ordem natural de toda uma espécie. Foi a história do conflito entre Abaçaí e Abaetê, e ela começa assim:

Num dia comum, Abaruna, um belo macho chupim negro, observava atentamente enquanto Abaetê, uma pequena tico-tico, construía seu ninho para em breve depositar seus ovos.

Para Abaruna, não restavam dúvidas: seria ali o local onde ele e Abaçaí, sua companheira, depositariam seu ovo.

Abaruna, por ser um espírito livre, não tinha a menor pretensão de ter uma família, tampouco de se apegar a alguém. Deste modo convenceu Abaçaí de que seria melhor para ambos não ter a responsabilidade de criar um filhote. Já Abaçaí que era completamente apaixonada por Abaruna não ousava contrariá-lo, por medo de perdê-lo e ficar só.

Passaram-se poucos dias desde a escolha do "alvo" do casal e o depósito foi feito. Abaçaí deixou seu ovo no ninho de Abaetê enquanto a mesma estava fora procurando por mais galhos para dar os toques finais em seu trabalho.

Ao retornar, Abaetê se surpreendeu quando encontrou um pequeno ovo em seu ninho. Por um segundo pensou em abandoná-lo, mas esse pensamento logo se dissipou devido a seu enorme coração. Ela resolveu ficar com o ovo que não lhe pertencia, pois acreditava que nenhuma ave deveria ser abandonada.

Poucos dias depois, Abaetê pôs seus próprios ovos, e aquele que já se encontrava ali ganhou três pequenos irmãos.

Os dias se passaram e a pequena Abaetê cuidava de seus quatro ovos sem nenhuma diferença entre eles. Para ela todos eram seus filhos igualmente.

Tudo ia bem até a noite em que uma tempestade assolou a Serra. Abaetê se esforçava para proteger seus ovos, enfrentando fortes rajadas de ventos e raios assustadores. Mas mesmo dando seu melhor, ainda era muito pequena e foi arremessada para longe quando um galho atingiu seu ninho.

Pela manhã a chuva havia passado. Ao retomar a consciência a pequena tico-tico saiu desesperada a procura de seus ovos, mas não havia restado nenhum com exceção de seu pequeno adotado. Abaetê ficou desolada, mas aquele ovo ainda enchia seu coração de esperança.

Diante da situação, onde não tinha mais seus próprios ovos, Abaetê prometeu que nunca abandonaria e protegeria para sempre aquele que havia restado. Ela se reergueu, reconstruiu o ninho e voltou a chocar o ovo abandonado.

Depois de um tempo o ovo eclodiu e o filhote recebeu o nome de Chopã. Abaetê era muito apegada a Chopã, por ser o único filho sobrevivente do desastre da tempestade e por vezes nem se lembrava que ele era de outra espécie.

Entretanto, o que Abaetê não sabia é que desde a eclosão do ovo, Abaçaí estava a observar Chopã. Ela havia se arrependido de sua escolha e queria ele de volta.

Num determinado dia, não suportando mais assistir Abaetê cuidar de Chopã, Abaçaí surge num vôo rasante amedrontando a ambos e pousa imponente diante deles. Então ela encara Chopã emocionada e releva ser sua verdadeira mãe, mas logo tem a fala cortada por Abaetê que a contesta.

Abaetê e Abaçaí entram numa discussão interminável e sem acordo ou solução. Abaruna assistia tudo de longe, e apesar de não querer ficar com Chopã, estava cansado da tristeza de Abaçaí, motivo que o fez interceder junto à companheira, sugerindo um julgamento com Caapuã, o caipora, onde decidiriam em definitivo quem iria ficar com Chopã.

Caapuã compareceu e ao início do julgamento solicitou que Abaçaí e Abaetê apresentassem seus argumentos.

— Eu cometi um erro — disse Abaçaí — Pensei que eu seria mais feliz se não tivesse que cuidar de Chopã, mas agora assisto Abaetê cuidar dele e o quero de volta. Chopã e Abaetê não são iguais, são de espécies diferentes e ele nunca irá conseguir entender por que não se parece com ela. Eu sou a verdadeira mãe de Chopã e o abandonei porquê tive medo, mas agora estou pronta para criá-lo.

— De fato não fui eu quem botou o ovo de Chopã — diz Abaetê — Mas cuidei dele como se fosse meu até a eclosão. Lutei com todas as minhas forças para proteger meus ovos no dia da tempestade e infelizmente não fui capaz de salvar todos. Só me restou Chopã, que foi abandonado por Abaçaí. Esse triste episódio da tempestade serviu para me unir a Chopã ainda mais. Chopã pode não se parecer comigo, mas o laço que nos uniu é muito forte e é isso que o torna meu filho. Onde estava Abaçaí quando ele precisou dela?

Caapuã que observava as duas aves com seriedade refletiu e então proferiu sua sentença:

— Abaçaí escolheu abandonar Chopã. Por mais digno que seja seu arrependimento, sabe que no mundo animal nenhuma mãe abandona seu filhote. Disse que teve medo, mas Caapuã sabe que seu medo não era de criar Chopã, era de perder Abaruna que não quer ser pai. Abaetê não tinha o dever de ficar com Chopã e mesmo assim o acolheu e cuidou como se fosse a legítima mãe. Chocou o ovo, alimentou e lutou bravamente no dia da tempestade, não importando se perderia a própria vida para protegê-lo. Estes foram gestos de amor que apenas uma verdadeira mãe teria com seu filhote. Por isso determino, pela lei da natureza, que Chopã fica com Abaetê, que age como mãe de verdade. Além disso, Abaçaí será sentenciada a não se aproximar do filhote, e sobre a sua espécie, os chupins, recairá um castigo divino, o qual daqui em diante não poderão mais cuidar dos próprios herdeiros. Sua atitude egoísta e parasitária ecoará pelo resto dos tempos e refletirá em todos que são iguais a você.

Deste modo foi decidido quem ficaria com Chopã. Após o julgamento os chupins passaram a depositar seus ovos em outros ninhos devido ao castigo que Caipora deu a Abaçaí por ter contrariado a lei da natureza, sendo esta a razão pelo qual os chupins abandonam seus filhotes.

Éclair de Baudelaire
Enviado por Éclair de Baudelaire em 22/10/2020
Código do texto: T7093396
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