CONVERSANDO COM A ESTÁTUA DE CAYMMI NO POSTO 6
Conversando com Caymmi no Posto 6(extraído do meu livro Conversando com estátuas)
No meu longo périplo por Copacabana, começando no Leme, onde me encontrei com Clarice Lispector, passando para bater um papo com Ary Barroso na Fiorentina, deslocando-me para a Rua Inhangá, para encontrar-me com Nelson Rodrigues e voltando à Atlântica para conversar com Carlos Drummond, no posto 5; encontro-me agora no posto 6, com o grande poeta da Bahia, Dorival Caymmi.
Há 35 anos, atraído por sua música - que descreve o mar totêmico e anímico de Iemanjá; as praias onde os coqueirais dançam a dança do vento; os jangadeiros que se arriscam no mar revolto, deixando na praia as companheiras aflitas; as baianas de acarajé, entoando tristes ladainhas; as sereias que habitam eroticamente o mar da Bahia - fui dar nos costados de São Salvador da Bahia, onde vivi 35 anos. E eis que me encontro agora de volta ao Rio com um sorridente Caymmi que de braços abertos me convida para um abraço, empunhando em outra mão seu violão. Dou-lhe um cordial abraço enquanto cantarolo em dueto com ele:
“Minha jangada vai sair pro mar.
Vou trabalhar meu bem querer.
Se Deus quiser quando eu voltar do mar um peixe bom eu vou trazer
Meus companheiros também vão voltar,
E a Deus do céu vamos agradecer!"
Confidencio-lhe que trilhamos caminhos opostos, pois enquanto ele deixou a Bahia, radicando-se no Rio, eu deixei o Rio e fixei-me em Salvador. No entanto, eu acabara de voltar às minhas origens, enquanto ele jamais o fez. Caymmi então me confessa em tom melancólico:
“Ai, ai que saudade eu tenho da Bahia,
Ai, se eu escutasse o que mamãe dizia
"Bem, não vá deixar a sua mãe aflita,
A gente faz o que o coração dita,
Mas esse mundo é feito de maldade e ilusão"
- E botando sua mão sobre meu ombro e com a tristeza mal disfarçada por de trás de seu sorriso de bronze, disse-me:
- Escuta meu garoto, eu saí da Bahia, mas a Bahia nunca saiu de mim...
- Meu caro Dorival, apesar dessa sua saudade imorredoura da Bahia, você é conhecido pela sua calma quase preguiçosa e pelo fato de não se estressar por nada, como conseguiu tanta tranqüilidade? – pergunto-lhe curioso.
Ele então tira do bolso um papel rabiscado com uns garranchos onde se lê com dificuldade:
"Minha receita do bem viver:
Gostar de si mesmo, sem egoísmo.
Apreciar as pessoas em sua volta.
Cuidar da saúde física e mental.
Gostar dos seus horários.
Guardar na lembrança os bons momentos da vida.
E não abrir mão de ser feliz.
A busca da felicidade já justifica a vida."
Sabe-se que, fiel a seu receituário, ele gostava muito de seus horários. E nada de querer apressá-lo... Pois quem o fizesse estaria dando com os burros n’água.
Sobre essa calma quase indolente de Caymmi, conta-se que uma gravadora pediu-lhe com urgência um samba para ser gravado num disco que estaria sendo lançado em duas semanas apenas. Duas semanas depois o dono da gravadora liga e lhe pergunta:
- Caymmi, o samba já está pronto?. Caymmi lhe diz que já tinha composto duas frases:
“Adalgisa mandou dizer que a Bahia está viva ainda lá.” “A Bahia está viva ainda lá”...
- Ué só isso!?- reclamou o dono da gravadora.
-Me dê mais um tempo- pediu-lhe Caymmi
Algumas semanas depois o dono volta a lhe ligar perguntando se o samba já estava pronto: “Ainda, não” – responde-lhe Caymmi
Dois meses depois se repete a mesmo diálogo, e o dono da gravadora desiste de incluir o samba de Caymmi.
Um ano depois, o mesmo dono da gravadora liga para Caymmi e lhe diz:
-Caymmi, vamos lançar um novo disco, você se lembra que no ano passado você fez um samba sobre certa “Adalgisa” que tinha uma frase só. Voce já concluiu?
- Olhe, você deu sorte meu rapaz, acabei de concluir o samba! Tá prontinho da Silva!
Ahh, muito bom! E como ficou o samba?
“Adalgisa mandou dizer que a Bahia tá viva ainda lá,
que a Bahia tá viva ainda lá...
Com a graça de Deus tá lá
a Bahia tá viva ainda lá...
E assim Caymmi depois de um ano concluiu seu samba “Adalgisa”!
Ouçam Gil cantando “Adalgisa”, em entrevista concedida a Pedro Bial no site: https://globoplay.globo.com/v/6971681/ (acessado em janeiro de 2020).
Perguntei–lhe se esse “causo” era verídico e ele assentiu positivamente com a cabeça como a me dizer: “sim, meu garoto!” Agradeci a Caymmi pelos sábios conselhos e, com mais alguns passos, dou de frente com o portão de entrada do Forte de Copacabana, tomando fôlego para seguir à Ipanema, onde o Maestro Antonio Brasileiro de Almeida Jobim já estava me aguardando para um encontro.