ÓIA O TREM, MENINO...

A vida se desenvolvia às margens da estrada de ferro, tão igual quanto as paralelas daqueles infindáveis trilhos que traziam e levavam as ilusões e as desilusões, essas bem maiores do que aquelas.

Quantas vidas se perderam na ilusão de que tudo seria melhor, além, muito além do horizonte, onde os dois trilhos teimam em se fundir num só.

A passagem do trem marcava as tarefas do dia, os compromissos (depois do trem a gente vai consertar o portão da sua casa), os encontros (me espere na porta dos fundos da igreja depois do último trem) ... tarefas que apesar da obrigatoriedade, como o trem, não tinham horas certas, ou se tinham, nunca foram obedecidas.

Camilo era menino acostumado às brincadeiras de rua e junto com os colegas era comum pegar carona no trem de carga até a Ponte Preta e, do alto do teto do vagão mais alto, saltar para as águas barrentas do riacho Ibirá Pitanga, normalmente manso, mas bravio e caudaloso em época de chuvas, quando suas águas ficavam ainda mais vermelhas por causa da lenta erosão no barro vermelho das suas margens.

As aulas do grupo escolar começavam logo depois do primeiro trem e era comum ouvir-se as mães dizerem, óia o trem, menino, como aviso de que era chegada a hora do início das aulas ou a advertência para ficarem longe dos trilhos.

As repreensões pelas vezes que eram flagrados subindo no trem e os conselhos de que trem não era brinquedo, de que poderia haver um acidente com um deles, caiam no vazio da irresponsabilidade e da inconsequência dos atos próprios das suas idades.

Naquele ano as chuvas chegaram mais cedo, constantes, mas com pouca intensidade. As águas do Ibirá Pitanga se tornaram volumosas, mas o rio seguia comportado dentro da calha facilitando o retorno às margens dos pequenos aventureiros que pulavam do alto dos vagões para dentro dele.

Pés descalços nos degraus da escadinha do vagão de carga carcomidos pelo uso e molhados por causa da chuva fina que caia desde cedo, não deu a aderência necessária para o salto de Camilo que caiu entre os dormentes.

A agilidade adquirida nas brincadeiras de rua não foi bastante para evitar que sua perna esquerda ficasse sobre o trilho e fosse cortada pela roda da composição.

Ele ficaria vivo, mas o pedaço da perna com o pé foi levado pelas águas do rio Ibirá Pitanga.