O último paletó e um pé de cacau
O sobradão do Rio do Braço, que foi cenário da novela Renascer em 1993 e hoje em ruínas, o visitamos em 2016, e achamos pequeno. Não era tão grande assim, nem as salas tão amplas, nem as portas tão altas. A imensidão era a nossa visão de menino.
O bom, é que, ali, morou uma família feliz, a nossa. Muitos dos amigos tinham medo do sobradão, principalmente quando alguns morcegos o sobrevoavam à noite. A gente não tinha medo de nada. Dormia bem, seguros e tranquilos. Mas isso não foi por acaso. O Senhor, pai, nos preparou antes. O senhor se lembra do episódio do paletó e do pé de cacau, pai?
— Como não lembrar? Tudo aquilo foi planejado para vocês nunca sentirem medo.
Então, eu tinha uns cinco anos, e o senhor reuniu toda família na hora do jantar e como sempre, altos papos à mesa e o desafio:
— Quem for lá no sobrado agora e trazer um de meus paletós que está no guarda-roupa em meu quarto, é um cabra corajoso, macho e destemido.
— Oxente! Vou na hora! Disse Arnaldo, o filho mais velho, já se oferecendo para o desafio.
Depois de uns 10 minutos, chega ele todo alegre com o paletó preto no cabide.
— Muito bem! Disse meu pai. Passou no teste. Esse é corajoso mesmo! Agora é sua vez, Osvaldinho!
E lá foi ele, o segundo filho homem da ordem cronológica natalícia, cumprir sua missão.
Ficamos na mesa de jantar esperando por uns quinze minutos, o resultado. De repente, surge Osvaldinho com o outro paletó, marrom, de meu pai.
— Cabra macho! Esse é homem mesmo! – Disse meu pai elogiando-o.
— Osman! Agora é com você.
Eu só tinha cinco anos, o caçula dos homens... Altura? Não dava nem meio metro. Mas lá fui eu, destemido, cumprir minha missão para também orgulhar meus pais.
Para chegar até o guarda roupa no primeiro andar, não era nada fácil.
Saindo da cozinha térrea bem nos fundos da casa, havia uma varanda grande com um espelhão imponente, um tanque de água, e um jardim de plantas ornamentais. Depois, ao subir os dois degrauzinhos e abrir a pesada porta verde, uma sala toda em assoalho, onde, de um lado, tinha um quarto em desuso, escuro. Mas o caminho não era por ali. Tinha-se que seguir em frente até se deparar com um longo corredor com uma estante de livros. Adiante, a sala da TV Telefunken com um sofá em napa marrom. A TV estava desligada. Virava-se à esquerda e mais uma sala escura onde iniciava-se os degraus da escada de madeira toda em jacarandá que dava acesso ao primeiro andar da casa, meu objetivo.
Em baixo da escada, um oratório escuro, em que para acender a luz, só mesmo a minha mãe ou o meu pai, porque era um benjamim. Ligava-se no próprio bocal ou soquete da lâmpada, a dois metros e meio de distância do chão. Dava pra enxergar a escada, por causa da claridade de uma lâmpada acesa na sala de TV. Em cada cômodo, tinha-se que alcançar o interruptor para ligar as luzes. Levei uma vassoura para ir ligando os interruptores. Ia-se caminhando. Agora, restava-me encarar vinte e dois degraus zoadentos... Toc, toc, toc, toc, toc, toc, da escada em madeira...
Pronto! Já estávamos no primeiro andar: uma imponente e enorme sala em assoalho com outra TV preto e branco e uma cama no canto e duas redes armadas. Nessa mesma sala tinha um buraquinho na parede a dois metros de altura, que dava pra colocar a cabeça se subisse na cama para ver, vigiar, quando necessário, a mercearia ao lado do sobrado. Se fôssemos para a esquerda, uma grande sala com três janelões e uma porta no meio com um alambrado que dava para contemplar a rua. Mas o guarda-roupa de nossos pais não era para esse lado. Após subir a escada e atravessar a primeira sala principal, dobrava-se à direita. Fui. Tinha um pequeno corredor, e no meio dele, mais um quarto! Mas não era ali, ainda, o guarda roupa dos meus pais.
Tinha que seguir em frente até o último quarto enorme, que para se ter uma ideia, ele tinha cinco janelas, uma penteadeira, uma prateleira de utensílios, uma cama de casal com dois criados mudos ao lado e lá, finalmente, tinha-se o bendito guarda-roupa. Acendi a luz do quarto com o cabo da vassoura que levei. Demorava uns três minutos para acertar onde estava o interruptor. Um verdadeiro breu.
De vez em quando, um ou outro morcego sobrevoava de uma janela à outra, vruuum, vrummm, vrummm, só escutava os barulhos. Eu ia pela intuição do conhecimento diurno do local...
Pronto! Finalmente cheguei até o guarda roupa. Abri a porta por baixo, pois não alcançava o puxador, alto.
— Viva! - Pensei - Lá estava o último paletó de meu pai, branco. Puxei muito pela manga comprida do mesmo, mas ele só fazia balançar. Vi, bem lá no alto, uma altura medonha, o cabide em que ele estava dentro. Tentei de todo jeito derrubá-lo, suspendê-lo, puxá-lo, mas tudo era em vão. Meia hora depois, ouvi a voz de meu pai lá do térreo.
— Tá tudo bem por aí? Cadê você? Desça já!
Voltei sem o paletó.
Na cozinha, todo mundo sentado e eu fui chegando com uma mão vazia, por que a outra segurava a de meu pai. Ele entendia demais de Freud, sem nunca o ter lido: “Não me lembro de nenhuma necessidade da infância tão grande quanto a necessidade da proteção de um PAI.” Disse um dia em seus estudos, o pai da psicanálise.
— Cadê o paletó? Perguntaram.
— Fui lá, mas não alcancei o cabide...
— Mentira! Você foi até a escada! – Dizia meus irmãos. – Cabra frouxo! Cabra frouxo!
— Eu fui! Eu Fui!
— Foi nada, seu medroso! – Diziam, e eu comecei a chorar.
— Parem com isso! Disse minha mãe. Ele é muito pequeno e não alcançou. Temos que acreditar.
— Vamos agora aqui no quintal, todo mundo! Disse o meu pai levando toda a família.
Já no quintal da casa, e com todo mundo servindo de testemunha, disse-me.
— Sabe daquele pé de cacau que temos aqui no quintal? Ele tá carregado. Tem cacau até no caule e você vai alcançar. Quero que você vá lá agora, sozinho, no escuro, e traga um cacau. Tire o cacau do pé que está no caule e traga.
Não dava pra ver o pé de cacau de onde estávamos, por causa da escuridão. Tava o céu nublado, sem lua e um breu danado! Mas mesmo assim, destemido, eu fui tateando e sumi na escuridão. Eu sempre brincava por ali de dia, e sabia mais ou menos onde era o pé de cacau. Tomei uma topada, pisei num sapo, num pé de cansanção, bati a cabeça num galho de goiabeira, mas cheguei. Abracei o caule procurando a fruta. Achei um cacau grande e que provavelmente devia ser bonito. Torci, torci, até que o pé de cacau, meu amigo, cedeu-me o troféu. Voltei feliz, e a festa!
— Aeeeeeee! O cabra é macho mesmo! – Diziam todos.
Foi por essas e outras, pela segurança que a nossa família nos dava, pela confiança e incentivo, que nunca tivemos medo de escuro, nem de portas fechadas, nem de casarões.
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* Esse texto é uma das várias histórias contadas no livro "A Viagem de Cristal" de Osman Matos, publicado em 2017 pela Amazon.com nos formatos e-book e impresso.