O bocapio

Um dia, no caminho da escola, até que gostamos dos conselhos de nossa mãe para só andar nos passeios ao invés de andar pulando lateralmente os muros para descer a ladeira de nossa rua.

É que percebemos, eu e Osvaldinho, que havia moedas pelo meio fio. Fomos catando. A cada duas ou três passadas, uma, moeda! Imaginem ao chegar ao fim de quinhentos metros da rua. Uma pequena fortuna que dava até pra lanchar na cantina da escola. Todo dia era sagrado. Tinham moedas no caminho. Minha mãe resolveu investigar nossa pequena fortuna...

— Onde vocês conseguiram essas moedas? Quem, deu a vocês? Não é pra aceitar nada de estranhos.

— A gente tá achando no chão, mãe.

— No chão? Quero ver isso.

No outro dia nossa mãe nos levou até a escola e já na saída da casa, advertiu-nos:

— Se não acharem nenhuma moeda hoje, vocês estão fritos! Eu quero é ver se isso é verdade!

Ficamos tranquilos, pois não estávamos mentindo para a nossa mãe.

Logo a poucos metros da nossa casa, uma moeda de cinquenta centavos; em seguida, quatro moedas quase juntas de dez; e a cada três passadas, moedas e mais moedas, sempre encostadinhas ao meio fio. Quando a rua acabava e chegava-se na Av. Amélia Amado, em frente ao posto de gasolina, logo na esquina desta, tinha um ponto de ônibus. A farra ali acabava. Dali em diante, nem fazendo reza e promessas a Santo Expedito das causas impossíveis, se achava mais alguma moedinha...

Minha mãe ficou encucada.

— Oxente! Tem alguma coisa errada! Dinheiro não anda por aí dando sopa todo dia... Tem alguma coisa errada! Vou investigar.

— Mas a gente pode continuar catando o dinheiro, mãe?

— Pode, mas não é mais pra gastar com nada! Tragam aqui pra casa, pra ver se aparece o dono.

— O dono, mãe? Ora, achado não é roubado! Isso é de alguém rico que não precisa e anda distribuindo para os pobres encontrarem.

— Não me interessa! Não é pra gastar! Catem e tragam, entenderam?

Não podíamos decepcionar nem desobedecer nossa mãe, mas ficamos tristes. Lanche na cantina hoje e daqui pra frente, já era!

É que naquela época, as escolas, principalmente a particular, que éramos bolsistas, não dava o lanche de graça. Ou você comprava ou ficava com fome. Como todos os dias nem sempre podíamos levar o lanche de casa, já viu, né?

E assim, nossa mãe começou a investigar a rua. Ficava horas e horas no muro que era um terraço, debruçada observando toda a movimentação dos transeuntes...

Percebeu, duas semanas depois, por volta de dez horas da noite, que um mendigo muito velho e corcunda descia a ladeira com um bocapio, uma sacola grande feita com palha e com alça - Notou, então, bem em frente à sua casa, um tilintar... Mais adiante outro e outro. Seguiu, de longe o mendigo, e a cada três passadas, um tilintar...

— Ah, coitado, que prejuízo!

Ao chegar ao fim da rua, antes do velhinho pegar o ônibus em frente ao posto de gasolina, uma advertência:

— Moço, seu bocapio tá furado e não é de hoje!

— Ah, minha fia, muito obrigado!

O velho constata e desabafa:

— Eu saio de casa todo dia às seis horas da manhã, trabaio o dia inteirin pidino, e tem gente que pensa que a gente é vagabundo e não trabaia! Vai fazê isso pra vê o trabaio que dá!

Nisso, já perdia o ônibus das dez horas da noite que nem percebera, e continuou desabafando...

— A gente passa o dia todin seno humilhado, recebeno não, o desprezo das pessoa, gente mandano eu i trabaiá nessa idade e doente... Olha moça, né mole não! Agora eu já sei porque quando chego em casa o dinheiro tá tão pouquin e eu dizia: meu Deus! Tenho que trabaiá todo dia até dez da noite, senão morro de fome!

— Mas com esse bocapio furado, o prejuízo do senhor tá muito grande! Venha! O senhor aguenta subir a ladeira de volta?

— Acho que sim. Tô acostumado a caminhá... Mas pra que subi a ladeira de vorta?

— Meus filhos cataram as moedas ao ir pra escola e guardamos para ver quem era o dono.

— Ô que Bênção! – Disse ancião corcunda.

Dona Arlete devolveu o dinheiro de duas semanas de coleta. Nós não gostamos nada dessa investigação, mas quando conhecemos o velhinho, muito simpático, ficamos amigos dele. Entendemos e aceitamos, porque foi por uma causa justa. Contado a meu pai, ele disse:

— Quando o milagre é grande, desconfia-se do santo.

E, em se tratando de dinheiro, então, se não for ganho pelo suor, não adianta. Um dia a verdade aparece e a casa cai. Dinheiro é a coisa mais difícil do mundo. Quer ver o valor do dinheiro? Fique sem ele. Mas quando vem fácil, tem alguma coisa errada. Alguém tá tendo prejuízo. O bom e tranquilo é você suar para ganhá-lo. Assim, não aparece o dono, pois o dono é você que suou, produziu, trabalhou. Esse é o melhor dinheiro, o mais valoroso, o mais sadio e melhor, porque nunca ele vai decepcioná-lo, nem você a ele. Relação trabalho-dinheiro-dinheiro-trabalho, é suor-dinheiro-dinheiro-suor.

E assim, a minha mãe, professora, bordadeira e costureira, consertou e bocapio para o velhinho e daí em diante, não adiantava ir para escola olhando para o chão perto de meio fio algum, que achar uma moeda era mais raro que achar uma pepita de ouro.

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* Esse texto é uma das várias histórias contadas no livro "AViagem de Cristal"de Osman Matos, publicado em 2017 pela Amazon.com nos formatos e-book e impresso.