De que vale ter asas num cárcere?

Um Ancião de quase noventa anos, ao viajar num trem Maria Fumaça pelo sertão ao norte da Bahia, viu seu passado da janela.

Era ele mesmo assistindo-se como num cinema.

Relatou que apareceu há 80 anos, de repente e ainda criança, num pequeno sítio no povoado de Mirandela, em pleno ano de 1937 e que tinha dez anos.

Conta que passou a soltar uns cachorros presos que conhecia... Eram mansos com ele, principalmente aqueles que ficavam amarrados ou acorrentados o dia inteiro e que não passeavam por comodismo ou preguiça de seus donos. Depois que eram soltos, faziam a maior farra e sempre voltavam imundos e fedorentos, mas, só assim, passeavam.

Em seguida, viu-se libertando passarinhos das gaiolas nos quintais em Curral Falso para desespero dos apaixonados em prendê-los...

Abria as portas e tangia os pássaros que permaneciam na gaiola, forçando-os a voar...

Depois de algum tempo, era só dar fome, que os passarinhos voltavam para as gaiolas...

Os apaixonados em prendê-los, esperançosos, deixavam as portinhas abertas com alpiste dentro, uma cruel armadilha de dependência para quem sempre permaneceu preso.

— Esses pássaros que voltam são uns bestões! - pensava - Porque os sabidões aproveitavam a oportunidade para ganharem o mundo e nunca mais voltavam.

— De que vale ter asas num cárcere? - continuava pensando, justificando para si mesmo a soltura dos pássaros.

Hoje, aos quase noventa anos, acha que, talvez, não tenha agido corretamente, afinal, os pássaros não pediram para serem soltos e os apaixonados em prendê-los poderiam ser apaixonados em protegê-los...

Mas asas são asas, e só voltavam para as gaiolas, aqueles pássaros que queriam voltar por sabedoria, dependência, inexperiência, carência, gratidão ou decisão própria. Quem ganhava o mundo assumia os riscos.

Trazia essa sua experiência para tentar compreender o comportamento humano. Fazia comparações. Quantas vezes muita gente está numa zona de conforto, como um funcionário público concursado, por exemplo, com seus rendimentos garantidos mensalmente, mas ali, sempre, muitas vezes acostumado, conformado, voando das grades para o poleiro, sem poder ir mais longe? E embora percebam que em algum momento a porta esteja aberta para avançar, preferem continuar dentro porque ali é o melhor lugar e mais seguro. Mesmo experiente, maduro, capacitado e podendo voar mais alto, preferem recuar e ficar na zona de conforto.

Sentiu a mesma sensação ao conhecer, na década de setenta, um de seus fregueses que trabalhava como tropeiro nas roças de cacau. Contou-lhe, o tropeiro, que nunca conheceu o pai nem a mãe e viveu anos em um orfanato até ganhar a maioridade. Disse que quando saiu do orfanato onde tinha de tudo, teve dificuldades, receio e medo de enfrentar o mundo. Pediu pra voltar, pra ficar, mas não era possível. Tinha que voar, pois a gaiola estava com a portinhola aberta e por força da lei, a maioridade o tangia.

Arrependeu-se agora, na maturidade, de ter tangido os pássaros...

— Será que alguns sobreviveram? Gostaram desse “favor?” – Devia ter deixado apenas as portas abertas? Seria melhor que fossem embora aqueles que quisessem? Cada um sabe de si, da sua condição e decisão pessoal em ficar ou partir: é de cada um.

Também atirava caroços de seriguela chupada na garotada que tinha estilingue. Jogava os caroços ao invés de pedras, para não ferir os meninos; servia para que eles errassem o alvo. Dessa forma e arrumando muita encrenca, salvou muitos nambus, periquitos-da-caatinga, pintassilgos, coleirinhos, caboclinhos, bigodinhos, cardeais-do-nordeste, papa-capins, cancões, bicos-de-lacre, tizius e rolinhas...

Em casa, ele criava dois bichinhos que eram sua paixão: um gatinho e um saguim. Ele gostava muito de gato. Todo gato que teve na infância botava o nome de Mixuruca. Tinha um que viveu muito e passou a maior parte da infância com ele. Só andavam juntos. Botava o gato no pescoço e dormia com ele.

O Saguim, pequeno macaco, de cauda felpuda e comprida, também era seu xodó. Ele era muito sabidinho e engraçado. Geralmente os saguins ou saguis são curiosos e adoram fazer bagunça, e como a maioria dos animais silvestres, eles têm temperamento forte e não abrem mão de uma boa briga quando se sentem ameaçados. Eles brincavam muito. Mas um dia o Saguim, infelizmente, morreu. Ele chorou muito e ficou com febre e sem comer uns três dias. Fez um enterrozinho decente para o saguim. O colocou num caixãozinho todo forrado e com almofadinha, marcou o local onde o sepultou e sempre ia lá de vez em quando prestigiá-lo com uma visitinha.

Depois de algum, tempo, no local, nasceu um pé de manga, uma mangueira, e ele sempre ia lá chupar e colher mangas com a meninada.

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* Esse texto é uma das várias histórias contadas no livro "A Viagem de Cristal" de Osman Matos, publicado em 2017 pela Amazon.com nos formatos e-book e impresso.