Sexta-feira maior não se trabalha!
Dia 13 de abril de 1990, uma Sexta-feira Santa, ou como muitos preferem Sexta-feira da Paixão, um feriado normal, sem aulas, sem trabalho (para muitos), porém para aquelas pessoas com uma crença inabalável nos fatos ocorridos nesse dia, a cerca de 1957 anos atrás (não muito precisamente), que tratam das últimas horas de vida, morte e posterior ressurreição de Jesus Cristo é um dia sagrado e muito especial, com uma força e importância, que transcendem a nossa existência. Não por coincidência, lembro-me de encontrar em alguns livros, como o Nome da Rosa, por exemplo, quando mencionadas as datas, dizer: 13 de abril do ano de Nosso senhor Jesus Cristo de 1990, consagrando os dias e anos, em homenagem, a data do suposto aparecimento desse importante personagem da história, cultura e religiosidade humana.
Bem, lá estava eu, um piá com quase 12 anos de idade, cabe apontar, que naquele tempo as crianças trabalhavam (pelo menos eu trabalhava), mas ressalto que não era para ganhar o meu sustento, meu avô, seu Pedro, o fazia como método educativo, para evitar que eu ficasse nas ruas aprendendo toda a forma de coisas, que ele considerava inadequadas, para a boa formação de meu caráter.
No quesito trabalho, posso apontar, que aprendi muito cedo a cortar lenha, o que fazia uma ou, duas vezes ao mês, meu avó comprava cerca de dois metros de lenha todo o mês, ela era entregue em pequenas toras de Bracatinga de cerca de 30 centímetros de altura, ou as vezes, em toras maiores, com cerca de 90 centímetros de comprimento, o que dificultava a sua transformação em pedaços de lenha que coubessem dentro do fogão.
Meu avô sempre me pagava para que realizasse essas tarefas, gostava de me mostrar que dinheiro se ganhava trabalhando e sempre repetia: “Não há recompensa sem esforço, se esforce que eu te recompensarei.” Enfim, aprendi muito com esse homem simples e às vezes de temperamento duro e severo. Por exemplo, durante o corte de lenha sempre me dizia: “Tem que encontrar a água da madeira, para ficar mais fácil de parti-la.” Quanta significância essa frase teria se soubesse mais cedo contextualizá-la e aplicá-la as minhas relações humanas, conhecer onde está o ponto mais fácil para cortar a lenha, aplicando a força do corte com o machado, no sentido que crescem as fibras do vegetal, onde o tronco se abriria com um só golpe (água da madeira) e não utilizar a força contra as fibras na tentativa de cortá-las ou quebrá-las, fazer com que a madeira trabalhe juntamente com aquele que corta, em constância de objetivos.
Fazia muitos trabalhos para e com meu avô, cultivávamos hortas (na casa dele e em minha casa), criávamos galinhas, até um porco uma vez, aprendi a roçar, com uma foice, o mato que crescia em volta do terreno de sua casa (trabalho extremamente manual, não com roçadeiras à gasolina ou elétricas) e, até limpar as valetas (valas para escoamento de água pluvial, mas que acabavam sendo utilizadas para escoar também os esgotos) nos arredores de sua residência, que eram serviço de competência do município, porém, que não o fazia regularmente e o mato tomava conta.
A lembrança do trabalho, que aprendi com meu avô, fez fugir da sexta-feira dia 13 de abril de 1990, uma sexta-feira Santa, porém o trabalho esta relacionado a esse dia.
Lembro que tínhamos o costume, eu e meu avô, de buscar árvores para plantar no quintal e jardim de sua casa (exemplo de uma ameixeira que ainda está no jardim da casa e tem mais de 30 anos). Nos jardins era costume transplantar xaxins para que ornamentassem o espaço, prática que hoje é proibida, sendo essa planta primitiva uma espécie em risco de extinção, não podendo ser suprimida e nem retirada de seu habitat, onde tem um papel especifico. Mas lembro de que nessa época era comum plantar samambaias e outras plantas em vasos feitos de xaxim, ou transplantá-los para os jardins.
Como não tinha aula e havia combinado com meu avô que apanharia dois xaxins que encontrará, dias antes, nas proximidades da sua casa, fui até a casa de meu avô, abri o portão de ferro, que fazia um grande barulho, minha avó que estava na cozinha, apareceu na janela, com sua cuia de mate, que era revestida externamente com alumínio, para ver quem estava chegando.
Entrei e fui até a porta dos fundos, que dava acesso à cozinha:
-Bença vó!
Colocando a cuia de mate na mão esquerda, tocou meus cabelos e depois segurou minhas mãos, que se encontravam unidas pelas palmas (posição típica para quem pedia a benção de alguém) e disse:
-Deus te abençoe, te crie e te proteja meu filho!
Após ser abençoado pela minha querida e saudosa avó, continuei falando:
- Como não tenho aula hoje vim aqui para buscar os xaxins que o vô me pediu.
Olhou-me um pouco com aquele jeito de quem esta refletindo sobre algo e disse:
- Sabe que hoje não é dia de trabalho é sexta-feira maior?
Fiquei quieto, pensei um pouco e falei:
- Sim vó, então deixo para outro dia?
Ela me olhou, deu uma tragada no seu chimarrão, abriu o fogão, se curvou, apanhou um pedaço de lenha, colocou no fogo se voltou para mim e falou:
- Acho melhor! Não é bom abusar com aquilo que não conhecemos bem e temos que respeitar as coisas fora do nosso alcance. Quer sentar e comer um pedaço de bolo?
Acenei afirmativamente com a cabeça e me assentei à mesa, cortei um pedaço de bolo de fubá e comecei a comer, um pouco contrariado, pois como já havia dito meu avô sempre me pagava pelos meus serviços. Minha avó encheu mais um chimarrão e começou a falar:
- Acho que nunca te contei, mas nos meus tempos de menina, tinha por volta de uns quinze anos, morávamos lá no Faxinal, onde vamos visitar meus irmãos às vezes.
Nesse momento me veio à mente as visitas que fazíamos aos irmãos de minha avó, os meus tios avós Campolim e Henrique, que moravam na localidade de Faxinal, interior do município paranaense de Paula Freitas, eram agricultores, tendo como principal cultura o fumo, fator que acabou, segundo minha avó, por conta dos agrotóxicos, venenos como ela chamava, a levá-los à morte cedo demais.
Sempre acompanhava minha avó nessas visitas, pegávamos um ônibus que depois de 45 minutos parava à beira da BR 153 (ou do asfalto como dizíamos), dali tomávamos, à pé, uma estrada de terra, com cerca de uns 10 Km e finalmente chegávamos a casa dos meus tios avós , onde éramos recebidos com um café daqueles de interior. Sempre depois da janta, contavam alguns causos a beira do fogão a lenha, sobre a luz vacilante de lampiões à querosene, então íamos dormir em colchões, travesseiros e colchas feitas de penas, ou palha de milho.
- Era uma sexta-feira maior e nos atrasamos para preparar as bolachas que seriam consumidas durante as festas do Sábado de Aleluia e do Domingo de Páscoa. Dessa forma, contrariando o que era certo fazer, fizemos as bolachas durante o dia todo, pois demoravam em crescer e mais ainda do que isso, demorava o aquecimento do forno de pedra onde elas seriam assadas. Para aquecer o forno eram necessárias horas de fogo e depois de aquecido, espalhavam-se as brasas que restavam pelas laterais internas para manter o aquecimento.
Peguei mais um pedaço de bolo, minha avó colocou mais lenha no fogo, encheu outra cuia de chimarrão e continuou:
- Como eu e minhas irmãs ficamos o dia todo lidando com as bolachas, na parte da noite precisávamos assá-las, colocar uma fornada, ir cuidando e retirando para colocar a próxima. Esse trabalho não exigia muitas pessoas, pois era mais fácil. Então fiquei nessa função das 6 horas da tarde até perto da meia noite, quando iriamos tirar a última fornada de bolachas. Enquanto eu assava, cuidava e colocava mais para assar, minhas irmãs confeitavam as que já tinham esfriado, com uma mistura de clara de ovo e açúcar.
Interrompi minha avó, pois fiquei curioso, já que sempre me dizia que não deveríamos fazer nada na Sexta-feira Santa, além de jejuar, ou quando comêssemos que fosse peixe no lugar de outras carnes.
- Vó, mas não pode trabalhar né? Você me disse que nem lavavam o rosto, não penteavam os cabelos e ainda jejuavam nesse dia, ficavam sem fazer nada até passar a sexta-feira?
Minha vó nunca se irritava com minhas interrupções e quase nunca, nem mesmo com minhas estripulias. Deu uma olhada tragou seu chimarrão:
- Isso mesmo! Nada deve ser feito nesse dia, por que é santo. Porém nós fizemos e o resultado não foi muito bom.
Mais um pedaço de lenha no fogo, um pouco de água na carne de frango que cozinhava em uma panela de ferro (frango para o jantar de meu avô, que não compartilhava da mesma crença). Ainda guardo o sabor daquele frango feito devagar, no fogão a lenha, na panela de ferro, sem pressa, tinha todo tempo do mundo para ser preparado, depois acrescentava o molho de tomate, que formava, com o azeite, aquele óleo de cor avermelhada.
- O que aconteceu foi por perto da meia noite, eu estava sozinha no paiol, esperando que ficasse pronta a última fornada de bolachas. Estava cansada, pois não era costume dormir tão tarde. Fiquei encostada em uma mesa feita de tábuas, olhando para o forno, ansiosa pelo fim do trabalho.
Eu ansioso viajava longe, pensando no que teria acontecido de tão grave nesta noite, para minha avó me proibir de ganhar meus preciosos cruzeiros, minha avó continuava com sua história:
- Ouvia os cachorros latindo já há algum tempo, logo um cacarejar das galinhas me fez olhar por uma das portas do paiol para a escuridão lá fora, comecei a procurar algo, mas não encontrava. Ouvia passos, como se algo rodeasse o local, escutei uma respiração ofegante e forte. Foi quando percebi duas brasas em meio à escuridão, que logo se apagaram e sumiram. Fui para perto do forno e da porta que dava acesso mais rápido a casa, querendo que as bolachas estivessem prontas. Nesse momento senti um calafrio percorrer minha coluna, não tinha coragem de olhar para trás, onde estava a outra entrada do paiol, que dava acesso ao galinheiro, comecei a ouvir aquele respirar ofegante e pesado, que quase sentia seu calor em minhas pernas.
- Vó era quem o Boitata?
- Apesar de existir, não era um boitatá. Quando tive coragem fui virando devagar para trás, quando vi o ser medonho que se encontrava na porta congelei, não consegui me mover. Vi aqueles olhos vermelhos como brasas, duas orelhas pontiagudas mirando o céu, dentes pontudos e brancos, boca grande e arreganhada, como se sorrisse para mim, o corpo parecido com o de um homem, todo coberto por pelos pretos e brilhantes, pés e mãos com garras, se apoiava nos pés traseiros, mas na dianteira, se apoiava nos cotovelos ficando com as mãos ao lado da cara feia. Só aí me dei conta que era um lobisomem, que veio me assombrar por trabalhar na sexta-feira maior. Fiz o sinal da cruz e comecei rezar o Pai Nosso, minhas pernas foram se soltando, consegui sair correndo e gritei por ajuda. Quando cheguei em casa os homens saíram para pegar bicho, mas ele correu e fez um estrago no galinheiro se metendo no mato logo após.
- Desde então, meu neto, respeito esse dia, não abusando daquilo que não conheço, por experiência, te aconselho a fazer o mesmo, deixar quieto o que está quieto.
Fui embora ao inicio da noite, parecendo que o tempo que demorei em percorrer as quadras, que separavam a casa de minha avó da minha, durou uma eternidade, a cada passo olhava para trás como se algo me seguisse.
Hoje a luz elétrica, a televisão, o computador a vida noturna cada vez mais intensa do que a diurna, extinguiram os lobisomens, boitatás, bruxas e mulas sem cabeça. Penso que ao menos naquele tempo, os medos eram certos e definidos, na atualidade o medo é incerto, não podendo ser combatido com simpatias e objetos benzidos, vivemos em tempos incertos.
Em memória de minha avó Romalina Dalpra de Paula.