O Dote

A mulher passava pela Rua da Boa Morte segurando algumas sacolas de pano. Olhava atenta a qualquer reflexo pelo caminho e quando achava, mesmo uma poça d'água no chão, aproximava-se e cultivava um olhar doce e satisfeito. Era a típica moça ingênua do interior que tinha a tarefa delicada de percorrer alguns quilômetros a chegar à cidade. Balançava um punhado de sacolas de um lado a outro e debandava sorrisos para os que encontrava. O sol já era quase vencido quando a moça tapeou pras beiras de um beco... Por aqueles tempos havia um homem chamado Carlito; esse que lhes conta tal história. Eu era um aproveitador e caçava diversão com as belas e desacompanhadas moças; assim passava as tardes nos arredores da cidade de Esperança. Entrei também ao beco já bem alaranjado pelos rasgos das últimas linhas de luz. A moça acelerava os passos sem perder a compostura: o sol a partir, as janelas cerrando-se e eu mais próximo da moça. Percebeu depois que a lua apontou que eu a seguia. Ficou ligeira e eu também. As sacolas agora estavam firmes na mão e o sorriso foi tomado por certa angústia; era, de longe, uma feição já mais cinzenta. Eu batia as mãos no canto da perna e trocava uns assobios com algumas salivas pro chão: dizia baixo que escolher aquele beco tinha sido uma gentileza. A moça virava e pras poucas janelas tentava um pedido de socorro. Nada. Seu rosto agora era mais que reflexos das poças d'água: continuava e alma alguma a concedia o refúgio. Não tinham saídas a não ser continuar em frente e, mesmo veloz, o final nunca chegava. Era minha a jovem... Dessa cena seguinte nunca mais poderei tirar da memória: a moça ajoelhou-se, deixou as sacolas caírem lentamente aos pés e inclinou o pescoço ao solo. Acordei duas semanas depois um pouco confuso: disseram a mim que fui o único a sobreviver ao beco naquele dia. De tamanha fama do episódio, a cidade registrou Beco do Diabo. Já esperavam a chegada do tentador e por isso fecharam cedo as janelas na ocasião. Só não esperavam que um homem fosse louco de estar ali e ainda sobreviver. Calei a todos e disse que eu não era o único dentro do beco. Ignoravam-me e diziam que eu era o único. Eu insistia que tinha uma moça e eles insistiam que não. Alguns meses a passar e eu recebi a visita dela: o pai da moça queria casá-la comigo e aos braços dela havia as mesmas sacolas de antes. Era o dote do pai viúvo dentro das sacolas... Caí com o rosto numa poça d'água ao lado da porta: dizem que morri de felicidade ao ter em mãos a inocência do interior.

Vitor Romano
Enviado por Vitor Romano em 04/08/2020
Código do texto: T7026175
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