MINHA VIZINHA LOUCA


     Morar sozinha é um marco na independência de uma pessoa, no século XXI. Seria se essa pessoa não fosse uma mulher de 35 anos, sem namorado e sem muitos amigos. E piora, se essa mulher tem como vizinha uma outra mulher, sozinha sem namorado e sem amigos. Nazaré, a minha vizinha pode ter uma história que justifique a sua condição. Quando criança viu a mãe ser assassinada pelo parceiro. Ela e o irmão assistiram a tudo.
     Eu, por outro lado, não tenho nada que me absolva de estar sozinha nesta casa. Salvo o fato de gostar de viver assim, mas isso não é o bastante para que eu seja salva das más línguas. Dizem barbaridades sobre mim: que sou a velha dos gatos, nem gato eu tenho. Que sou uma bruxa... e muitos outros absurdos por não aceitarem que uma mulher possa viver sua vida sem necessariamente ser mãe e esposa. Chegaram a dizer que Nazaré e eu éramos um casal.
     Um absurdo! Apesar de todo o sofrimento de minha vizinha, ela sempre foi medonha. Nunca gostei da forma como ela me olhava, como visse a minha alma e percebesse todos os meus sentimentos e desejos. Quando ela ainda era uma recém nascida, peguei-a nos braços e quase a deixo cair ao perceber seu olhar penetrar em minha alma. Não foi a morte da mãe que a deixou daquela forma, ela sempre fora medonha, assustadora.
     Uma personagem de filme de terror, era assim que eu sempre a via.  Desde criança, quando corria ao meu encontro querendo brincar comigo, eu a imaginava um boneco medonho me perseguindo. Nunca tive nenhum contato com ela. Mas também não a odiava. Quando ela perdeu a mãe, consegui sentir certa empatia por sua perda. O problema era que Nazaré parecia não se importar. Não sei se isso se dava aos inúmeros transtornos que ela tinha, ou se ela era realmente má.
     A questão era que Nazaré e eu jamais poderíamos ser um casal. Primeiro porque não gosto de mulheres nesse sentido, segundo porque tem algo na minha vizinha que me incomoda. As vezes quando estou em casa, sozinha, fazendo alguma coisa, sinto os olhos de Nazaré invadir o meu ser. Não como se ela estivesse observando o que eu estou fazendo, era como se ela visse o minha alma e soubesse o que eu estava sentindo. O pior era que quando eu pensava nela, ouvia instantaneamente o rangido do armador, denunciando alguém a se balançar na rede.
     No início isso tudo era aterrorizante, mas com o tempo a gente se acostuma com tudo, pois o medo é apenas uma ideia. A medida em que eu conhecia Nazaré, percebia seus segredos e medos. Medos que ela parecia não ter. E tudo começou a parecer natural para mim, não mais me assustava saber que ela poderia ver minha alma. De certa forma, sentia-me aliviada de saber que outra pessoa podia acessar meus sentimentos, se é que podia mesmo. Aquilo era algo nosso, só nosso. Segredos entre a gente.
     Ninguém sabia a verdade, apenas eu! EU SABIA! Do meu quarto eu a escutava conversando, ouvia timbres e vozes diferentes que saiam de sua boca, sabia que ela estava sozinha. A menina diagnosticada com discalculia e dislexia que não sabia ler e escrever era poliglota, falava inglês, francês, russo, mandarim, chinês, árabe e latim. Eu a escutava todos os dias e compreendia cada som que saia de sua boca. Além disso, quando estava de frente ao espelho ela sempre conversava comigo, eu a escutava dizer que amava os meus olhos, não sei o porquê, mas sempre me chamava: a garota dos olhos bonitos.
     De certa forma, apeguei-me a ela, ou a ideia de tê-la comigo mesmo não estando juntas.  Já tentei diversas vezes sair dessa casa, ir morar em outro lugar distante e sempre que penso não consigo deixá-la, moro sozinha, assim como ela. Hoje quando fecho meus olhos não vejo mais os olhos que via antes, hoje eu a vejo e isso não mais me perturba. Conseguimos ler os pensamentos uma da outra e isso é magnifico, você não acha?
     Saber o que ela sente e pensa, aproxima-me dela. Agora nossa amizade não é apenas uma via de mão única. Assim como ela mergulha em meus pensamentos e sentimentos eu também mergulho nos dela. E foi essa minha nova habilidade que me fez descobri o mais íntimo desejo de Nazaré. E como ela nada fazia da vida, decidi que realizar esse seu desejo seria minha prioridade.
   Era um feriado prolongado, como sempre quase todos de nossa rua viajaram. Salvo o meu amante e Nazaré. Propus a ele que iríamos trazer a menina para assistir a tudo. Ele achou absurdo. Transar em meio a uma construção abandonada já era o suficiente para ele. Convenci de que ela só iria assistir. Ele aceitou.
     O problema era que Nazaré não queria aceitar, ofereci a ela os meus óculos. Os mesmos que ela tentava tirar do meu rosto sempre que eu usava. Como disse, havia entre a gente uma conexão, era fácil saber o que minha vizinha queria. E isso com certeza era algo que ela desejava de corpo e alma. Não pela fantasia, mas pelo prazer por tudo o que era grotesco e anormal.
     Preparei uma mochila, não podia me descuidar. Era preciso um lençol para forrar o chão, peças de roupas para trocar as roupas sujas após o sexo. Eu queria uma noite perfeita, não para mim, mas para Nazaré. Propus a amiga e ao meu amante que fossem algemados na coluna de concreto. Ela para não sair correndo quando a gente começasse e ele para não desistir de tudo quando visse os olhos de Nazaré penetrar em sua alma.
     Com os dois algemados comecei o meu show. Estávamos distantes da cidade e de qualquer área habitada. Podíamos gemer e gritar sem sermos incomodados. Principalmente Nazaré, que poderia se esbaldar no que iria ver, mas também poderia enlouquecer e surtar. Não me preocupava, no entanto, se ela não gostasse, pelo menos o senhor de quase sessenta anos iria viver uma experiência única na vida.
      Perguntei a ela se lembrava do homem algemado diante dela. Claro que não lembrava, ela era uma criança quando ele assassinou sua mãe na sua frente e levou consigo um pedaço da coxa da morta. Dizem que fez até churrasco com a carne. Mas agora Nazaré iria ter o que ela merecia.
    O homem ficou assustado e tentou se soltar, em vão. Acendi uma pequena fogueira, tirei da mochila a faca e o espeto e perguntei a Nazaré se ela estava com fome. Ela permaneceu em silêncio, apenas quando comecei a cortar a carne da coxa do homem, foi que Nazaré falou, gritando para que eu não fizesse aquilo. Irritei-me, como ela poderia defender o homem que matou sua mãe?
     Tirei o pedaço de carne em meio a gritos dos dois e muito sangue. Da mochila tirei o condimento, temperei bem a carne e a espetei. Nazaré gritava para que eu parasse, mas essa era uma de suas manias, dizer o contrário do que desejava. Eu sabia disso, eu tinha me conectado a ela. A carne foi assando lentamente enquanto o sangue jorrava da perna do homem.
     Não se passou muito tempo, a carne estava pronta para degustação. Ofereci um pedaço a Nazaré que recusou. Então experimentei, a carne estava muito adocicada. Fiz o homem comer todo o pedaço de carne e quando terminou, enfiei a faca em seu peito, para que pudesse terminar de morrer. Ali, estava selando a minha amizade com a minha vizinha. Ela, no entanto, parecia não receber com carinho a minha demonstração de afeto e empatia.
     Aos gritos ela me chamava de louca, dizendo que matei a pessoa errada. Aquele não era o homem que havia matado a sua mãe. Como se eu não soubesse disso, o assassino de sua mãe nunca mais fora visto. Então eu escolhi alguém para representá-lo no nosso ritual de amizade. Nazaré não aceitou as minhas explicações, chamou-me de louca, acusou-me de ter matado minha mãe. Ficou descontrolada.
     O feriado chegou ao fim. Todos retornaram de suas viagens, as pessoas continuavam me criticando, xingando e me demonizando. No final, algo muito triste tirou o foco de todos sobre mim. Encontraram numa construção abandonada, o corpo de um senhor mutilado. Uma imitação horrenda de uma assassinado que havia abalado todos na cidade. E o pior era que os dois acontecimentos estavam interligados, dizia a polícia. A menina que vira a mãe sendo morta, matara um senhor e logo após se matou. Ninguém estranhou Nazaré ter assassinado alguém e depois cometido suicídio. Eu sim, fiquei horrorizada. Não sabia que ela seria capaz de tudo isso!
 
 

 
Nilson Rutizat
Enviado por Nilson Rutizat em 27/07/2020
Reeditado em 27/07/2020
Código do texto: T7017938
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