O velório de dona Guilhermina
A nossa história começa na zona rural de um pequeno vilarejo no interior do Nordeste.
Havia um casebre bastante humilde com um pequeno terreno para plantio, pertencente a dona Guilhermina.
Ali, vivia sozinha. Seus poucos parentes, por parte da mãe, haviam ido morar no vilarejo e apenas a visitavam de tempos em tempos, mais precisamente, por ocasião das festas juninas onde, segundo conta havia nascido.
Era a única pessoa de uma família de 4 pessoas: Seu João, dona Maria e seu irmão gêmeo, Antônio falecido quando garoto, fruto de um acidente.
Com a morte do irmão, e posteriormente dos pais, ficou sozinha na propriedade. Lá, fazia de tudo: Roçava, ordenhava, dava ração às galinhas, concertava a cerca. Era mulher para toda obra. Pouco ia ao vilarejo. Aliás, havia já um bom par de anos que não punha os pés no vilarejo. Mulher de uma energia invejável!!
Sua vida se resumia as tarefas diárias no seu cantinho. Vez por outra saia a gritar com alguns meninos que insistiam em ir brincar em terreno no fundo de sua propriedade. Quando via os garotos, deixava o que estava fazendo e saia com um cipó de goiabeira, pronta a açoitar quem encontrasse por lá. Os meninos, claro! Vendo-a, desciam correndo com medo. Diziam que era uma bruxa. E assim dona Guilhermina ia vivendo sua vida pacatamente dividindo suas tardes com os animais que criava e fumando um velho cachimbo, dado pelo velho pai como herança, antes de morrer.
Os meninos por sua vez, eram os garotos filhos de outros pequenos agricultores da região e que moravam nas proximidades. Um deles, o Felipe, não se conformava com a situação. Já havia relatado o fato à mãe e ao pai sobre a postura de dona Guilhermina que não deixava brincar no terreno baldio no fundo de suas terras. Eles gostavam de lá porque haviam muitas arvores frutíferas, era uma área com arvores frondosas que ofertavam sombra e davam para brincar do que imaginasse com os outros garotos. Ninguém os perturbavam por lá, só a dona Guilhermina.
Os pais não só do Felipe, mas dos outros garotos, tinham muito respeito pela velha senhora pois se tratava de antiga moradora da região e eles ao chegarem por lá foram bem acolhidos pela família de dona Guilhermina. Além do mais, muitos produtos que usavam eram provenientes do trabalho da velha senhora, como manteiga, queijos, alguns legumes e eles não gostariam de estabelecer animosidade com a vizinha. Diziam sempre ao garoto que relevasse o comportamento dela por se tratar de uma idosa e de ser sozinha no mundo.
Felipe e os demais garotos mesmo assim, continuaram a ir no velho terreno baldio e serem escorraçados pela velha senhora. O tempo passou e os meninos cresceram.
Felipe já adulto, se casou com a filha do dono do armazém do vilarejo e foi morar na mesma casinha que havia nascido juntamente com sua mãe e uma de suas irmãs.
Passou a realizar as tarefas do pai, e como havia aprendido o oficio de carpintaria, montou sua oficina nos fundos da casa onde a vista dava justamente para o velho terreno onde brincava escondido de dona Guilhermina.
Toda a tarde, ao final dos serviços, sentava a apreciar a vista e relembrar os momentos alegres de criança.
Vez por outra presenciava a correrias de meninos que como ele, teimavam em ir brincar lá no fundo e eram expulsos pela velha senhora.
Incomodado com a situação, foi conversar com dona Guilhermina sobre a situação. E por mais que argumentasse de que era errado ela colocar os meninos para correr daquele jeito, não conseguiu convence-la. Ela irredutível, dizia sempre que quem fosse para aquelas bandas seria perseguido por ela enquanto tivesses forças para tal.
Assim criou por parte de Felipe uma Zanga, um ressentimento de tal forma que não só deixou de utilizar produtos da velha senhora como não atendia seus chamados para efetuar pequenos reparos na propriedade, deixando-a entregue à própria sorte. Ele fazia de todo mundo. Menos dela. E olhe que sua mãe e esposa tentaram persuadi-lo por diversas vezes sem resultado. Ele não atendia.
O tempo foi passando e veio o primeiro filho de Felipe. Foi motivo de grande alegria na casa. Todos os olhos voltados para o garoto que crescia forte e esperto com uma vitalidade invejável.
Aos seis anos, já ajudava o pai na pequena oficina atrás da casa. Ajudava a arrumar algumas pequenas peças. Quando o pai voltava da roça e ia para o labor da carpintaria, lá estava o pequenino a aguardar por ele para novas tarefas.
Um belo dia, Felipe havia concluído um pedido para o seu sogro e no meio da tarde, se deslocou para o vilarejo para promover a entrega. Seu pequeno filho então, ficou na oficina organizando as ferramentas que o pai lhe incumbira antes de sair. Assim que o pai se foi, não demorou muito, começou uma gritaria lá pelas bandas do terreno de dona Guilhermina. Curioso, o garoto subiu em uma mesa próxima e tentou enxergar o que estava ocorrendo. De longe viu algumas crianças correndo. Não conseguia ver mais nada dali. Teve então vontade de ir lá, ver o que ocorria de verdade. Se fosse uma brincadeira interessante, ele por certo iria aprender. Desceu da mesa e por dentro da roça foi em direção ao local movido pela curiosidade.
Ao chegar no suposto local, não havia mais ninguém por lá. Olhou decepcionado para o local vazio e ficou a procurar algo que justificasse toda aquela gritaria. Olhou com cuidado para vários pontos. Não encontrou nada. Passou então a observar o ambiente em si. Admirou-se pelo porte das arvores que se encontravam por ali e da sombra generosa que ofertava. Realmente era um lindo lugar. Por certo mereceria vir mais vezes ao local para explorar. Falaria com seu pai.
Já ia saindo quando de longe, avistou sobre um pequeno arbusto uma bola. Pensou consigo mesmo. Os meninos esqueceram de levar. Vou pegar e guardar comigo. Se dirigiu então, para o local para pegar a bola. Ao se aproximar, percebeu que se encontrava em um nível mais alto e que teria que se embrenhar na mata rasteira que circundava o arbusto para tentar pegar. Foi buscando se aproximar com calma e cuidado. Percebeu então estar próximo de um buraco. Não havia percebido até então. O arbusto cobria esse buraco e a bola estava bem no centro. Não dava para pega-la. Teria que buscar ajuda. Começou a retroceder quando escorregou e perdeu o equilíbrio, tentou se segurar nas pontas dos galhos do arbusto, mas esses não resistiram ao seu peso e quebraram. Soltou um grito e caiu em direção ao buraco aberto em sua frente. Por sorte no último momento do mergulho fatal, pedaços de madeira que se encontravam à margem do buraco entrelaçaram-se nas suas roupas e conteve a queda. Assustado, com as roupas rasgadas e com dores no ombro direito por conta da queda, começou a levantar-se para ir para casa. Mas, lá no fundo daquele poço, ouviu uma voz fraca de alguém pedindo socorro. Seu coração disparou mais uma vez. Será que alguém havia caído ali? Mesmo com medo, perguntou e novamente ouve resposta. Havia sim alguém lá no fundo daquele buraco. A voz pedia ajuda. Ele tremulo e ofegante gritou que iria buscar ajuda para socorrer quem quer que estivesse ali. E assim, o garoto correu o mais rápido que pode para sua casa e lá contou a sua mãe e a avó. Ambas buscaram ajuda dos vizinhos que estavam por perto e foram ao local. Descobriram que se tratava de velho poço artesiano desativado e que a dona Guilhermina tinha caído lá. Os trabalhadores montaram então estrutura usando os galhos que se encontravam na redondeza. Entraram no buraco e resgataram a anciã que se encontrava ferida, com várias fraturas e com dificuldade para respirar. Ela ainda pode olhar para os seus salvadores e na sequencia fechou os olhos e veio a óbito.
Foi um momento de muita comoção. Todos sem exceção, pararam naquele momento consternados com a situação. A mãe de Felipe e sua esposa fizeram um aprece à virgem Maria para abraçar aquela alma querida. Todos acompanharam a oração em silencio e consternados com a situação.
Levaram o corpo par o pequeno casebre e o depositaram na cama. Às mulheres que ali foram atraídas, fizeram a higiene do corpo da anciã e colocaram-na roupas limpas. Alguns homens foram ao vilarejo avisar os parentes que ainda restavam da velha senhora.
A noite foi de muito pesar. Felipe soube do ocorrido ainda na casa do seu sogro. Saiu em disparada para verificar como estava o seu filho. O encontrou triste e choroso. Apesar das escoriações, o garoto se encontrava bem.
Os familiares de dona Guilhermina solicitaram a ele a confecção de um caixão para acomodar o corpo da velha senhora. Felipe que nutria ressentimento pela anciã, relutou em atender o pedido. Foi preciso que sua mãe intercedesse por ela. Ele então atendeu de má vontade. Em seus pensamentos atribuía até o quase acidente com seu filho as esquisitices dela.
Com o caixão feito, iniciou-se o velório. Muitos vizinhos à porta daquele casebre estavam em vigília. Era um costume corriqueiro que o morto fosse velado em casa até o dia seguinte, onde seria enterrado. O cortejo sairia da velha casa em direção a um cemitério onde os pais e irmão de dona Guilhermina foram enterrados.
Após colocar o filho para dormir, Felipe foi a contragosto com a mãe para o velório. Chegando lá ficou do lado de fora da casa. Se recusara entrar mesmo com toda insistência da mãe. Procurou sentar em um banco longe do casebre. Lá ficou a meditar sobre o que ocorrera e o desfecho que houvera. Achara que tinha sido o melhor pois a velha anciã nunca gostara de criança e ele era uma prova viva disso. Sempre procurava encrenca com os garotos da região, não deixando que brincassem lá em baixo e, por ironia do destino, foi lá que se acidentou e veio a óbito. Ironia do destino. Imerso em pensamentos, Felipe não percebeu a aproximação de um senhor que o saudou e pediu licença para compartilhar o mesmo banco. Felipe assentiu com a cabeça e por curiosidade, perguntou ao senhor, se ele era parente da dona Guilhermina. O senhor, após uma breve pausa, disse que era parente próximo da anciã e que vinha prestar-lhe a última vontade da falecida. Levaram um tempo em silencio quando o senhor voltou-se para ele e perguntou se ele a conhecia? O que Felipe prontamente respondeu que a conhecia desde pequeno e contou tudo que se passara com eles e seus amigos até aquele momento. O senhor sorrindo perguntou a ele por que ela fazia aquilo? Por que ela afugentava os garotos daquele jeito? Ele nunca tinha parado para pensar na questão. Todos ali diziam que ela era uma bruxa e que não gostava de crianças. O senhor então disse a ele: Vou lhe contar uma história que você e muitos outros não sabem. Guilhermina foi o segundo bebe de um casal de gêmeos. Seus pais foram os primeiros a desbravar essa região e ajudar a fundar a vila. Não havia agua por perto e a saída eram os poços que foram abertos para que as pessoas pudessem usa-los. Os próprios pais dela abriram esse poço. Um belo dia, os gêmeos estavam brincando nas proximidades do poço quando o garoto caiu dentro. Guilhermina gritou e correu em busca de ajuda. Infelizmente a ajuda chegou tarde, o garoto veio a óbito dois dias depois. Os pais de Guilhermina ficaram chocados com o ocorrido e a própria Garota passou muito tempo sem conseguir sair de casa e olhar para o poço. Todas as vezes que sua mãe saia para pegar agua por lá ela chorava. O pai então, mandou fechar o poço e abriu outro aqui na frente. Daquele dia em diante, estava proibido alguém descer para pegar agua por lá. A própria Guilhermina vigiava a trilha e tratava de colocar para correr qualquer um que ali se aproximasse. Ela tinha dito ao pai que enquanto ela estivesse viva, não deixaria ninguém cair naquele poço. E assim veio fazendo ao longo de sua vida. Não deixava crianças se aproximarem do poço para que eles não viessem a cair como seu irmão. Ao contrário do que você diz, ela gostava de crianças e cuidava de todas que apareciam por aqui. Aquela revelação me fez ficar chocado. Não sabia do ocorrido e nunca havia tido a curiosidade de perguntar. Aqueles anos todos em que pensávamos estar sendo escorraçados pela velha senhora na verdade ela estava nos protegendo. Lagrimas desceram dos seus olhos por reconhecer todo o equivoco cometido à dona Guilhermina por ele e pelos outros que ali moravam. Pediu licença e foi ao interior da casa onde fez sincera oração pela guarda de dona Guilhermina e ao final, esclareceu aos que estavam ali a estória ouvida lá fora justificando o porquê do comportamento daquela senhora.
Ao amanhecer, o caixão foi levado ao cemitério onde a família se encontrava.
Felipe abraçado com a mãe colocou as flores colhidas do seu próprio jardim e após o enterro desceram a pé para casa. No caminho foi confessando para a mãe enquanto caminhavam. Ainda bem que seu último desejo foi atendido. Ser enterrada junto aos seus pais e irmão. A mãe voltando o olhar para ele sorridente disse que o último desejo de dona Guilhermina era que o irmão gêmeo viesse para busca-la na despedida dessa vida. Rapidamente a memória de Felipe foi até o jardim, naquela noite, onde o senhor conversou com ele. Havia semelhança com a velha senhora e o cachimbo era idêntico ao que ela tinha. Um grande sorriso se abriu e seus olhos encheram-se de lagrimas. Estava feliz por ela e grato pelo cuidado que teve esses anos todos com os meninos da região que brincavam nas proximidades de sua casa. Agora era a vez dele retribuir, ficando atento as peripécias dos mais jovens nas redondezas do poço...