Vó! Cobra toma leite?
Parado no pequeno quintal, aos fundos de casa, observo o grande disco solar surgir a leste e iluminar o mundo. Reflito sobre as coisas que surgem repentinamente do nada, interrogo-me: será que tudo que é visível e palpavel surge do invisível? Questionamento valido, mas não muito concreto e aplicável à corrida desenfreada dos dias em que vivemos, ninguém analisa, prepara, desenvolve a arte do feitio, todos somente pegam, agarram e consomem, sem saber direito do que é feito e como é feito.
Porém passo a recordar-me de mais uma das histórias contadas a mim por minha querida e saudosa avó, em dias que ficávamos em volta do fogão à lenha, ou sentados no gramado sobre a sombra da ameixeira, que ficava no jardim frontal da casa de meus avós maternos. Lembro que transplantamos a ameixeira de um terreno baldio próximo, eu e meu avô, ela se tornou uma arvore imponente e de frutos amarelos e adocicados.
Bem, em um desses momentos memoráveis em que essa figura maravilhosa passava a mim, seu neto mais velho, seus conhecimentos, que trazia de uma longa tradição cultural, contou-me uma pequena, mas curiosa e até improvável história. Transmitiu a mim tantas histórias, acredito que implicitamente, tentava me ensinar qual ”o grande mal do ser humano”, ou seja, o esquecimento, as histórias estavam sendo lembradas e com elas nos lembrávamos de onde viemos e nossa busca incessante por saber para onde iríamos.
Lá estávamos nós sentados, ela em uma cadeira de madeira pintada de cor azul à óleo, que trouxera da cozinha e eu na grama, ambos aproveitando a refrescante sombra da ameixeira, além de tomarmos um mate delicioso, que apesar do dia quente, era mesmo assim saboroso. Começou a me contar uma história de algum tempo atrás, onde figuravam como principais envolvidos: uma criança e uma serpente, falava ela calmamente:
- Perto da casa de minha avó, nos tempos em que minha mãe, sua bisavó, era mocinha, moravam alguns vizinhos, que ela nunca me contou o nome, parecia que tinha certa ressalva em falar. No interior as casas não estão umas ao lado das outras, são distantes e os vizinhos, as vezes, estão a 1 KM ou mais dos outros, o que dificultava muito assuntar sobre a vida alheia (mas mesmo assim acontecia).
A conversa foi interrompida por palmas, era seu Estácio o leiteiro, que trazia, em litros retornáveis de refrigerante, todas as tardes, religiosamente, dois litros de leite, leite produzido por suas próprias vacas, prática que seria um tanto quanto incomum nos dias atuais, com todas aquelas restrições da saúde pública e coisas afins. Minha avó cumprimentou o leiteiro sem se levantar da cadeira:
- Boa tarde seu Estácio! O polaco já pega o leite!
Meu apelido era polaco, por que quando nasci tinha os cabelos quase loiros, o que foi mudando com o tempo e foram passando a ter uma tonalidade mais escura, acredito que o apelido surgiu por isso, porém minha mãe tinha o apelido de Polaca, ou como era chamada em família, por conta de uma dificuldade de fala que meu tio, seu irmão, chamado Julho, tinha quando pequeno, não conseguindo pronunciar o apelido Polaca corretamente, acabando por dizer, simplesmente: Aulata.
Fui correndo até a cozinha que ficava aos fundos da casa, apanhei dois litros de coca–cola, feitos de vidro, vazios e voltei correndo até o portão, entreguei os litros ao leiteiro, apanhei os litros cheios, agradeci e voltei à cozinha colocando o leite na geladeira. Voltei, me assentei à grama e minha avó continuou:
-Como dizia, eram vizinhos que moravam nas proximidades da casa de minha avó, um homem, uma mulher e uma criança por volta dos cinco anos de idade, ninguém sabia de onde vieram, mas residiam ali e tinham pouco contato com as pessoas.
- A casa deles era simples, como todas naquele local e época, uma casa feita de tábuas rústicas de imbuia, chão batido e telhado de pequenas tabuas de madeira. Uma coisa interessante sobre essas casas é que os quartos eram separados da cozinha por uma varanda aberta, para ir da cozinha aos quartos, ou dos quartos a cozinha tinha-se que sair por um lugar aberto e entrar no outro cômodo da casa, nuca vi muito sentido nisso. Como em todas as casas havia um pequeno paiol, onde eram guardadas partes da colheita (milho, feijão, abobora, pinhões, às vezes latas de banha e carne seca).
Interrompemos a conversa para prestar atenção em uma revoada de baitacas que passará bem próximo ao jardim fazendo um som estridente e alto (também chamavam baitacas aquelas pessoas que nunca paravam de falar, só entende quem já viu um desses animais). Os pássaros se foram numa algazarra tremenda e minha avó continuou:
- Viviam sós, o casal e o filho, um menino de cinco anos, era costume fazer polenta e colocar na tábua para esfriar, naquele tempo, depois cortava as fatias e se comia os nacos de polenta como acompanhamento com vinho, café, ou leite (nesse último caso poderia misturar o leite com a polenta).
- O pai cultivava uma roça que ficava nos arredores da casa, como o cultivo é realizado no forte do verão (de novembro a fevereiro), as pessoas iniciam os trabalhos na lavoura, já nos primeiro momentos de claridade e vão até o sol ficar mais forte, por volta das 10 horas, voltando somente a trabalhar após as 15 horas, para evitar o sol quente.
- Por volta das 10 horas, escapando do sol escaldante, o pai voltava para casa, sentava na porta da cozinha e tomava um mate, enquanto a mãe fazia os últimos preparativos para o almoço, sempre que o pai chegava, perguntava pelo menino, a mãe respondia que estava no paiol tomando leite com polenta. Por volta das 10 horas todos os dias a criança apanhava uma caneca de leite e um pedaço de polenta, se dirigindo para o paiol, repetia o mesmo na parte da tarde por volta das 15 horas.
- Todo dia a rotina da família se repetia: o pai na roça antes do sol nascer, a mãe tratando a criação e preparando os alimentos, lavando roupa e cuidando dos demais afazeres domésticos e o menino que religiosamente, por volta das 10 h da manhã e no meio da tarde, apanhava uma caneca de leite e um pedaço de polenta e se dirigia ao paiol, só retornando quando terminava de comer.
Minha avó parou, apanhou a chaleira, encheu a cuia e olhou fixamente para mim por alguns segundos, continuou:
- Num desses dias o pai chegou, sentou na porta da cozinha, a mãe lhe deu a cuia de mate, depois de tomar aquela cuiada, questionou sobre o paradeiro do filho, a mãe, como fazia todos os dias, respondeu que a criança estava no paiol tomando seu leite com polenta. Porém o pai já estava desconfiado e resolveu ir até o local ver o filho.
- Levantou-se e foi calmamente até o paiol encontrou o filho sentado de frente para a porta, fatia de polenta e caneca de leite entre as pernas e qual não foi seu horror e desespero quando notou, que seu filho bebia da caneca de leite, comia um pedaço de polenta e os colocava a sua frente (polenta e leite), entre as pernas abertas e uma enorme serpente enrolada, colocando a língua partida para fora, bebia do leite e comia da polenta juntamente com o menino, os dois dividiam a comida todos os dias.
Interrompi minha avó dizendo:
- Vó! Cobra toma leite?
Minha avó me olhou fixamente e respondeu:
- Não deveria, mas o bicho encardido e maldoso quer ter tudo que é das pessoas. Essa cobra era criada, grande, supostamente uma Jararaca, da mesma que picou meu irmão, quando ele sentou num toco velho de imbuia e partiu uma melancia, na roça, para se refrescar no calor, o bicho morava no oco da imbuia e picou ele bem no calcanhar, matou a cobra, tinha perto de dois metros, voltou para casa, já com a perna inchada, tiveram que cortar a calça do José para tirar do corpo, de tanto que inchou, o coitado do meu irmão morreu no outro dia.
- Mas o pai apesar de aterrorizado com a cena, não demorou a rezar três Crendiospai e dobrar a barra da calça três vezes, para amarrar o bicho, que ficou ali sem poder se mexer, com o animal medonho paralisado, pegou seu facão, que trazia na bainha junto ao cinto e de um só golpe decepou a cabeça da serpente.
- A criança deu um salto, como se acordasse de um sonho e se assustou com a cobra morta a sua frente. O pai levou o filho para casa e chamou a esposa para ver o animal que compartilhava o alimento com seu filho, ela se desesperou e rezou, pois só poderia ser coisa ruim.
- Durante os sete dias que sucederam o fato a criança não falava, não comia, ficava jururu, olhando da porta da cozinha para o paiol, triste e abatida, teve febre forte e no sétimo dia exatamente faleceu. Os pais tal qual chegaram, abandonaram a casa e sumiram.
Sempre que penso em coisas improváveis lembro-me dessa história, contada debaixo da ameixeira, numa tarde de sol quente, porém nunca entendi ao certo o acontecido que me fora narrado, tenho duas possibilidades para a história: na primeira a cobra com seu veneno e maldade deixava o menino em transe e foi lhe envenenando aos poucos, lhe sugando a vida, fazendo o menino adoecer e seus pais descobriram tarde demais, não tendo tempo de salvá-lo evitando o mal maior. Minha segunda hipótese seria de que o menino desenvolvera uma amizade sincera com o réptil e o susto foi em decorrência da cena horrenda que o pai proporcionou cortando a cabeça da amiga, a perda levou a pobre criança a deprimir-se e juntado ao trauma da morte violenta o fez definhar e acompanhar sua improvável amiga até a morte.
In memoriam de minha avó Dona Romalina Dalpra de Paula.