O último verão


    Debruçado na janelinha Vicentino não queria perder uma cena sequer da paisagem que se descortinava à medida que o trem avançava rumo a um mundo desconhecido. Aquele cheiro de fumaça de carvão, o tac-traque das rodas de aço nas emendas dos trilhos, o apito da locomotiva, vez por outra, pedindo passagem, o chefe de trem circulando entre as poltronas apinhadas de passageiros conferindo as passagens, e o primo Alberto ao seu lado cheio de recomendações: “Não bota a cabeça para fora. É muito perigoso. Se precisar alguma coisa do carro-restaurante me pede. Fica sentado aí. Não queres ir ao banheiro?” E para completar o cenário, um gaiteiro lá no fundo do vagão rasgava o instrumento executando o chote Laranjeira acompanhado por um cantor bigodudo que se esforçava para acompanhar os compassos do gaiteiro e agradar a platéia.
    Para Vicentino, aquela viagem tinha o sabor de aventura. Pois aos quinze anos, completados naquele verão, a única viagem de trem que fizera antes, fora a Santa Maria para prestar exames de admissão ao ginásio em colégio de mesmo nome. “Nada mais justo que o guri vá passar as férias deste ano no campo” – decidia dona Zéza, a mãe, depois de muito planejar, antes de concordar com a idéia do primo Alberto de levar o guri para passar uma temporada na granja. Após a perda do marido, Valeriano Bernalli, morto de forma trágica já faz tempo, dona Zéza ficara cheia de ciúmes e cuidados com os seis filhos menores.
   Alguns anos mais velho que ele, primo Alberto acabara de dar baixa do 4º RC de Santiago do Boqueirão, onde permanecera vários anos por causa da guerra na Europa. Finda esta, estava retornando à casa paterna ostentando com orgulho as divisas de cabo. Porém antes era preciso ouvir as recomendações de Tia Zéza.
– Pelo amor de Deus, Alberto. Cuida bem deste guri, pois ele nunca saiu longe de casa. É muito bobinho ainda, em certas coisas é meio desastrado – e dirigindo-se ao filho – e tu, vê se te comportas como gente – recomendava dona Zéza, ao tratar dos últimos detalhes da viagem.
– Perca o cuidado, Tia. Ele vai ser bem cuidado lá na granja. Sabe como é minha mãe. Cuidadosa com as crianças. Lembra da Anselminha? Aquela negrinha que ela levou daqui para terminar de criar? Está moça – foram as palavras que Alberto teve que empenhar para obter a liberação para a viagem do primo. Enquanto que Vicentino que estava ali ao lado ouvindo a cantilena de recomendações da mãe, fungava: “Minha mãe cisma que ainda sou criança. Mal sabe ela do que eu sei e do que não sei. E tu também Alberto, tem a mesma cisma que ela. Que mania?” remordia-se, em pensamento, com o que lhe parecia ser uma falta de consideração de todo mundo, tratá-lo como se ainda fosse uma criança.
   Por ser o único filho homem, e o mais velho de uma irmandade de seis, ele dividia as atenções maternas com cinco irmãs. Em decorrência disso, fosse por desatenção involuntária da mãe ou por estar sempre em minoria, ele nunca se acostumara com a situação de ficar sempre com as migalhas de carinhos, enquanto lhe sobravam as descomposturas e culpas por tudo o que acontecia de errado na casa. E atrás de uma descompostura quase sempre vinha a alcunha de “seu desastrado!”
– Vou te entregar em domicílio, guri – brincara o primo quando embaracavam no trem, na estação de Iguaritama. E o “domicílio” ficava a três longas horas de viagem.
E lá ia o trenzinho resfolegando campo a fora fraldeando coxilhas, deixando para trás um penacho de fumaça negra, sinal de que a locomotiva avançava com potência máxima, no limite dos 35 quilômetros por hora.
– É bom baixar o vidro – recomendou Alberto, preocupado para que não acontecesse nada de errado com o primo. – Aqui no campo o trem corre mais e solta muita fuligem. E se cair uma brasa na tua roupa, abre um buraco. E aí... noutra vez. Sabe como é... tua mãe.
    Embora não tenha gostado, Vicentino concordou. Pois, apesar de ter deixado de sentir no rosto aquela aragem gostosa do descampado, podia contemplar, mesmo que fosse através da vidraça, as belas paisagens que se descortinavam.
Aqui um capão de mato salpicado de manchinhas brancas das garças pousadas nas grimpas do arvoredo. Logo após um lombo de coxilha, onde o gado pastava esparramado. Depois uma restinga coleante cercada de mato baixo que surgia de repente para depois ir sumindo, sumindo, à medida que o trem avançava. Logo a seguir uma fazenda com sua casa branca, largona, cercada de cinamomos, e ao lado uma capelinha, também branca e arvoredo aos fundos. Vicentino encantava-se com estes novos panoramas, pois ele crescera em região montanhosa, onde os horizontes parecem mais próximos e as paisagens, mais abruptas.
    Absorto nestes pensamentos e já meio sonolento com o “já-te-pego, já-te-largo” que a locomotiva em seu resfolegar parecia fazer, Vicentino ansiava por chegar. O gaiteiro descansara seu instrumento e o cantor bigodudo cochilava escarrapachado em sua poltrona, e o primo, que dissera que ia ao restaurante e voltaria logo, estava demorando. Resolveu ir atrás. “Será que consigo?” – duvidou. Mas encorajou-se e foi. Ou pelo menos tentou, pois no momento em que se punha de pé e dava os primeiros passos, casualmente a linha descrevia uma curva acentuada e ao ser projetado para frente, ele perdeu o equilíbrio. Tentou agarrar-se no pega-mão da poltrona, mas errou o bote. Aí foi pior. Acabou caindo de bruços contra uma chirua velha, empurrando-a de golpe contra a janela.
– Opa! Que é isso, guri? Veja o que faz diacho! – estrilou a mulher, empurrando-o como pode de volta ao corredor. E aí, tentando pôr-se de pé, desequilibrou-se novamente e acabou caindo sentado. A gargalhada foi geral.
– Marinheiro de primeira viagem, guri. – ouviu alguém gritando de um lado.
– Não comeu uma pedra de sal antes de embarcar? – perguntava outro entre as gargalhadas.
   Entretanto, embora tenha ficado encabulado, ele conseguiu arrastar-se até a poltrona, onde permaneceu com o rosto colado na vidraça vendo os campos, as cercas, o gado, os postes do telégrafo e a paisagem, o mundo todo correndo para trás. “Eta mundo louco, seu!” refletia, quando viu primo Alberto surgir na porta do vagão.
– Demorei Vi? Olha, tem um café com leite e pão com manteiga ali no restaurante, daqui... oh! – disse acompanhando com o gesto de puxar o lóbulo da orelha – não queres ir lá tomar um?
– Não. Muito obrigado. Estou sem fome.
– Vam’bora rapaz. Já são as quatro, e depois do Pessegueiro teremos ainda um bom trecho a fazer de charrete. Vais chegar na granja varado de fome. To falando.
– Já disse. Estou sem fome.
– Bom. Tu que sabes – concluiu Alberto, sem desconfiar do ocorrido.
Não demorou muito e eles perceberam que a locomotiva parecia perder forças e após três apitos breves, diminuía a marcha.
– Pessegueiro! Cinco minutos de parada. Quem fica em Pessegueiro? – era o chefe de trem anunciando em voz alta que a travessia deles chegara ao fim.
   O desembarque foi rápido. E antes mesmo de a locomotiva apitar novamente anunciando a partida, eles já estavam com as bagagens em mãos – uma maleta e um saco de roupas – caminhando sob a marquise da estação, a tempo de assistirem os esguichos de vapor e as explosões de fumaça da locomotiva pondo-se em marcha novamente rumo à Vila Bossoroca.
Depois rumaram para o bolicho de seu Alvarino Ventura, onde alugariam uma charrete para seguir viagem para a granja, a mais ou menos uma légua dali.
   Mas nem bem eles haviam chegado, Vicentino notou que seu Alvarino Ventura chamou Alberto para um lado para segredar-lhe que lá pela granja a situação não era boa. De onde estava, mais preocupado em encontrar algum local apropriado para aliviar a bexiga, ele pouco ouviu daquela conversa entre os dois: algo como falta de chuvas... açudes secando... plantação de arroz sofrendo com a seca.... seu pai muito nervoso. Coisas que não lhe diziam nada, pois o que necessitava, com urgência, era aliviar-se. Por isso, enquanto o dois conversavam ele foi saindo apressado a ver se encontrava uma casinha. Como num relance que deu ao redor não notou que este sanitário bucólico ficava lá no fundo do quintal, junto às taquareiras, achou que atrás de uma meiágua que ficava ali próximo seria um local apropriado, não teve dúvidas. Acercou-se e começou a desaguar, dirigindo o jorro quente sobre um carreiro de formigas que iam e vinham na parede de tábuas.
– Tu não tem outro lugar pra mijar, guri? Por que não vai lá na casinha? Seu severgonha deseducado! – Era a mãe de seu Alvarino, uma velha, viúva, que por não se quadrar com a nora, preferia morar sozinha na meiágua. E que ao ouvir um ruído estranho na parede da cozinha saíra para ver o que era.
Vicentino fez o que pôde. Estancou como pôde e recolheu-se como pôde e saiu de fininho, meio encurvado, querendo esconder-se de si mesmo, refletindo: “Puxa! Que azar. Hoje não é meu dia mesmo” – e apurando o passo, acercou-se de Alberto que ainda conversava com o bolicheiro, e falou afobado:
– Ô Alberto. Como é? Vamo ou não vamo?
Alberto virou-se para primo, fez uma mesura e em posição de sentido bateu os tacos das botas, como quem bate continência e expede uma ordem:
– Pronto meu comandante! A viatura já se encontra no dispositivo, pronta para a viagem. Avante camarada!
– Ah, não chateia. Vamo simbora que eu não vejo hora de chegar. Deste jeito nós vamos chegar lá na granja é de madrugada.
– Ta bom guri. Pega o fiambre que seu Alvarino preparou, despede-se do homem e vamos embora – e dirigindo-se ao bolicheiro: – Até mais ver seu Alvarino. Devolvemos a charrete amanhã mesmo por um peão.
    Ao contrário da longa travessia que fizeram de trem, que para Vicentino foi muito divertida, o restante da viagem foi monótona e cansativa. Nem tanto pela lentidão do animal, que só trotava nos lançantes, limitando-se a um tranco maneiro nas planuras e a um passo lerdo e cansado nas subidas, mas por que eles iniciavam o trajeto contra a monotonia do crepúsculo. E nada é mais melancólico do que o entardecer no campo. Parece que o ar pára e faz silêncio para a natureza dormir. As aves pernaltas cruzam os céus em revoada rumo aos ninhais. O gado, em fila, procura a pousada enquanto a vacagem vai mugindo seus lamentos chamando por suas crias extraviadas. A passarada silencia e procura abrigo na ramagem do arvoredo. O dorminhoco, em vôos rasantes, inicia sua vigília noturna estalando o bico feito matraca. E enquanto o urutau ensaia seus lamentos e se disfarça em pau em cima do moerão da cerca à espera que algum camondongo apareça para ele jantar, a seriema empoleirada nas grimpas de um pé de salso entoa seu canto em oitava, despedindo-se do dia que pouco a pouco vai morrendo, enquanto que da chaminé da casinha modesta do posteiro no fundo da invernada a fumaça revoluteia no ar, indicando que a chinoca está a preparar a última refeição do dia. É, enfim, a noite chegando sorrateira e maleva para encobrir toda a natureza com seu capuz estrelado, chamando os seres viventes ao repouso. Porém há certas ocasiões em que, mesmo no campo, nem todos respondem a este chamado. São os vigias e os viajantes.
– Acorda dorminhoco! Olha a cuscada – era a voz de Alberto, acompanhada de latidos de cachorros que Vicentino acabara de ouvir ao despertar de um sono letárgico. Eis que, durante o trajeto noturno sob o embalo da charrete e a falta de assunto do companheiro de viagem, ele, meio enroscado em si mesmo e recostado no banco, havia se entregado a um sono cheio de solavancos.
– Hein! Que é? Chegamos? – perguntou o estremunhado viajante esfregando os olhos para ver se conseguia ver alguma coisa no ambiente. Além dos cachorros, uns quatro ou cinco latindo e circulando ao redor do veículo, Vicentino viu-se em frente a uma casa destacada da paisagem pelos primeiros claros da lua que acabara de nascer. Ao lado uma ramada e um pouco mais distante, outra construção que pelo perfil e dimensão devia ser um galpão.
– Apeia. Ou vais continuar dormindo aí?
– Os cachorros. Eles não vão me morder?
– Morder? Sem essa, valentão. É Mulita, a cadelinha paqueira de Gasparino com sua filharada. Eles só sabem morder pacas e tatus. E tem outra: cachorro que late não morde. Desce. Vamos ver ser encontramos alguma coisa para comer lá no galpão, pois é por lá que vamos dormir mesmo. Não quero acordar os velhos agora. Vam’bora – determinou primo Alberto.

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   As pessoas da granja eram suas conhecidas, mas as imagens que ele retinha na memória eram um tanto difusas, pois vinham de um tempo em que ele era muito criança. Lembrava-se que os tios Luisito e Hortência, mais o filho Alberto, haviam saído de Iguaritama à procura de terras para plantar arroz lá longe, muito longe. Da tia, a lembrança era mais recente. Coisa de uns seis ou sete anos quando ela esteve lá na cidade por ocasião do enterro de vovó Anselma. Era uma mulher alta, de falar pausado, bonachona e carinhosa, cabelos longos, lisos, mas conservava-os sempre enrolados num coque no alto da cabeça. Tio Luisito Bernalli, um homem alto, magro, de pouca conversa e que, vez por outra, gostava de explodir com os outros. Primo Alberto? Bom. Este era como irmão e vizinho, pois desde que fora sentar praça no 4º Regimento de Cavalaria de Santiago, sempre que conseguia tirar licença no quartel, ele vinha a Iguaritama visitar os tios, onde fazia questão de se exibir em uniforme de cabo. No mais havia os peões Gasparino e Zé Dutra, que até ali eram seus desconhecidos. Gasparino era cria da Vila do Recreio, município de Iguaritama, e Zé Dutra era da Vila Bossoroca, ali pertinho.
    Contudo a surpresa maior ficou por conta de Selminha, pois a imagem que ele conservava na memória era de uma negrinha magrela, mais ou menos de sua idade, de olhar assustado, órfã de mãe solteira, que tia Hortência adotara como filha e trouxera para terminar de criar. E até ficou sem jeito e encabulado, quando na manhã seguinte, na hora das saudações, Tia Hortência dirigindo-se a alguém que bulia lá na cozinha, falou:
– Selminha vem cumprimentar teu primo que acaba de chegar.
– Vou já madrinha – respondeu lá de dentro uma voz cheia de jovialidade, para em seguida aparecer emoldurada no portal, onde ficara parada enxugando as mãos no avental, uma moça trigueira, esbanjando vitalidade, sorriso aberto e franco, olhar indagador e cativante. Era Selminha a filha de criação de Tia Hortência.
– Oh.
– Oh – foi toda a saudação que trocaram.
Mas depois ele adiantou-se e deram-se as mãos:
– Como vai?
– E tu? É o Vi da Tia Zéza?
Aí pronto. Os dois únicos jovens existentes naquele mundão de adultos atarefados estavam apresentados. E embora ele não demonstrasse surpresa, não deixou de refletir: “como cresceu e ficou bonita esta guria.”
   A primeira semana de Vicentino no campo foi de total empolgação. Parecia outro mundo, outro sol e outro céu. Horizontes a se perderem. Campos recobertos de verde esmaecido pela estiagem, rebordado aqui e ali por fímbrias de matos, onde o passaredo multicor musicava seus gorjeios. E um ar leve, com cheiro de ervas do campo e capim seco, que ele, por achar gostoso, enchia os pulmões repetidas vezes até sentir-se meio zonzo.
Levantar cedo, tomar leite na caneca, recém ordenhado, participar de caçadas de tatus e pacas com Gasparino e seus cachorros, mais Zé Dutra, comer carne de caça, enquanto novidades tudo ia muito bem. Mas com o passar dos dias o que era novidade foi se transformando em rotina e diminuindo o interesse. Entre os adultos, que outra coisa não faziam do que esperar pela chuva, lamentar a sorte e imprecar contra Deus, ninguém se dispunha a dar-lhe a atenção. Até Alberto que lhe era mais próximo, envolvido mais com os problemas causados pela estiagem, esquecia-se que ele viera para, se possível, passar todo o verão aqui. A única pessoa que lhe dispensava um pouco de trela, e mesmo assim de forma comedida, pois parecia estar sempre sob a vigilância da madrinha, era prima Anselma.
    Então, a partir daí a vida no campo começou a parecer-lhe monótona e desinteressante. A saudade da mãe, das irmãs, dos companheiros de traquinagem – aqui ele não encontrara nenhum – levaram-no a pensar em pedir para a tia providenciar seu retorno. Contudo não pediu. E nem precisou, pois quem primeiro notou que o sobrinho estava entrando naquela fase de tédio campestre – que acontece com pessoas desacostumadas – foi Tia Hortência. Por isso ela tomou a iniciativa para livrá-lo da segunda fase, que é a melancolia. Então, disfarçadamente, sem demonstrar qualquer tipo de preocupação, procurou através de indiretas incentivá-lo a participar do dia-a-dia da casa.
– Filho – ela costumava chamar todo mundo filho – quem sabe tu não queres ajudar Selminha a arrancar mandioca lá na roça? A terra está dura e ressequida, ela sozinha não consegue. Tu vais, para a tia, meu filho?
   Prontamente. E lá se foi o rapaz com enxada às costas ajudar a prima a arrancar mandioca para cozinhar para o almoço. Ele achou um tanto trabalhoso, mas no fim deu tudo certo e eles retornaram com uma sacola empanturrada de raizes. Para alegria de Tia Hortência quando os viu chegar tagarelando. “Um santo remédio para o mal do tédio” – festejava a bondosa tia.
– Selminha, quem sabe hoje à tarde tu levas o Vi para te ajudar a voltear as vacas e encerrar os terneiros? – era a tia novamente, preocupada em dar continuidade ao tratamento.
   E dessa forma naquela tarde lá se foram os dois, num andar vagabundo campo afora a campear as vacas de leite. Com a menina sempre tomando as decisões, pois quem entendia tudo sobre as coisas do campo, ali, era ela. Enquanto que ele limitava-se a contemplar – cada vez mais envolvido emocionalmente – os atributos de femininos da moça. Aquele olhar gaiato e sensual, os seios pontudinhos, empurrando a roupa para fora como se quisessem romper o tecido de chita, ancas salientes, bem desenhadas, riso solto, cabelo abundante e encaracolado, com lampejos castanhos, assim como também a cor dos olhos, denunciando, talvez, sua paternidade branca, enchiam de desejo aquele meninão com a sexualidade latejando em todas as extremidades. Porém apenas isso. Pelo menos era assim que ele pensava. Era apenas uma tentação.
   A partir daí os dias foram se tornando mais interessantes ao ponto de fazerem-no esquecer o tédio e a vontade de retornar para casa. E Selminha, como professorinha, não poupava reprimenda, acompanhada de uma boa risada, sempre que o aprendiz cometia algum engano. –”Deixa de ser burro, Vi.” – corrigia. Enquanto que o rapaz, sempre de ouvidos atentos, fazia questão de demonstrar que já estava se tornando um sabichão. – “Tô ficando sabido” – vangloriava-se.
   Certa ocasião em que campeavam as vacas, eles se depararam com um buraco no chão. Na tentativa de mostrar que já sabia das coisas, Vicentino apontou a vara de tanger que trazia consigo:
– Olha ali um buraco de tatu! – anunciou, com garbo de guri sabido. Selminha não segurou o riso.
– Tatu não faz buraco, seu espertinho. Tatu faz toca. E aquilo ali é um ninho de coruja num cupinzeiro abandonado.
– Ah... é? E com o é que tu sabe?
– Quer ver? – e tomando-lhe a vara, aproximou-se do buraco e foi introduzindo-a até tocar no fundo. Foi o bastante para saltar lá de dentro, e sair voando, uma corujinha caburé indo pousar sobre outro cupinzeiro, onde ficou balançando a cabeça e chiando como quem diz: “psssiu, sai dali, psssiu, sai dali.”
– Te falei – disse Selminha, ante o olhar incrédulo do novato aprendiz. – Vem cá que eu vou te mostrar a diferença – aproximando-se da boca do buraco os dois ficaram ajoelhados como se fossem rezar. Enquanto ela ia explicando que em ninhos de corujas sempre há asas de besouros, couro de ratos, pernas de gafanhoto e ossos de lagartixas, que são seus alimentos preferidos... ele não estava ouvindo nada. Seus olhares e atenção estavam voltados àquelas duas meias luas cor de canela que apareciam no decote entreaberto quando ela se abaixava um pouco mais para tirar de dentro do buraco um punhado de terra. Depois o braço desnudo dela roçando-se ao seu e aquele odor difuso e misturado de corpos suados, foi como uma fagulha a incendiar-lhe o desejo. E enquanto ela continuava falando e explicando coisas a cerca de corujas e tatus, ele permanecia ali, sem ouvi-la, estático e ofegante, boca entreaberta, salivando, mirando-a de um jeito como se quisesse engoli-la junto com o ar que respirava. E planejava: “E agora... eu abraço ela... e ela talvez nem tenha tempo de reagir e gritar. Talvez nem grite...não sei... e aí, pronto, aqui no campo...ninguém vai ver.
– Tu tá louco, Vi?! Que foi que te deu? Presta atenção! – falou Selminha ao estranhar o silêncio do companheiro de aventuras, que parara de falar ou de perguntar, e ao se virar dera com dois olhos esbugalhados, uma boca entreaberta e ofegante parecendo querer devorá-la por inteiro e em posição suspeita.
– Tá te sentindo bem, Vicentino?
- Ãhhhnn! Nada, não. Eu só estava pensando – murmurou, disfarçando.
– Pensando no quê, cristão-de-deus?
– Ah, esquece. Vam’bora, que já estou morrendo de fome.
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    O tratamento de Tia Hortência contra o tédio do sobrinho dera resultados, pois a cada dia ele parecia estar mais alegre, risonho e brincalhão, além de muito esfomeado na hora das refeições.
– Não tem carne da paca hoje, Tia? – cobrava quando não via sobre a mesa do almoço aqueles assados saborosos com seus aromas característicos de carne de caça. – Nem tatu?
– Filho, tu não fostes mais caçar com Gasparino. Como é que queres comer paca. Mas tem ovelha. Se gostas...
    Claro que aquela reclamação toda era uma maneira de mostrar que estava de bem com a vida. E estava mesmo. A atração que sentia pela prima tornava-se cada dia mais intensa. E seu jeito gaiato de dizer as coisas e seus olhares lânguidos, fixos ou disfarçados, seus trejeitos dengosos, desfaziam qualquer possibilidade de cair novamente no tédio campestre. Ao contrário. Ele queria viver cada momento como se fosse o último. Com toda a intensidade. Sentia sua vontade fraquejar, seus músculos esmorecerem e seu pensamento confundir-se, quando estavam a sós.
Selminha, ao contrário, parecia fazer tudo com uma naturalidade inocente. Ou pelo menos assim demonstrava. Era tudo sem malícia e sem outros propósitos que não fossem os de ensinar o que ele não sabia.
   Outro dia enquanto campeavam as vacas e corriam atrás dos terneiros para encerrá-los no chiqueiro, Selminha teve uma idéia meio maluca:
– Vi, tu não quer aprender a tirar leite? Eu te ensino. Quer?
   Claro que ele quis, pois era mais um ocasião de estarem juntos sem a vigilância dos adultos, onde ele poderia saborear com os olhos, e à vontade, toda a sensualidade da prima.
Conforme combinado, na hora da ordenha lá estava ele, braços abertos, recostado na cerca da mangueira a observar a habilidade da moça a fazer esguichar dos tetos de uma vaca mansa aquele jorro de leite quente e espumoso, fazendo barulho no fundo da caneca. Achou que era fácil.
– Deixa eu experimentar – disse, acercando da vaca e ficando de cócoras, meio desajeitado. A seguir agarrou a teta da vaca e começou a puxar atabalhoado. Tudo o que conseguiu foi incomodar a vaca que, ao reagir com um coice atingiu o balde, derramou o leite e derrubou o ordenhador sentado no chão. Selminha, morrendo de rir, correu em seu socorro e começou a lhe ensinar:
– Ô... Vi! Olha aqui. É assim, oh. Primeiro aperta com força o dedo grosso com o dedo maior. Tá vendo... oh? Depois vai apertando os outros dedos até o mindinho e puxa. Experimenta de novo. Mas vai com jeito, senão a vaca te dá outro coice.
Mas qual o que. Por mais que se esforçasse, o máximo que ele conseguia, além de incomodar a vaca, era fazer sair um fio de leite escorrido, sem força, sem ruído e sem espuma. Porém ela não desistia.
– Espera aí. Vou te mostrar – e acercando-se da vaca, ordenou: – Pega na teta – e ele pegou – agora faz assim... oh! – e pôs sua mão habilidosa sobre a do rapaz e começou a apertá-la, enquanto explicava:
– Primeiro aperta, depois puxa. Vamos. Assim. Primeiro aperta, depois puxa. De novo: aperta e puxa – e continuava a pressionar a mão dele conta a teta da vaca. Embora ele estivesse gostando do massagear continuado daquela mão morena sobre a sua e aquela voz de veludo bafejando em seu ouvido: “primeiro aperta, depois puxa” o leite não saía a contento. Mas serviu para fazer seu coração acelerar e bater mais forte na caixa do peito, forçando-o a respirar fundo, de boca aberta, uma, duas, três vezes, buscando alívio.
   Finalmente, após dar um tabefe carinhoso na mão trêmula e nervosa que ele ainda conservava agarrada à teta da vaca, Selminha ergueu-se, abriu um sorriso mostrando uma fileira de dentes alvos, emoldurados por dois lábios bem desenhados, pegou o balde para ir trocar por outro, pois aquele sujara de esterco ao tombar, e concluiu:
– Ah... tu não tem jeito mesmo, seu mangolão da cidade. Nem puxar numa teta tu sabe. Tempo perdido. E agora vai lá dentro trocar essa roupa que sujou de bosta de vaca quando tu caiu. Hummm. Tá fedendo – e ria-se.
   Enquanto ela se afastava cheias de requebros – que ao rapaz pareceram propositais e provocativos – ele permanecia ali cheio de maus pensamentos. Pois com aquele jeito franco e descontraído da moça, parecia-lhe que ela estava demonstrando sentir os mesmos desejos. Porém, cauteloso, não deixava de refletir: pode ser só o jeito dela. Ou será que ela sente o que eu sinto? Não. E mesmo que fosse não seria possível. Ela é mesmo que prima. Ou não?”
   E à noite ele foi para cama pensando nas peripécias da ordenha, cheio de ansiedade e tensão, com a sexualidade latejando, imaginando ter a prima aos seu lado, bem juntinho, com aquela voz de veludo a sussurrar-lhe: “primeiro aperta, depois puxa, aperta e puxa.” Então, sob o calor das cobertas, ele continuou lembrando-se e rememorando, até que, depois de satisfeito, caiu no sono. Naquele sono para onde só vão as almas que atingem o êxtase..
   Na segunda-feira seguinte a granja amanheceu com uma movimentação fora do comum. Numa lufa-lufa que deu até para Vicentino notar que as pessoas pareciam preocupadas em resolver algo muito importante. Inclusive de parte de Tio Luisito, que em semanas anteriores andara muito nervoso por causa da estiagem, porém nesta segunda-feira amanhecera despachando ordens para todos os lados: Aos peões Gasparino e Zé Dutra que fossem à vizinhança contratar mais peões. E Alberto que atrelasse as mulas na carroça e reunisse a ferramenta. Parecia que estavam preparando um grande empreitada. Curioso e sem entender direito o que se passava com aquelas pessoas atarefadas, Vicentino conseguiu arrancar uma explicação de Alberto:
– Graças a Deus a lavoura está salva, Vicentino – ia explicando Alberto, demonstrando uma euforia desmedida enquanto andava de um lado para outro reunindo pás, picaretas e outras ferramentas em cima da carroça. – Dom Matoso nos cedeu água de seus açudes. Pelo menos o arroz vai agüentar até que venham as chuvas. Se Deus quiser.
   Explicação que pouco resolveu, pois Vicentino continuava sem entender. Apenas lembrava-se de ter ouvido dias atrás, um fio de conversa entre Tio Luisito e Alberto, que esse tal Dom Matoso, o maior fazendeiro da região, era tido e havido como um homem mau que não fazia favores a vizinhos e não levava ninguém pra compadre. Mas como em sua fazenda – que ficava em topografia mais elevada em relação à granja dos Bernalli – havia um grande açude, eles estavam tentando negociar com o fazendeiro para usarem parte daquela água para irrigar a lavoura que sofria com a estiagem. Bastava, para isso, sangrar o açude e fazer um pequeno canal.
“O tal homem mau deve ter concordado” – raciocinou Vicentino, em seu pouco entendimento sobre arroz, sobre açudes e sobre maus vizinhos. Mesmo por que ele estava com o pensamento era na prima, quase como uma fixação, imaginando onde ela estaria naquele momento. Estaria ajudando Tia Hortência em suas lidas caseiras? Talvez as duas estivessem atarefadas no preparo dos fiambres para os homens levarem, já que eles teriam que passar alguns dias longe de casa. Por isso resolveu verificar. Talvez a prima estivesse precisando de ajuda. E de fato, encontrou-a puxando a Pimenta, egüinha pipeira, mansinha que só, para atrelar na pipa carroçável a fim de ir buscar água na cacimba.
– Vem cá. Onde é que tu tava Vi? Vem me ajuda atrelar a Pimenta na pipa. As talhas da cozinha estão secas e o bicharedo já não tem mais água de beber.
E assim, dali a alguns instantes lá iam eles campo a fora: Selminha puxando a egüinha pelo cabresto, ele seguindo ao lado, cheio de felicidade, cantarolando meio desafinado:

“Nasci cá na cidade, me casei na serra,
com minha Mariana, moça lá de fora.
Um dia estranhei os carinhos dela,
disse adeus Mariana que já vou embora”

   Mal terminara o verso, em vez de aplausos o que cantor improvisado ouviu foi uma risada de mofa da companheira, com um comentário jocoso:
– E tu achas que alguma moça da serra ou da cidade vai querer casar contigo? Pufff!
– E por que não? Ou tu acha que não sou bem capaz de me casar?
– e aproveitando a deixa, brincou com a prima – E tu? Não te animaria a casar comigo?
– Bom. Se tu é capaz, ou não, ninguém sabe. Tem que provar primeiro. E no dia que eu quiser me casar, tem coisa melhor.
– Olha só a pretensão dessa bruxinha enjoada. – retrucou.
– Ah... tá bom Vi. Vamo deixar de conversa fiada. Vam’bora que a cacimba ainda está longe – atalhou Selminha cortando a conversa..
A única cacimba onde encontravam água fresca ficava um pouco distante, num sopé de coxilha beirando a várzea, já que as mais próximas haviam secado. A certa altura moça sofrenou a égua e entregando o cabresto para o rapaz, comandou:
– Agora puxa tu, que eu vou montada. Vem cá. Me ajuda montar – ele foi. – Agora faz um estribo pra mim. Segura as duas mãos juntas assim, oh, dedos trançados. Isso. E no momento em que a moça punha o pé naquele estribo improvisado e impulsionava o corpo para alçar a perna, aí pronto. Vicentino descuidou-se, suas mãos se soltaram e a pretensa amazona veio a baixo. Para não deixá-la cair de vez, Vicentino amparou-a com um abraço e assim permaneceram alguns segundos com os corpos colados. Para sua surpresa ela não esboçou reação. Foi o tanto que bastou para ele sentir o que já imaginara antes: o calor, a maciez e a gostosura de acariciar aquela pele morena da filha de criação de Tia Hortência, sua prima Anselma. Com um braço segurou-a firme pala cintura, enquanto que com o outro procurava aquelas duas pombinhas juritis ariscas, seus seios, além de tentar aproximar a boca de seus lábios sensuais. E naquele entrelaço de dois corpos unidos, ele percebeu que o da prima vibrava, sua respiração ofegava e seus olhos se entrecerravam e seus braços, que até ali estiveram caídos, ergueram-se para completar um abraço envolvente, com gana e desejo. Naquele momento abriu-se o portal dos sonhos no mundo de Vicentino. E daí, até seus lábios se encontrarem foi o caminho mais curto e glorioso de sua vida. E enquanto a egüinha Pimenta, beiçorra caída, sacudia a cabeça de vez em quando para espantar mutucas que zumbiam em suas orelhas, sem se incomodar com o que estava acontecendo em seu costado, eles permaneciam assim, transferindo energias, numa loucura de prazer, até que a moça, numa reação firme e decidida, usando as duas mãos o afastou:
– Ô... Vi! Pára! Eu só pedi pra ti me ajudar a montar. Tá bom? Por favor.
– Não Selminha. Só um pouquinho. Selminha... – balbuciou o rapaz, ofegante. – Só mais um beijinho.
–Não, já disse! Vamos buscar a água. Senão a madrinha nos mata.
Inconformado com a reação da companheira, Vicentino ainda tentou segura-la pela mão:
– Selminha... eu gosto de ti. Só mais um pouquinho. Te quero bem... Selminha... espera.
– Não. Já disse! – repetiu, decidida – Agora me ajuda a montar de novo e não faz mais assim, viu?
   Desta vez foi mais fácil. Depois de calçar o pé no estribo improvisado, que desta vez ele fez com mais atenção, ela segurou com a mão esquerda a crina do animal, alçou a perna com a agilidade de uma cabrita e saltou para o lombo da egüinha, que, ao sentir aquele peso cair sobre seu espinhaço soltou um bufo gemido.
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    Após aquele incidente ocorrido quando estavam a caminho da cacimba, em que eles só não chegaram ao ato final de uma relação amorosa mais íntima graças à reação decidida da mocinha, começou um período de dúvidas e incertezas para Vicentino. Principalmente porque, a partir daquela curta viagem entre ir à cacimba, encher a pipa e retornar para casa, ele notou que ela mudara de atitude. Parecia outra. Cessara o riso, controlara os modos e falava pouco. Isto bastou para desencadear na cabeça do rapaz um sentimento de culpa. “Será que eu fiz bobagem de novo?” – indagava-se. “E se ela vai e conta pra Tia Hortência? Também... eu não fiz nada demais. Só nos beijamos, tá certo. Ela parece ter gostado. Eu senti isso. Poderia ter sido pior se... mas não foi nada disso.” – remordia-se, satisfeito e arrependido ao mesmo tempo. “Eu sou um desastrado, mesmo. Droga. Mas que foi bom, lá isso foi.” - consolava-se.
   Naquele fim de tarde, sentado em cima da pipa dágua sob a ramada, distraído com uma perua que se aproximara para dar de beber a uma ninhada de peruzinhos numa poça formada por uma goteira da pipa, Vicentino destilava a alma com um suspiro atrás do outro. Ele queria entender aquele estranho sentimento de afeto que sentia pela prima, algo que mexia lá dentro do peito.    Uma ânsia desmedida e incontrolável de estar próximo e de vê-la gesticular, de falar com aquele jeito gaiato e aquele algo no olhar, um brilho estranho naqueles olhos castanhos, tudo se confundia. “Será que ela está sentindo a mesma coisa que eu” - indagava-se. “Pode ser que ela pense que eu estou apenas querendo me aproveitar. Mas não é dada disso.” E num ato involuntário, batendo com o punho cerrado na própria coxa, repetiu em voz alta:
– Não é nada disso!
– Não é nada disso o que, cristão-de-deus? Tu tá ficando doido Vi? Falando sozinho feito uma velha coroca andando pela ribeira procurando ovo de perdiz?
   Era a prima, que vinha buscar água e ao vê-lo ali sozinho, gesticulando como se discutisse com algo invisível, aproximara-se sem fazer ruído.
– Ãhhh. É tu, meu... am... é tu Selminha?
– E quem havera de ser? O Boitatá? O Negrinho? Agora me diz: não é nada disso o que?
Ele embasbacou. Deu uma desculpa de que estava só brincado com a perua – que nesta altura já dera de beber e se afastava com uma fileira de peruzinhos piando de atrás.
– Eu estava dizendo que matar um bichinho deste só pra comer acho que não deveria ser assim – mentiu.
– Então desce daí e vem me ajudar levar água pra dentro que a Madrinha quer falar contigo.
Vicentino gelou. “Agora tô lascado? Vai ver que ela contou para Tia.”– Lembrou-se logo de mãe Zéza, dedo em riste, dizendo: “Que é que tu fez, guri? Nunca mais venha me pedir para passar féria no campo. E para tia Hortência, o que é que vou dizer? Que não fizemos nada demais? Tudo vai depender do que foi que ela disse pra tia?” – e em meio a estes pensamentos, mortificando-se e já esperando pelo pior, lá ia ele acompanhando Selminha, pensando no que ia dizer à tia: “que ele estava gostando da prima, sim senhora. Por quê? Mas ela não é minha prima de sangue. Mesmo que fosse. Posso namorar ela, sim. O que é que tem? Ou será por causa de que ela é negra? Que é que tem isso, se gosto dela?
Ainda envolto nestes pensamentos confusos quando ele se deu conta que estava diante da tia, que mexia nas panelas borbulhantes em cima do fogão à lenha e nervoso antecipou-se:
– Quer falar comigo, tia? Olha, não tem nada disso...
– Nada disso o quê, Vicentino? – atalhou tia Hortência, ao tempo em que passava a tarefa de continuar mexendo a panela da polenta, para Selminha.
– Vem cá, oh. – e sentando-se, chamou o sobrinho para perto, pegou-lhe as mãos, sentindo que estavam trêmulas, perguntou com aquela voz pausada e doce, como era seu feitio:
– Estás nervoso meu filho?
– Não, Tia. Sou assim mesmo.
– Sabe. Eu estava pensando. Meses de dezembro e janeiro já se foram. E agora só tem o mês de fevereiro antes de começarem as aulas. Não estou querendo te mandar de volta para casa. Não. Nada disso – e quando ela fez uma pequena pausa para verificar se a menina estava cumprindo a tarefa a contento, ele pensou: “E agora vem a cobrança e a descompostura” Mas não. Ela continuou com a mesma calma de sempre tratando de um assunto que ele já entendera: mandá-lo de volta para casa. “Mas por que, se ainda falta um mês para o início das aulas?” – indagava-se.
– Sabe, filho. Tua mãe deve estar preocupada com teu enxoval já que vais para um internato. Ela tem que mandar fazer fardas e outras roupas. Não pode deixar tudo para os últimos dias. Isso pode causar transtornos para Zéza, a coitada, sempre tão atarefada com aquele mundão de crianças para cuidar. Não achas?
– Mas falta um mês ainda, tia.
– Tá bom, filho. Um mês passa ligeiro. Depois a gente resolve isso. Primeiro vamos esperar a volta dos homens. Com Luisito e Alberto juntos fica tudo mais fácil a gente resolver.
   Aquele final da frase: “Luisito e Alberto juntos... resolver”, bastou para ele entender que a coisa estava se complicando. Contudo apostava na amizade que tinha com primo Alberto, com quem ele teria mais franqueza de abrir-se e explicar tudo. Porém havia dois planos que ele não abria mão: continuar o namoro e permanecer até o fim do verão na granja. E ao se dirigir e à porta dos fundos e passar próximo ao fogão onde se encontrava a prima, ele parou um instante, trocaram olhares atravessados e cheios de indagações, para, só depois ele sair à procura de um local para espairecer. E mal pusera o pé no terreiro quando foi surpreendido com os festejos dos cachorros de Gasparino, pulando e latindo ao seu redor.
– Mulita! – exclamou, saudando com alegria a chegada da cadelinha paqueira e seus quatro companheiros. E virando-se para a cozinha onde se encontravam as mulheres, pondo as mãos em concha junto à boca, gritou: – Tia, os homens estão voltando.
Depois da chegada da carroça carregada de pessoas e ferramentas, estabeleceu-se mais uma lufa-lufa redor do galpão. Os de casa ansiosos por saber dos resultados e os recém chegados apressados em dividir suas alegrias pelo sucesso dos trabalhos.
     Vicentino, que estava ali assistindo os homens descarregarem as ferramentas, e mais uma ovelha que vinha maneada em cima da carroça, nunca vira tio Luisito tão contente. Ouviu-o dizer para a tia que lavoura estava a salvo. E eles teriam reserva de água suficiente até o arroz ficar maduro mesmo que as chuvas demorassem. Tudo graças ao açude de Dom Matoso, que, com algum esforço, eles conseguiram sangrar e com isso encher o açude da granja.
E antes de finalizar a narrativa sobre os bons resultados obtidos, Tio Luisito fez uma pausa, respirou fundo e dedo em riste, riscando o ar, falou para todo mundo ouvir:
– Olha! Daqui pra frente quem falar mal de Dom Matoso, terá que se haver comigo. Homem é bom está ali. Cedeu a água, cobrou só dez por cento do que vamos colher e ainda nos deu uma    ovelha pra gente fazer um churrasco.
    E a seguir, à medida que todos iam se afastando, os tios e mais Alberto para casa e a peonada recolocando as tralhas em ordem no galpão, só ficaram ali os dois, trocando olhares, frente a um silêncio quebrado apenas pelo zoada dos peões. Ele falou primeiro:
– Tu viu que a tia quer que eu vá embora?
– Ô... Vicentino. Quem sabe as coisas é ela.
– Tu falou alguma coisa pra ela?
– Alguma coisa o quê?
– Que a gente...nós... no caminho da cacimba?
– Tá maluco? Eu não falei nada. Vi, me olha aqui. Eu tenho cara de lambisgóia?
– Como é que ela quer me mandar embora. Ué?
– Ué... digo eu. Decerto ela em algum motivo. Se é que tem...
– E tu não vai ficar com saudade de mim?
Ela colocou as duas mãos pra trás, dedos trançados, balançou o corpo para um lado e para outro, e sem desviar o olhar, respondeu com evasivas.
– Saudade... saudade. Quem não sente? Mas este não é o último verão. Ou será que tu pensa que é?
    Porém neste momento, insofrido, ele adiantou-se, deu uma olhada no rumo da casa a ver se não estavam sendo observados, puxou-a para si para um beijo rápido e murmurar baixinho:
– Selminha, te quero bem. Pede para a tia me deixar ficar mais uns dias, para aproveitar o resto das férias. Por favor.
E sem dizer sim nem não, ela livrou-se daquele abraço rápido, deu um suspirou profundo, sorriu e pegou-o pela mão e disse:
– Tá bom Vi. Vamo ver no que dá. – e saíram de mãos dadas no rumo de casa.
   Naquele exato momento, em casa, numa espécie de mesa redonda, regida pela cuia de mate circulava de mão em mão, a família estava a deliberar. Depois de ouvir as ponderações de Hortência a respeito do que ela vinha observando nos meninos, seu Luisito Bernalli, foi o primeiro a falar:
– Tem razão, mulher. Antes que o mal cresça. Amanhã mesmo Alberto leva ele até o Pessegueiro. Depois de embarcado no trem, ele já é um guri grande. Sem problema chega a Iguaritama no mesmo dia.
    Dona Hortência, mais cuidadosa, sugeriu que talvez fosse bom Alberto acompanhá-lo na viagem toda, mesmo por que alguém deveria dar uma explicação a Zéza. Afinal...
– Ele, coitado, vai dizer o que pra mãe? – argumentava Hortência, quando os dois adolescentes, ainda de mãos dadas, entravam na sala.
O silêncio que se estabeleceu, perturbado apenas pelo leve ciciar do vento no zinco, só foi quebrado, alguns segundos depois, pela voz de Anselma ao anunciar com firmeza:
– Eu e Vi, a gente se queremos bem. Deixe ele ficar mais uns dias, madrinha..
– E eu também – reforçou o rapaz, demonstrando altivez na voz.
A partir daí, quem estivesse observando aquele grupo de cinco pessoas, diria que estavam ali cinco surdos-mudos a se olharem um para o outro. Tia Hortência juntara as mãos no colo e baixara a cabeça como a se concentrar para uma reza, Tio Luisito apoiara a cabeça na mão como se quisesse arrancar dali algum mau pensamento, ou uma solução, enquanto que Alberto, mais afoito e decidido, levantou-se, tomou a palavra e falou, pausado, porém sem medir as reações:
– Minha gente. Vocês dois não podem namorar. De jeito nenhum, por que...
– Por que o quê? – atalhou Vicentino tentando arrancar uma verdade estavam lhe escondendo – ela não é minha prima de sangue. Ou será por que ela é negra e eu sou branco?
Alberto fez uma pequena pausa, como para espairecer o nervosismo do ambiente, por fim com a voz um pouco trêmula e um tanto insegura, concluiu:
– Não é nada disso – nova pausa – É que tú, Vicentino meu primo e tu, Anselma minha irmã de criação, vocês são irmãos de sangue.



                                 Epílogo
   O que se seguiu foi uma soma de emoções fortes e desencontradas. Anselma, chorando, correu a se refugiar em seu quarto, no que foi acompanhada por dona Hortência. Alberto passou o braço pelo ombro do primo, acenado com a outra mão que eles deveriam sair, pois teriam muito que conversar. Só Luisito Bernalli permaneceu onde estava, com a cuia na mão, olhar cansado, vendo os dois se afastarem, pensando exatamente em seu falecido irmão Valeriano que, queiram ou não, foi onde tudo começou.
   Há mais ou menos 15 anos nascia, de uma empregada doméstica, negra, de nome Mariínha da Silva, criada da família Valeriano Bernalli, uma menina que recebera o nome de Anselma. Embora no princípio ele tenha negado qualquer envolvimento com a criada, as evidências eram tantas que para acomodar as coisas ele acabou assumindo, na palavra, a paternidade da menina, prometendo registrá-la como filha assim que pudesse. Entretanto chamou a si a incumbência de ajudar a criá-la. Deu uma casinha para a mãe morar, mantendo-a assistida e visitada. A própria esposa, Dona Zéza Bernalli sabia do relacionamento do marido com a ex-empregada, mas fazia vistas grossas. Mesmo por que ela sabia muito bem que rabicho amoroso de homem casado é mal que não tem cura. E havia algo mais importante com que ela se preocupar: os seis filhos menores para criar.
Após a morte de Valeriano, de forma trágica, numa briga em cancha de bochas na Vila Recreio, interior do município, começou o período de dificuldades para Mariínha e sua filha Anselma. Muitas vezes sem ter o que comer, Mariínha pensava até em se prostituir para dar de comer à filha. Quem a auxiliava, vez por outra, quando a fome apertava era dona Zéza. Porém os negócios nem sempre prosperavam como era esperado. E tudo se complicou quando Mariínha veio a falecer, vítima de uma epidemia de tifo, deixando a menina Anselma órfã com seis anos incompletos.
   Entretanto quem veio com a solução foi dona Hortência Bernalli, a cunhada, quando estivera a na cidade para assistir o enterro da sogra. Movida por um sentimento de caridade e amor ao próximo, ela adotou como filha, perante a justiça, de papel passado, a menina Anselma nascida de Mariínha da Silva e pai ignorado, e levou-a para terminar de criar e dar futuro.
   E hoje, tantos anos após, num amanhecer qualquer daquele verão, com o sol já vencendo a primeira braça, numa carroça de quatro rodas que seguia rumo à estação do Pessegueiro, iam dois corações pezarosos.
   De repente, não mais que de repente surge um grito lá longe, como um chamado. Prestaram atenção e enxergaram no topo da coxilha próxima alguém acenando a vara de tanger e gritando. Então eles puderam ouvir, trazida pela brisa suave que soprava, alguma coisa que eles entenderam como: “ Vicentiiiino... meu irmão... eu te quero bem.”
   Para Alberto só restou fustigar as mulas para fazê-las trotar. E a carroça, sacolejando, sumiu ao descambar da coxilha, deixando a poeira e aquele resto de verão para trás.




Vinícius Lena
Enviado por Vinícius Lena em 17/10/2007
Reeditado em 20/07/2009
Código do texto: T698733