Jogo de Azzahar
Já faz um ano desde que estive pessoalmente com a Sorte, a partir de então iniciei a procura por outro perigoso ser; mas contrariando minhas expectativas foi muito mais difícil do que sequer podia imaginar. Perdi o foco da busca a certa altura e não sabia ao certo a quem estava procurando, fui em busca de alguns com quem essas “pessoas” costumam falar mais constantemente, ou seja, indivíduos que pensam ter o controle sobre as quatro forças mais escravizadoras que conheço; vasculhei praticamente todo o estado do Rio em busca de alguma informação que me levasse a um segundo encontro, mas em vão.
Meu nome é Samuel Chagas e meu trabalho agora é simplesmente relatar as experiências que tive, no intuito de que outros possam se livrar das garras destes inimigos que nos rodeiam tão de perto diariamente.
Em todos os lugares por onde passei pude observar claramente a presença e as influências do que acostumei chamar de “círculo menor”; uma espécie de sociedade entre quatro potestades que comandam muitas e muitas vidas ao redor da terra; são irmãos e compartilham dos mesmos sentimentos a respeito da raça humana, seu único propósito e manter cativos corações e mentes para que possam realizar seus mais estranhos desígnios.
Foi bem mais fácil achar a Sorte, pois ela costuma se mostrar muito mais do que os outros, para que assim as pessoas almejem-na; seus irmãos, entretanto, não aparecem tão facilmente, muito embora caminhem mais no meio das pessoas.
Estava eu em busca do Azar, o irmão gêmeo da Sorte; aquele cuja ação deve sempre acontecer ao mesmo tempo que a de sua irmã; aquele que enquanto ela cativa com uma voz doce e sussurra belos sonhos descabidos que desviam a visão dos que a ouvem das coisas que realmente importam e enfeitiça com sua beleza, como uma sereia; ele por sua vez se utiliza da força para maltratar a todos que são arrebanhados por ela. E muito mais faz o Azar, como punir a todos que estão sob sua influência e que alimentem em seu coração alguma esperança; ele não suporta esperança, assim como o Acaso não suporta o amor e o Destino não suporta a fé.
Certo dia quando dei por mim estava sentado em um banco de praça, após caminhar quilômetros para falar com uma pessoa que não me recebeu, fiquei lá parado recuperando o fôlego para andar novamente um enorme pedaço até chegar ao local em que deixei meu carro. Eu estava observando duas crianças brincando com uma pequena bola da futebol, minha mente passava longe daquela cena porque havia me esquecido de como é fácil identificar quando eles estão agindo, simplesmente observando as crianças, pois é na infância que começam a construir suas muralhas mentais que vão aprisionar pelo resto de suas vidas.
Finalmente depois de algum tempo quando estava me preparando para voltar para casa quando ouvi uma das crianças vociferar:
“Mas que azar!”
Sua bola tinha se furado quando bateu contra algo pontiagudo no chão. Olhei imediatamente ao redor e não tive dúvidas ao ver aquela pessoa se aproximando, e ele não parecia muito amigável em seu semblante; trazia um livro numa das mãos e na outra; pasmem, trazia um chicote cuidadosamente enrolado.
Não o cumprimentei quando ele sentou; por outro lado ele também não o fez.
_ Soube que está me procurando._ disse.
Eu não sabia ao certo como me portar, mas sabia que ele seria diferente de sua irmã; a Sorte geralmente cativa e o Azar castiga.
_ Quem lhe disse?_ Perguntei.
Olhando fixamente nos meus olhos ele respondeu secamente e só então descobri seus verdadeiros nomes.
_ Fortuna, é claro.
Sim, estes eram os verdadeiros nomes deles; a Sorte chamava-se Fortuna e o Azar, Infortúnio. Realmente eram gêmeos.
_ Sei quem você é_ recomeçou ele_ Não me importo nem um pouco com o que você queira fazer da sua vida, pois é impossível ficar alheio ao jogo.
Eu não compreendi o que estava sendo dito, mas deixei que ele falasse. Ele continuou.
_ Não sou como Fortuna, e desde já quero dizer para que você tome cuidado com o que vai falar.
_ Quero que leve um recado ao Acaso e ao Destino._ disse sem me preocupar muito com a opinião dele.
O infortúnio pegou o livro que havia colocado no banco a seu lado e enquanto abria para ver algo, respondeu:
_Nenhum deles vai querer falar com você, o Acaso não fala com os homens, ele apenas age entre os homens; e o Destino não pode ser contemplado por ninguém, porque ninguém o entende. Ambos simplesmente acontecem.
Estava claro que o Azar não seria tão simples de ser dobrado quanto sua irmã; entretanto, agora eu não me permitiria voltar atrás. Lembrei-me de algumas palavras de encorajamento que li no Livro Sagrado dias antes do primeiro encontro com a Sorte; e então pude prosseguir.
_ Diga aos dois que agora sou livre, e o tempo que tiver de vida dedicarei a libertar outros das artimanhas forjadas por vocês.
Ele riu à vontade; depois tirou do bolso da calça um conjunto de pequenos dados de várias faces, cores e formatos.
_ Sabe o que mais gosto nas pessoas_ disse ele._ Quando você as domina, puni e escraviza por um período de tempo elas se acostumam, e depois começam a implorar para que isso seja feito constantemente. As próprias pessoas não sabem disso, mas em seus comportamentos elas anseiam cada dia de suas curtas vidas que nós, seres superiores tomemos o controle de cada passo que dão.
Ele sorriu mais uma vez antes de continuar.
_ Agem como se procurassem uma outra vida para preencher a que possuem, agem como seres incompletos que são e assim recorrem a objetos, circunstâncias e experiências na esperança desesperada de que algo que não compreendem possa se manifestar a elas e cuidadosamente decifrar seus enigmas, seus propósitos e objetivos; mostrando quem são, de onde vieram e para aonde irão.
Minhas mãos estavam suadas e eu precisava ter cuidado com as palavras do Azar, ou Azzahar como o chamam os árabes; eu precisava ouvir, mas não podia absorver nenhuma palavra do que ele falava ou ficaria contaminado e acabaria por perder a esperança que me motivara a ajudar outras tantas pessoas; tudo que aquela potestade falava ou fazia na verdade era um jogo, desde os primórdios da humanidade era assim o melhor jeito que ele encontrara para ludibriar os mortais e até mesmos outros como ele. Naquele exato momento ele já estava tentando me vencer com palavras e nós já estávamos nos digladiando em mais um dos seus jogos.
_ As pessoas agem desta forma porque falta conhecimento a elas das coisas espirituais, falta quem os mostre o Caminho, a Verdade e a Vida; elas não sabem que por seus atos mostram suas crenças em seres tão egocêntricos quanto você e seus irmãos; os homens anseiam por uma salvação que não conhecem, mas felizmente graças ao bom Deus por meio de seu Filho podem a qualquer momento recusar as suas trapaças e os encantos da Sorte ou a verossimilhança do Acaso e até mesmo as mentiras do Destino. Mas enquanto isso não ocorre, a única coisa que eles têm é a esperança.
Ele se sobressaltou segurando firmemente os dados em sua mão.
_ Eu abomino toda forma de esperança; fraqueza inerente da raça humana; os anjos não a têm.
Certamente ele falava com conhecimento de causa, por certo em épocas imemoriais ele mesmo tivesse feito parte das fileiras da Luz; antes de sua queda; tal como tantos outros. Anjos são mensageiros e formam os exércitos celestiais, não precisam de esperança, eles conhecem mais coisas do que os homens em todas as esferas. A Bíblia chega a falar que os anjos forma feitos um pouco maiores do que os homens, em conhecimento e poder, entretanto, diz também que os homens julgarão os anjos, pois o maior dos tesouros já visto nos céus, na terra ou debaixo da terra foi dado gratuitamente aos homens e a mais ninguém.
_ Olhe em volta Samuel, você acha mesmo que poderá fazer alguma diferença com essa sua tolice de desafiar aos deuses?
Eu me peguei realmente olhando ao meu redor e observando toda a movimentação daquela praça; muitas pessoas caminhando, alguns carros passando, a vida seguindo seu rumo sem que nada aparentemente estranho ou fora do comum estivesse ocorrendo, exeto o fato de que eu mesmo estava sentado bem no centro do lugar conversando com o azar. Nunca parei para pensar se outras pessoas podiam vê-lo ou se somente eu, mas não quis perguntar para não desvirtuar a conversa.
Respondi finalmente:
_ Não se trata de fazer ou deixar de fazer a diferença para muitos, mas se uma pessoa puder passar a tomar suas próprias decisões, sem se preocupar com seu número da sorte, ou o dia que deve ou não fazer ou deixar de fazer as coisas, ou se as circunstancias estão favoráveis e ela mesma ter a consciência de que é dona de sua própria vida; terei alcançado meu objetivo.
O Azar se levantou do banco e repousou novamente o livro junto ao chicote que estava ao meu lado. Em seguida abriu a mão e pude ver os dados que ele segurava, eram seis dados; de quatro faces, seis faces, oito, dez, doze e vinte faces; cada um com uma cor e tamanhos diferentes e todos filtravam a luz do sol. Certamente foram confeccionados com pedras preciosas.
_ Gosto destes instrumentos, são os que mais costumo usar; os primeiros eram feitos de ossos de animais, mas também foram usados marfim, metais, madeiras e pedras das mais variadas. “Jogar os dados”, gosto dessa expressão do Rigveda; assim diziam os indianos.
Eu me lembrava dessa expressão, o Rigveda é o primeiro dos quatro livros do hinduismo que contem cânticos para as “divindades”, neste momento percebi que livro era aquele que o Azar ou Infortúnio portava, ele queria passar uma mensagem não verbal para mim, queria mostrar o grau de alcance que sua influência possuía nas pessoas desde as épocas mais remotas, tendo em vista que a cultura indiana é sem duvida uma das mais antigas da terra; com certeza ele estava esperando que eu decifrasse sua pista para continuar a conversa.
_ Por que o Rigveda?_ Perguntei.
Incrivelmente algumas nuvens começaram a surgir no céu, passavam carregadas pelos altos ventos cobrindo o sol rapidamente, mas não era nada que fosse estranho.
_ Quero apenas que você saiba com quem está lidando; estes dados que tenho em minhas mãos_ recomeçou ele_ têm mais de dois mil anos, estavam sob areias egípcias encerados em tumbas. Sua mente pequena não suportaria sequer saber quem somos realmente; uso estas pequenas maravilhas que sopramos aos mortais a muitos milênios, antes dos Romanos, Gregos, Egípcios, Sumérios ou quem quer que tenham pisado sobre a face da terra.
Eu me torturava em pensamento lembrando de como posso ter vivido tanto tempo da vida sob o influxo destas criaturas, entregando todas as minhas decisões, sentimentos em suas mãos; como eu gostaria de ter conhecido a verdade antes, mas aquilo já não importava mais, seria o tudo ou nada e eu agora já sabia que por mais antigos que estas potestades fossem, eu ainda possuo alguém muito mais antigo do que todos eles; antigo e eterno.
_Compreendo o que você quer fazer_ repliquei._ quer se mostrar, comparando sua vida extensa com a minha vida mortal para se engrandecer, mas não vai funcionar porque por mais antigo que você seja juntamente com seus iguais, eu pertenço Aquele que é mais antigo que todos vocês; aquele que é, que era e que será para sempre.
Tive certeza de que me fiz entender, porém o Infortúnio com os seus olhos agora vitrificados insistiu em perguntar como se ele mesmo não soubesse, tentando confundir-me:
_Será que há alguém antes de nós? Quem é esta pessoa?
Prontamente respondi com ousadia:
_ Se eu disser o nome Dele você terá que se ajoelhar.
Outras nuvens surgiram e um vento mais forte soprou erguendo do chão uma nuvem de poeira que incomodada meus olhos, todavia ele permanecia parado me olhando com uma expressão furiosa no rosto e nem foi preciso disser coisa alguma, ele mesmo reconheceu.
_ Emanuel!
Eu teria sorrido se toda aquela poeira não estivesse me incomodando, mas a felicidade dentro de mim era o suficiente para me sentir vencedor em nossa batalha verbal.
_Vá e entregue o recado a seus irmãos_ eu disse.
Um toldo, ou foi uma tenda; não me recordo bem; saiu voando pela rua e no momento seguinte meus olhos foram açoitados por muita areia. Quando abri novamente os olhos lacrimejando por causa da irritação provocada; assim como sua irmã há um ano atrás, o Azar não estava mais lá, porém seus dados estavam colocados sobre o banco.