A PONTE

Comparando a vida e os dias tranquilos de hoje, até penso que foi tudo um sonho... A parede lateral da cozinha havia sido demolida para ceder espaço ao novo cômodo. Meu espaço privado. Pequeno, sei, mas só meu. Foi presente de minha querida tia Dulce. Tão logo tomou ciência do convite que recebi para participar do lançamento de uma coletânea de poesia, no sul, ficou emocionada, e providenciou as coisas por aqui... No fundo mesmo, minha felicidade era saber que a velha máquina de escrever deixaria enfim, de disputar espaço com o liquidificador à arca de jacarandá da copa. Resistimos quase vinte anos a estas precárias condições... Falei baixinho pra mim mesmo relembrando o tempo que por ali me inspirei...

O fato é que, desde então, comecei a divagar e vislumbrar suspirosa o prazer que estava tendo, pois o merecia! O entra e sai do pedreiro com carrinho abarrotado de entulho, transformava a rotina pacata de meus dias até então. Aliás, as mudanças foram muitas. Mérito do senhor Ataíde, o famoso: “língua nervosa”, que espalhou a notícia, e assim, findou meu anonimato literário.

As visitas foram muitas, desde do pai de santo, muito simpático se diga, que Gilda trouxe pra me benzer contra a famosa inveja que Gilda entende e acredita, até a unção especial que Padre Miguel Luiz, me dedicou na última missa... Sem falar nas recompensas vindouras. Pra começar, recebi uma cortesia do Coifair Samaris, que adorei, para viver o meu "dia de princesa." Imagina, um dia todo dedicado a mim, e com direito até, a tal depilação especial com cera importada, que Leila tanto comenta...Uma semana de jornais grátis, presente muito bem vindo do senhor Juvenal... E consta mencionar, que até, o atendimento no mercadinho da esquina sofreu mudanças. O dono fez questão de me atender pessoalmente. E era tanta gentileza que não cabia ao bairro... Até, ouvi contar, que Associação dos Moradores do Bairro, corria lista pelas ruas a fim de angariar fundos para a confecção de faixas coloridas, que ficariam espalhadas pelas esquinas, me congratulando o feito. Demais!!! A esta altura, estava me sentindo a própria Danielle Steel, autora de um best-seller que amei o prazer: Amor Sem Igual...

E, foi nessa virada da maré, que, como bem diz Lucrecia: quem não sabe remar naufraga, que tive a honra de conhecer o jovem Marcelino. Um competente pedreiro que indico de olhos vendados e empenho palavra se preciso for. Basta dizer, que logo de cara, nos tornamos bons amigos... Sampaio tem razão quando diz que sou muito conversadora, mas está na alma esse dom, e dom é coisa que não se pode evitar... Era recém chegado do nordeste, onde, deixou esposa e quatro meninos pequenos empenhorados com o senhorio da humilde casa alugada no interior do interior do interior... E sorria contando sua tragédia pessoal usando a mão como escudo a boca, a fim de esconder o vexame de não possuir a maioria dos dentes. Acostumei-me a vê-lo às manhãs, e sempre muito bem humorado... Enquanto erguia o espaço entre a cozinha e a área, doava idéias ótimas ao pequeno projeto, idéias que aproveitei a maioria.

A obra logo tomou rumo e sentido. A casa, por ser antiga, de vila, fazia com que uma nuvem de poeira espessa invadisse as frestas das janelas vizinhas causando vermelhidão nos olhos das crianças, irritação nos brônquios, coriza. A tarde começava a findar, mas o maldito barulho surdo e compassado da marreta as paredes firmes, insistia, e fazia tremer o meu mundo... Mas comparando o prazer que sentia, o mundo, literalmente falando, poderia vir abaixo que não me importaria. Marcelino não cedia trégua. Levava as horas cantando modinhas do sertão que me encantava os refrões. Devido à falta de estudos, fato muito comum em toda parte do país, cometia equívocos hilários, mas ninguém é perfeito de todo. Quem pensa que sabe tudo, ou sabe mais, comete maior equívoco! Aprendi que cada qual sabe dar conta de um particular da vida... Eu jamais ergueria uma parede tão perfeita. Certa vez, em prosa com Sampaio, após o café, o jovem desapercebido, confundiu concepção com Conceição. Sampaio estava de boa maré, e fingiu ignorar o fato. Até consentiu, que Marcelino, muito abatido se diga, narrasse a triste história da erisipela crônica nas pernas de sua tia, a Conceição.

Com João Pedro foi melhor ainda. Meu bancário talentoso, aconselhava-o a começar a pagar uma autonomia. Mal começou a falar, Marcelino interrompeu-o, com certa arrogancia estampada, agradeceu, mas dispensou o bom conselho contando que o que ganhava, mal dava pra comer. E no mais, falou. “Carteira de autonomista pra quê, se nem sei dirigir”. Meu João pasmou e antes que tentasse explicar, me adiantei lembrando-o da hora... Mas, foi o episódio da ponte que me fez gargalhar de chorar sem mágoa ou dor. Imagine que o simpático pedreiro, às vésperas de concluir a obra, me chamou pra um particular. Percebi-o muito tímido, receoso, mas o coitado só buscava saber se eu conhecia outro pedreiro pra indicá-lo como ajudante.

_Aceito qualquer coisa... O que não posso é, parar de trabalhar dona Rosinha. Caso contrário minhas crianças morrem de fome e ao relento. Mirando aquele par de olhos lacrimosos, tentando disfarçar o medo futuro, lamentei em segredo por toda miséria do mundo! Deus, somente Ele sabia como me senti naquele momento, mas infelizmente, como expliquei, o único pedreiro que conheci e que por anos me serviu, o senhor Otávio, já estava aposentado. "Aconteceu logo após, fazer as duas pontes de safena!" Falei abatida e suspirosa.

Mas, Marcelino de fato era muito mal entendido das coisas. Imagine, que encheu o peito de ar agindo, meio que despeitado, respondeu:

_ Não invejo não, mas se um dia, Deus me conceder a mesma sorte, com certeza também, me aposento. Imagine eu, pegando a empreitada de duas pontes em Safena... Com uma só, eu lavava a égua, aliás, eu lavava era o gado todo, dona Rosinha. – Concordei gargalhando e num forte abraço dispensei-o desejando toda sorte, que eu imaginava.

Hoje, meses depois do ocorrido, me sento aqui e contemplo vaidosa toda esta paz... Atravesso a ponte e perambulo pelo passado acalentada por um refrão que ficou guardado... Fecho os olhos...

_Obrigado Marcelino! falo baixinho torcendo por ele.

Confesso que sou apaixonada demais, por esse ser, raríssimo, que a gente só encontra por aqui, chamado: “gente brasileira”!

Marisa Rosa
Enviado por Marisa Rosa em 17/10/2007
Reeditado em 30/10/2007
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