O travesti barraqueiro
Os gritos se intensificavam de volume na medida em que aumentava o número de curiosos, querendo saber o porquê da discussão tão acalorada. O homem de estatura mediana, corpo franzino e olhar indeciso, se limita a uma ou outra observação, enquanto a mulher gesticula intensamente e fala muito rápido, despeja impropérios em cima de sua pobre vítima, que fariam corar até o príncipe dos demônios.
Ela avança furiosamente sobre ele, arranhando-o com as unhas enormes que possui; a multidão delira, pois está vendo um homem apanhar de uma mulher. Neste momento um carro de polícia pára no local; saltam da viatura dois policiais, que avançam rapidamente para a multidão, que se afasta, dando passagem para os representantes da lei e da ordem.
Tudo foi devidamente esclarecido. Carlos, que passava pelo local vindo do trabalho, lembrou-se da piada que o seu gerente contara, no exato momento em que Maria Helena se estatelara no chão. Vendo Carlos sorrindo, não teve dúvidas, levantou-se e foi tirar satisfação com um moço que sequer conhecia, mas que tivera a desfaçatez de gargalhar com a sua queda. Assim pensava. O resultado todos nós sabemos.
Um dos policiais sugere a Carlos seguir até o Distrito Policial, para registrar um boletim de ocorrências contra Maria Helena, por agressão física. Ele reluta; afinal, quer esquecer o lamentável incidente. Diante da firme resolução de Carlos, os agentes da lei sugerem a Maria Helena ao menos dirigir um pedido de desculpas ao ferido. Tem como resposta uma sonora gargalhada e uma seqüência interminável de palavrões que os leva a concluir que a mulher é louca ou barraqueira.
Este é um dos muitos episódios envolvendo Maria Helena. Desde criança sempre tivera um temperamento explosivo; com o passar dos anos, tornou-se uma mulher amarga e ressentida contra a sociedade.
Até que ela era bonita, loira de cabelos semi-longos, rosto arredondado e um sorriso que cativava. Os que a conheciam, evitavam-na, os demais se aproximavam sem suspeitar que, naquele rosto de anjo, morava um demônio.
Um colega de trabalho que mantinha uma distância prudente dela, pensava, ao vê-la atendendo ao publico tão solicitamente na repartição: “Quem não te conhece, que te compre”.
À noite a solidão é uma fiel companheira de Maria Helena; no silêncio da madrugada, ela pensa em como manter suas poucas amizades e arrumar um companheiro, pois não gosta de ser chamada de “Titia”.
Os colegas de trabalho, sabendo das suas investidas em cima dos homens da repartição, comentam maliciosamente que quem a tiver como mulher, estará morando com o capeta. Evidentemente, ela desconhece estas maldades e lança o seu charme, em doces palavras de amor.
Em uma das noites solitárias, ela pensava em como o vizinho da casa ao lado era bonito e de como a paquerara, nas poucas vezes em que casualmente se encontraram. Ela pensa num plano ousado; assim que sair do banho, vai despreocupadamente estender a toalha no varal, vestida apenas de calcinha e sutiã. Desta vez o vizinho gostosão vai ter que tomar uma iniciativa e convidá-la a irem num motel.
Tudo devidamente esquematizado, ela sai assim que vê a porta do vizinho se abrir, no íntimo ela pensa: “Hoje ele não me escapa”. Mas, por ironia do destino, quem havia saído fora dona Josélia para pôr o lixo na rua. Sabendo do interesse de Maria Helena por seu marido e a vendo naqueles trajes minúsculos, olhou atentamente as partes íntimas de sua rival, percebeu que havia algo de anormal, pois que o pacote era exageradamente grande, o que levou dona Josélia a exclamar: “Mas o que é isto, amiga? Parece que estou vendo um saco no meio das suas pernas”.
Como as duas eram escandalosas, foi o suficiente para que toda a vizinhança fosse despertada e viesse ver o que estava acontecendo. A vergonha de Maria Helena, que na verdade nascera Mário, não teve tamanho, pois que sempre fora visto como uma femme fatale, mas não passava de um travesti, que fizera uma operação para que fosse mulher.
Com este lamentável incidente, Maria Helena teve que se mudar do bairro. Alguns dos vizinhos que ignoravam o fato enviavam-lhe bilhetes e e-mails pedindo que ela voltasse. Sua resposta é que sendo dona Josélia antiga moradora do bairro, orquestrava junto com os vizinhos para que não retornasse.
No novo bairro onde mora, Maria Helena conheceu seu Pedro, um senhor sexagenário de fala suave e sábios conselhos, que sendo seu confidente, a exorta: “Menino, cria juízo, a vingança nunca é plena, mata a alma e envenena”.
Passados muitos anos, não se sabe se foi à chegada da velhice que amainou a fúria de Maria Helena, ou se foram os conselhos do já octogenário Pedro que aplacaram o espírito belicoso dela, certo é que, ela está mais maleável no trato.