A PEDAGOGIA DO CHINELO
* Por Herick Limoni
Como sempre, ele estava atrasado com as lições repassadas pela professora. Sua mãe, já sem paciência, insistia para que terminasse ainda naquela tarde, caso contrário teria de continuá-las ao anoitecer, sem descanso. Aos 10 anos de idade tinha outras preocupações que o impedia de se concentrar naquilo que tinha de fazer. Da sala onde estava era audível o som das mensagens chegando em seu celular, que se encontrava no quarto ao lado. O ponteiro do relógio se aproximava das 16 horas, um pouco mais de uma hora antes do horário que havia combinado um jogo virtual com os amigos.
A falta de paciência da mãe tinha explicação. Era o décimo quinto dia sem aulas, por causa da pandemia, nos quais ela, agora, também tinha de assumir o papel de professora, em que não bastava mais somente passar o olho rapidamente pelos livros e cadernos do filho. Tinha de corrigi-lo e ensiná-lo, e isso era tarefa árdua para alguém que há muito havia abandonado os bancos da escola, com a felicidade de um soldado que, após longos quilômetros de marcha, abandona a pesada mochila para alguns minutos de descanso. E nesses dias, a mochila pesava novamente.
Esperto que era já pensava em uma maneira de interromper aquela penosa atividade, para, enfim, deliciar-se nas aventuras dos jogos virtuais com os amigos. Seu tormento havia começado logo após o almoço e já durava quase quatro horas. Ele não se atrevia a reclamar, apesar de já cansado, pois sua mãe, naquela tarde, também já cansada de lhe chamar para iniciar as atividades, teve de recorrer mais uma vez, como sempre fazia nessas ocasiões, a um poderoso pé de chinelo, tamanho 36, com o qual se encontrava calçada. A pedagogia do chinelo nunca falhava.
O receio de sofrer outra sequência de chineladas o impedia de pedir clemência. Naquela tarde – deduziu pela quantidade maior de chineladas que levou – sua mãe estava especialmente estressada. Havia três dias que assistia a uma série na Netflix, e havia deixado justamente para aquela tarde de sexta-feira os dois capítulos finais. Tal qual o noivo à espera da amada no altar, demonstrava-se ansiosa, e o desleixo patente do filho refletia-se na falta de paciência dela, deixando-a ainda mais irritada, pois essa postura contribuía para prolongar as horas e afastá-la impacientemente do gran finale. E nesse embate entre mãe e filho, professora e aluno, havia uma convergência: ambos queriam que aquilo acabasse.
Uma das atividades que ele deveria realizar consistia em escrever um texto dissertativo, em no máximo 20 linhas, a respeito de algum fato engraçado de que se recordasse. Lembrou-se, imediatamente, de um acontecimento que um colega de escola havia lhe contado dias atrás durante o recreio. O amigo lhe relatara que a mãe, supersticiosa que só ela, não permitia, de maneira alguma, que os chinelos da casa ficassem de cabeça para baixo, situação que, segundo ela, abreviaria seu tempo de vida na terra. E não havia nada e nem ninguém que conseguisse demover dela essa “crença insofismável”.
Para ratificar seu receio natural, relatou ao filho que sua mãe, a avó dele, havia lhe contado diversas histórias de mães que faleceram em razão da fatídica posição em que o chinelo tinha sido deixado. E que ela mesma sabia de pelo menos dois casos em que o maldito objeto teria sido responsável pela morte repentina das mães de duas de suas amigas – não mencionou, porém, que ambas se encontravam enfermas e com idade avançada.
Antes de começar a rabiscar o papel, recordou-se, rindo maliciosamente, que, na ocasião em que contara a lenda do chinelo virado para a sua mãe, ela, que nunca fora afeita a superstições, teria ficado impressionada, advertindo-o: POR VIA DAS DÚVIDAS, A PARTIR DE HOJE ESTÁ PROIBIDO DEIXAR CHINELO VIRADO NESSA CASA. Até aquele dia, essa ordem havia sido respeitada. Não encontrando outra solução para o imbróglio em que estava, vislumbrou, no referido causo, uma oportunidade para se livrar daquela atividade para poder, enfim, disputar a tão desejada partida. Certamente sua mãe ficaria tão assustada a ponto de interromper a atividade. Mas tinha de esperar o momento certo para agir. E ele não demorou.
Aproveitando-se do instante em que sua mãe foi ao banheiro, correu apressadamente ao quarto dela, pegou o primeiro par de chinelos que viu e retornou, posicionando-os cuidadosamente de cabeça para baixo, em local estratégico, de modo que não passassem despercebidos quando ela retornasse. Segundos depois, escutou o barulho da descarga. A apreensão invadiu seu corpo. Em seguida, o som de passos. Ficou resfolegante, pálido, com a boca seca. Apesar de a casa ser pequena, foram longos segundos à espera da reação dela, que certamente iria garantir-lhe a tão almejada liberdade momentânea. Estava a dois passos do paraíso.
Tão logo se deparou com aquela cena, sua voz ecoou pelos quatro cantos da casa e para além dela: QUE PORRA É ESSA? EU NÃO PROIBI DE DEIXAR CHINELO VIRADO NESSA CASA? QUER QUE EU MORRA? Não houve tempo para as respostas. Como um falcão que mergulha do céu para atacar sua presa, mergulhou em direção ao par de chinelos e, tendo-os já nas mãos, passou a desferir chineladas duplas no seu algoz, aquele menino sem coração, cujo desejo por um jogo virtual colocava a vida de sua genitora em risco. Foram tantas, e com tanta força e raiva, que o menino começou a chorar copiosamente.
Até aquele dia nunca havia se arrependido das chineladas que, ocasionalmente, era obrigada a desferir no filho. Mas seu choro lamurioso a atingiu em cheio, amargurando seu coração. Não tardou a se arrepender. Mas logo se recordou que aqueles chinelos virados refletiam o desejo dele por sua morte, e isso era inaceitável. Apesar disso, não lhe bateu mais, naquele dia. Tampouco o liberou. Como castigo suplementar, cumpriu a promessa de deixá-lo até a noite estudando. Ele perdeu o jogo, ela, os capítulos finais da série. Mas, na manhã do dia seguinte, um sábado, tudo voltou ao normal. Ele não teria lições para fazer, e ela, livre dessa obrigação, teria tempo de sobra para assistir suas séries. E como num passe de mágica, ela voltou a ser a amorosa mãe, e ele o amoroso filho, que nunca mais se esqueceria da função pedagógica de um chinelo.
*Bacharel e Mestre em Administração de Empresas
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