O VELHO QUE CONTAVA HISTÓRIAS
Igual seu Venâncio, não havia. Seus setenta anos lhe trouxeram imaginação de sobra, além de farta experiência. Era criança num corpo de idoso, mas seu brinquedo era um estojo cheio de lápis, uma borracha e um caderno velho como ele. Sentado na mesa de madeira que ficava no canto da sala, começava a escrever. Mas não era qualquer rabisco, não. O matuto gostava era de inventar histórias.
Ninguém lia, quase, mas não arredava o pé da mesinha que servia de escrivaninha. Desde que aprendera a escrever o nome através da única professora da região, viciou na arte de rabiscar letras à torto e a direito. Os parentes relevavam o hábito do aposentado. "Quem sabe vai dar futuro nisso". Embora, diziam as más línguas, que aquele chão de mato onde moravam fizesse palco só para trabalhar na roça e levar vida de burro de carga do que de escritor.
Além do mais, o velho era de raciocínio alto. Águia-humana. Escrevia coisas que quase ninguém entendia.
- Mas ora, pois. - falava o matuto - Se o homem nasce e pensa, logo pensa e faz nascer outras coisas. E se nasce, existe do jeitinho que pensou. É bíblico. Assim como imaginar, assim o é. Está lá em Provérbios 27. Pode ler.
A família sorria, desatinada, mas sempre comedida, sentindo que os rabiscos serviam de recreio para o septuagenário. Já ele, tudo virava causo de escrivinhar. "Tudo é novo pra uma história nova", dizia sentado na mesa que já virara seu trono. De camisa branca aberta, cabelos brancos, rosto enrugado e murcho e mãos de palma dura feito desempenadeira de pedreiro, que tremiam numa xícara de café, mas eram firmes na ponta de um lápis; de uma firmeza pesada que ou quebrava a ponta ou furava a folha.
As crianças que mangavam.
- Vô Venâncio é quase igual Deus. Só que escreve torto em linhas retas.
O matuto nem ligava.
Após a perda da esposa ficou só. Então a filha mais nova com o esposo o levaram para morar com eles. Vendo os netos crescerem, a imaginação de Venâncio pipocava e passava horas rabiscando contos. Um mais avoado que o outro.
Suas histórias eram de uma natureza peculiar. Quem lia ficava sempre com uma interrogação mordendo o pé da orelha:
- Meu pai - dizia a filha depois de ler, com toda a paciência do mundo - e quem disse que peixe voa, pai? E que diabo é esse de transformar a serpente do Éden num Urubu?
O velho, ressabiado, colocava o lápis atrás da orelha e dizia com ar de catedrático:
- E não é, filha? Ouça só: A serpente no Éden bem podia ser um Urubu, pois é isso que o satanás faz. Procura nossa carniça e engorda às custas dela. Quem é de Deus não fede a carniça do pecado, não. E o Tinhoso nem se aprochega. Então ele fica avoando nas cabeças da vila, procurando um ninho podre pra pousar e comer o que resta de juízo. Quanto aos peixes que voam, olha pro céu, minha filha. Tem mar maior que esse céuzão de meu Deus? Tem não. Nuvem é espuma. Pra mim tudo é mar. E o céu é mar também e eu provo: a chuva é o mar do céu se desfazendo e voltando pra terra. O vapor é o mar devolvendo o céu. E assim sucede com tudo. Nosso corpo que vira pó e o pó que vira nosso corpo.
A filha ficava quieta, sorria manso e ia fazer o café da tarde:
- Imagina se uma história dessas fosse real.
Quem gostava era Joãozinho, neto mais novo de seu Venâncio. Sentava perto do avô e lia as histórias para ele.
- Vô, escreve mais uma - soltava o neto deixando a mochila num prego da parede e se aproximando da mesa arrastando a cadeira.
- Pois venha, Joãozinho. Senta aqui. Tu quer ler a última que o vô escreveu antes? Tô quase acabando.
- Quero, vô! Deixa eu ver. Deixa eu ver.
Era o útil se unindo ao agradável. O menino que aprendia a ler e o avô que gostava de escrever. Vento e semente unidos num só cômodo. De monta o menino virava revisor do idoso quando escrevia uma palavra errada, todavia, o costume do prazer da leitura era mais forte que a pontualidade da correção.
O idoso mostrava o caderno da prefeitura de folhas amareladas e preenchidas para o menino:
- Leia, Joãozinho, que essa é das boas.
O neto botou a ler o que o avô produziu. A história era sobre um casal que teve um filho com uma doença esquisita. A criança nasceu sem voz humana, mas cada vez que falava, saía um acorde de sanfona. Mamãe e papai esbugalharam. Os médicos não sabiam o que fazer. Depois tiveram uma menina que até falava, mas seu coração batia tão forte e descompassado que parecia uma zabumba. "Tum tum, tum tum".
Tiveram mais um menino. Magro, só que pesado. Após examina-lo, o médico descobriu o motivo do peso de criança tão fina de corpo: ossos de metal. Quando o menino se mexia, tilintava feito triângulo...
Porém o conto estava incompleto. O avô não conseguira concluir devido uma crise de tosse que teve na hora.
- Tá faltando vô. E agora? O que acontece depois?
- Pois é agora que a gente descobre junto, meu piolho. Você quer dar um nome pros menino?
Os nomes que o neto deu eram do agrado de Venâncio. Sendo o mais velho Sanfrônio, a mocinha do meio Zabruna e o caçula Triangulino. Os olhos do menino cintilavam qual estrela em seu repouso. Já os do avô, se fechavam com as pálpebras enrugadas, rasgando um sorriso; mirando na folha cuidadosamente pôs-se a escrever mais letras. Os pais de João chegaram na sala e viram a cena:
- É agora que os dois não saem mais dali.
O avô, depois de uns minutos, chamou o neto e mostrou o resto da história.
Ficou acertado, no conto de seu Venâncio, que o pai das crianças, sabendo que a doença estranha dos filhos não tinha cura, sem saber o que fazer e recheado de desgosto, quis desistir da vida num ato desesperado. Até que a mãe quis ter mais um filho. Tiveram. Nasceu uma menina chorosa demais. Nada fazia parar de chorar. O hospital ensurdecia com o berreiro. O laudo médico atestava o que a menina tinha:
"Doença do coração triste"
A criança chorava tanto que se ouvia de outras bandas. Foi então que os pais colocaram os irmãos perto da recém-nascida. Quando a bebê escutou os sons produzidos pelo trio de crianças musicais, riu a risada mais gostosa que já se ouviu.
Descoberta foi a cura. O som musical dos irmãos alegrava a pequena. Sendo assim, o pai ensinou os filhos, Sanfrônio, Zabruna e Triangulino a tocarem no compasso, afinando a voz com o tempo, acalmando o coração e fortalecendo os ossos. A menina recém-nascida, até então sem nome, passou a se chamar Pardal. E que voz linda tinha a criança.
Depois que um mês deu lugar a outro, a família virou uma banda de forró e todo mundo queria ouvir o quarteto de crianças musicais. De pobre, ficaram ricos. Porém, maior que a riqueza acumulada, foi o orgulho dos pais por descobrirem que o problema das crianças, depois de vencido, trouxe alegria a muita gente.
- Puxa, avô. Que história legal.
- Shhhh... silêncio que eu só completei essa. Agora vou fazer a outra. É sobre um cavaleiro em busca de um jardim sagrado, a terra das flores de sete cores.
- Tipo um arco-íris, vô?
- É. Tipo esse negócio aí. Então um terrível dragão arrancou todas as flores desse jardim, deixando apenas uma única semente colorida que o valente guerreiro teria que plantar no jardim sagrado. Pra isso ele teria que enfrentar muitos perigos, matar o dragão e plantar a semente para as flores coloridas nascerem outra vez e o jardim das sete cores ressurgir novamente.
- Eita vô. E quais são as cores? Eu sei que tem azul, laranja, vermelha, amarelo e roxo.
- Uai! Roxo, João?
- Não sei se é roxo ou se é aquele negócio que a mãe passa em mim quando eu ralo o joelho jogando bola.
- Violeta?
- Isso. Tem aquela outra cor que serve pra lavar roupa, né?
- Anil?
- Ai vô, eu não me alembro! Quem ensinou isso foi a professora.
- Pois vá ver seu livros aí e me traga já. Preciso completar essa história logo! Ande! Rapido que hoje o velho tá fervendo os miolos.
O menino foi até sua mochila, jogou os materiais no chão e trouxe correndo um livro grosso de geografia.
- Aqui, vô. São sete cores: vermelho, laranja, amarelo, verde, azul, anil e violeta.
O avô começou a escrever... e pôs-se a tossir. Tossiu. Tossiu forte. Cuspiu sangue. Desmaiou. Ali mesmo na sala.
A filha e o genro o levaram correndo pro hospital. Chegou morto o seu Venâncio.
Fizeram o velório. No dia choveu tanto que o enterro precisou ser feito as pressas, pois a cova começou a encher de lama e estava ficando ruim de cavar.
A filha, entristecida, tratou de guardar o caderno velho de histórias do pai e o estojinho de lápis e borracha numa gaveta do seu quarto, para nunca mais esquecer. A pequena mesinha de madeira, agora vazia, causava um aperto no coração da filha e do genro. Na ausência que preenchia a família, instaurada estava a lacuna.
No dia depois do enterro, Joãozinho estava com seus amiguinhos sentados ao pé de uma árvore. A chuva já havia passado e o sol voltava a reluzir.
As demais crianças, tristes, consolavam o amigo:
- Oh João, que pena que seu avô faleceu.
- É, João. Fico triste também.
- Minha mãe dizia que quando alguém perde alguém, a gente tem que dizer "meus sentimentos". Então, meus sentimentos, João.
Joãozinho, porém, quando viu se formar um enorme arco-íris no céu, apontou o dedinho para cima e gritou sorrindo para os amigos:
- PESSOAL, VENHAM VER! MEU VÔ CONSEGUIU CONCLUIR A HISTÓRIA!
Homenagem ao meu avô Sebastião, falecido dia 11 de maio de 2020.