CONTOS PÁTRIOS (Da obra de Coelho Neto e Olavo Bilac)
21. Uma Vida... Lendo o livro esse é o conto 21
No alto do morro, que demorava a cavaleiro da fazenda, ficava a casinha do velho preto, do velho e meigo pai João, tão velho que já não podia andar, e que já todos os seus dentes tinham caído.
A casa era como uma toca, entre árvores velhas como ele, no meio da verdura das folhagens abrigavam carinhosamente aquele centenário, a quem a morte parecia haver esquecido no lindo recanto da terra brasileira. Pai João, como o chamavam todos, envelhecera no trabalho. Por muitos e muitos anos a fio, os seus braços empunhavam a enxada, beneficiando a terra. Tinha visto, pouco a pouco, transformarem-se os lugares de incultos em produtivos, e conhecera toda a gente que por ali passara: já era homem feito quando os velhos de agora ainda eram meninos, correndo às soltas pelos campos; vira nascer e morrer muita gente, e vira a fazenda passar de senhores a senhores... Agora, havia muito tempo que não trabalhava: mas a gratidão dos donos da terra lhe havia reservado aquele calmo retiro, último abrigo de toda uma vida de labor e dedicação.
Logo ao clarear da madrugada, pai João saía, arrastando-se, da sua cabana, e vinha sentar-se à porta, no rústico banco de pau. Já o encontrava ali os primeiros raios de sol, que lhe vinham beijar a cabeça emaranhada em duros cabelos carapinhados, alvos como a neve. Em torno, a paisagem esplendia. A encosta da colina, atapetada de uma relva macia, descia docemente para o vale, onde assentavam as casas da fazenda. Lá estavam, longe, as casas dos colonos, os paióis, as grandes casas das máquinas, a capela pequenina e branca, e, cercando tudo, de um lado as plantações ricas, e do outro o campo vasto, em que o galo pastava, numeroso e nédio. O velho preto, magro e trêmulo, sentava-se, cruzava no colo as mãos descarnadas, e começava a acompanhar com amor a agitação de todo aquele trabalho, que já não era para o seu corpo sem forças. Dali, via ele a partida matinal para o campo, — o bando alegre dos lavradores fortes, enchendo com a vozeria das suas cantigas a amplidão do céu. Dali, ouvia ele os toques da sineta, transmitindo ordens, marcando as horas das refeições e do descanso.
Eram as crianças da fazenda que lhe traziam comida: e pai João, comendo, ia com a voz fraca dizendo histórias ingênuas, que os pequenos escutavam com delícia. Depois, dormia, à sombra, enquanto a viração embalava docemente as árvores e as borboletas revoavam sobre as flores silvestres. Parecia o gênio tutelar da fazenda, aquele bom velho, que a vira nascer, crescer e prosperar...
Ao anoitecer, recolhia-se. Mas, não raro, por noites claras, quando a lua brilhava no céu, vinha a gente de baixo conversar com ele, e dos seus lábios ouvir a história viva daqueles sítios; e muitos colonos brancos, vindos de longes países, gostavam de receber lições e os conselhos do antigo escravo.
Foi numa noite dessas que eu conversei com ele, no alto do morro, ouvindo lá embaixo, nas casas dos colonos, a música das sanfonas e das violas.
—Você, em toda essa vida tão comprida, deve ter sofrido muito, hein, pai João? — perguntei com interesse.
Ele levantou para mim os olhos quase apagados, e teve um sorriso. Depois, começou a falar, como um pobre preto ignorante que era, na sua linguagem rude; não guardei memória de suas palavras, mas guardei o sentido do que elas queriam dizer:
—Toda a gente sofre neste mundo, moço! Mas eu não tenho muita razão de queixa... é verdade que, nos primeiros tempos, tive de chorar bastante, com a saudade da minha terra; e depois, o cativeiro (no tempo em que havia cativos!) era uma grande maldade!... Mas, se houve senhores maus, que castigavam barbaramente os escravos, também houve senhores bons, que não gostavam de ver o sofrimento deles. Eu fui um dos primeiros homens que trabalharam aqui.
Quando vim, tudo isso era mato. Aqui gastei toda minha mocidade. Logo depois, porém, fiquei livre, e fui um amigo daquele de quem havia sido um escravo. Era eu o seu homem de confiança. Só no meu trabalho é que o senhor tinha fé. Tive filhos: quando houve guerra do Paraguai, dois de meus filhos, já livres, foram brigar com a gente do Lopes; um ficou por lá, varado de balas; mas o outro voltou e veio morrer muito depois, nos meus braços, deixando-me cheio de netos... Esses netos andam por aí ganhando a sua vida, como os brancos, sustentando as suas famílias, trabalhando para si e para os seus. E eu hoje só conheço esta terra, onde me fiz homem, esta terra que eu lavrei enquanto tive forças, e que ainda hoje, para me pagar o bem que eu lhe fiz, me dá a sombra das suas árvores, e a comida que me sustenta. Toda a gente sofre nesta vida, moço: mas outros sofreram mais do que eu... É por isso que eu não me queixo! Deus nosso senhor não quis que eu acabasse os meus dias na miséria, sozinho, sem ter quem me desse um pedaço de pão, e quem me fechasse os olhos na hora da morte. Que é que eu posso querer mais? Toda a gente aqui é minha amiga; toda gente sabe que o coitado do pai João nunca fez mal a ninguém. Também, todo o povo vem sempre saber como vai o velho... Ah! Eu só tenho medo da morte, porque ela me há de tirar deste cantinho que amo tanto! Não sofri muito, não, moço, porque sempre fui trabalhador, e o trabalho sempre faz a gente feliz!...
Assim falava pai João... eu, ouvindo-o, pensava em todo o seu passado. Ali estava um homem que dera tudo à terra querida: dera-lhe o suor de seu rosto, o melhor da sua vida, toda a força do seu corpo e todo amor da sua alma, — e ainda o sangue de seus filhos... e, agora, já quase morto, ainda amava como nos primeiros dias; e a sua mão, cansada e trêmula, estendida sobre os campos, parecia abençoar, num gesto derradeiro de proteção e carinho.