O AMOR É FOGO QUE ARDE

*Por Herick Limoni

Era início de junho de 1918, e as notícias no rádio prenunciavam o fim da Primeira Guerra Mundial. Amâncio, um jovem de 24 anos, encontrava-se radiante, pois acabara de ser promovido à gerente da Fazenda Itanhandu. Essa fazenda, que se situava em um vale aos pés da Serra da Mantiqueira, era a mais antiga da região, e sua fundação remontava ao início do século XVII. Amâncio fazia parte da quarta geração dos Silva Fortes, família que sempre labutou naquelas terras, e que, por essa relação longeva, gozava de grande respeito dos Inocêncio de Oliveira, família que fundou e ainda era proprietária da centenária fazenda.

Naquelas terras Amâncio morava com seus pais e mais seis irmãos (quatro moças e dois rapazes). Era o sexto deles, sendo mais nova que ele somente a irmã Manoela, a caçula. Apesar da pouca idade, desde pequeno demonstrou gosto e aptidão para a lida na roça, fato que foi levado em consideração ao ser alçado ao cargo gerencial, em substituição ao seu velho pai, Antenor, que em razão da idade avançada não reunia mais condições de tocar a fazenda.

A Itanhandu foi construída em estilo colonial. A fachada principal tinha cerca de oitenta metros, com doze grandes janelas estrategicamente voltadas para o norte, onde o sol nascia, de maneira que, ao cair da tarde, podia-se contemplar a linda paisagem da serra sem se ter os olhos ofuscados pelos raios solares. Em seu interior havia uma ampla sala, que desembocava em um corredor horizontal que dava acesso aos grandes quartos (num total de sete) e aos banheiros. Na sala, além das poltronas e cadeiras, havia uma grande e pesada mesa de mogno, com suas vinte cadeiras, conjunto que era utilizado, principalmente, nos generosos jantares que eram oferecidos com razoável frequência.

Seguindo-se em frente, na direção da porta de entrada da sala, estava a ampla cozinha, com seu opulento fogão à lenha adornado por cerâmicas portuguesas, símbolo de sofisticação à época. O telhado era amplo, sustentado por grossas toras de madeira, as quais, apesar do tempo, pareciam recém-extraídas do chão, de tão conservadas. Aquela propriedade, célula-mater da família, era o orgulho dos Inocêncio de Oliveira, que, apesar de terem se mudado para a capital, deixando-a aos cuidados dos Silva Fortes, tinham-na como o símbolo maior daquela família de agricultores que sempre viveu da terra, e dela tirou todo o seu sustento, à custa de muito suor e trabalho.

A empatia entre as famílias surgiu de forma gradativa e natural. Os longos anos sedimentaram uma amizade genuína, verdadeira, de grande confiança de parte a parte. Seu Antenor, o timoneiro daquela geração, sempre incutiu nos filhos a importância da lealdade e cuidado com as coisas dos patrões, o que garantiu à família anos e anos de moradia, comida e outras comodidades. Amâncio, que sempre se dedicou ativamente aos labores da fazenda, nunca havia se permitido aproximar-se de alguém, mesmo nas famosas festas anuais de São João, que sempre atraíam toda a gente das redondezas. Era obcecado pelo trabalho, e fazia-o com extremo gosto. Mas algo nele estava diferente. De pouco tempo para cá, sorria bem mais, e às vezes era surpreendido assoviando alguma canção indecifrável, fatos que aqueles que lhe eram próximos os sabiam raros. E assim, como quem tem um sonho bom noite após noite, Amâncio seguia sua rotina, intrigando a todos com a recente mudança de comportamento.

Não sabiam eles que, desde o último mês de dezembro, ele encontrava-se enamorado por Beatriz, neta mais nova do senhor Manoel Abranches Inocêncio de Oliveira, atual dono da fazenda Itanhandu. Era um simpático senhor, que aos 83 anos de idade faria inveja em muitos jovens de hoje, pois apesar de não precisar trabalhar – a fazenda tinha empregados – quando lá estava, pulava da cama todo santo dia, às cinco horas da manhã, extraía o leite in natura, tomava-o misturado com o café já coado por Dona Eufrásia - mãe de Amâncio e responsável pela cozinha -, montava seu cavalo preferido e saía para sua excursão pelas terras da fazenda. Aquela atividade, dizia, era para ele um fôlego de vida.

No final do ano, Beatriz veio, com os pais, passar alguns dias de férias na fazenda. Durante esses dias ela e Amâncio ficaram muito próximos, em razão das várias cavalgadas que fizeram juntos. Mesmo sendo criada na cidade, Beatriz não nutria simpatia pelos rapazes de lá, a quem achava bobos e tolos, por se preocuparem demais com as aparências. Achava-os vazios, sem graça e sem conteúdo. Não enxergava neles autenticidade, qualidade que via de sobra em Amâncio. Apesar de não serem estranhos um ao outro, pois já tinham se encontrado em outras oportunidades, Beatriz, nessa ocasião, também estava diferente e dispensava a Amâncio especial atenção, fato que foi por ele percebido logo de início.

No penúltimo dia de estadia de Beatriz na fazenda, saíram ambos para a última cavalgada daquelas férias. O sentimento de tristeza em razão da premente separação era patente. Aqueles dias de passeios sob o sol quente do verão estavam no fim. Foram momentos maravilhosos e, para afixá-los ainda mais à memória, como só os momentos tristes e felizes são capazes, sob a sombra de uma frondosa e carregada mangueira, beijaram-se apaixonadamente. Era este o motivo da mudança de comportamento de Amâncio. O cupido lhes havia atingido em cheio, mas os pombinhos só voltariam a se encontrar na festa de São João. Seriam longos seis meses de espera.

Enfim, chegou o mês tão aguardado. Amâncio estava radiante. Seria a primeira vez que iria organizar a famosa Festa de São João na fazenda, e queria impressionar, porque pretendia, tão logo terminassem as festividades, pedir Beatriz em casamento. A seu favor tinha a simpatia dos pais e avós dela, que lhe consideravam honesto e trabalhador, virtudes que muito agradavam à família da pretendida. Naquele ano a festa teria a duração de três dias, iniciando no sábado e findando na segunda, dia de São João. Nada poderia sair errado, pois o sucesso da festa certamente lhe seria bastante favorável.

O ápice da festa seria uma queima de fogos de artifício, os quais Amâncio encomendara pessoalmente em outra cidade. Nunca por aquelas bandas houvera algo parecido. Seria a coroação de uma grande festa, inédita, cujas lembranças iriam render longas horas nas rodas de conversa muitos e muitos dias depois. Seriam não mais que dois minutos de queima, mas o suficiente para deixar a todos atônitos, embasbacados. Depois de dois dias de festa, todos estavam ansiosos pela surpresa que lhes fora anunciada no primeiro dia. Nenhum dos convidados sabia o que estava sob aquele pequeno pedaço de lona, de aproximadamente dois metros quadrados.

Era chegada a hora. A grande fogueira que havia sido montada já estava quase no fim. Apesar do cansaço natural após três dias de festa, com muita dança em meio à poeira, ninguém arredava pé, todos curiosos e irrequietos. Amâncio, então, dirigiu-se até a sacada da fazenda, de onde teria visão de todos os convidados. Estava ofegante, agitado, pois quase toda a família Inocêncio de Oliveira se fazia presente. Iniciou agradecendo a presença de todos, e fez um agradecimento especial ao senhor Manoel, pela oportunidade de substituir a seu pai na gerência da fazenda, prometendo que não iria decepcioná-lo.

Dito isso, desceu ao pátio principal, dirigiu-se ao local onde estava a lona, retirou-a e, solenemente, acendeu, com seu cigarro de palha, o estopim que daria início ao maior espetáculo já visto na Fazenda Itanhandu. Não demorou muito e os fogos começaram a pipocar, iluminando o escuro céu daquela noite de 24 de junho. Todos ficaram boquiabertos, como que hipnotizados por aquelas luzes e sons que eclodiam de baixo para cima. Amâncio não se continha de felicidade ao ver nos rostos dos presentes a expressão de surpresa e contentamento. Até que algo deu errado.

Um dos fogos de artifício, não se sabe o porquê, não seguiu a mesma trajetória dos demais. Saiu direto do chão e rumou para o telhado da sede da fazenda, cujas madeiras, naquela época de estiagem comum ao início de inverno, encontravam-se bastante secas. Em poucos minutos, as labaredas tomaram conta de todo o telhado. Não havia muito que fazer. Alguns tentaram aplacar as chamas com baldes de água e mangueiras, o que se mostrou inútil diante daquela combinação infernal de madeira seca, oxigênio e fogo. Não demorou muito para que o incêndio se alastrasse para o térreo. Em pouco mais de uma hora, a histórica fazenda estava em ruínas.

Como almejara Amâncio, aquela festa permeou as rodas de conversa por muito tempo. As pessoas caçoavam dizendo que o “fogo” do jovem não destruíra apenas parte da história, mas também uma amizade duradoura entre duas famílias, um futuro promissor como gestor de uma das maiores fazendas da região e, também e principalmente, o amor entre dois jovens sonhadores. Às vezes, é preciso ter cuidado com o que se deseja.

*Bacharel e Mestre em Administração de Empresas

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