Fila da sopa

Fila da sopa.

O lugar onde os que estão no fundo do poço vão buscar um pouco de calor para suas frias vidas. Seja calor humano ou de um caldo ralo de legumes que vem para calar a fome. Um local impensável, surgido das misérias dos tempos e dos homens miseráveis.

Ali, por trás de cada expressão macilenta, cheia de ângulos e sulcos assombrados, cinzentos, descarnados e de olhares pesarosos, esconde-se uma história rica de pobrezas. Fracassos, derrotas e sonhos partidos.

Enquanto a longa fila avança e pára ao redor do grande pátio cimentado, vamos nos debruçar sobre duas histórias que partiram de um ponto em comum, se separaram furiosamente e voltarão a se encontrar aqui, onde estamos. Logo-logo esse reencontro acontecerá, então vamos nos adiantar antes do grande momento.

Comecemos voltando no tempo.

Para ser mais preciso, voltemos exatos doze meses.

Nesta época o mundo estava tremendamente sobressaltado. Acredito que você se lembre, vivíamos uma temível pandemia. Havia décadas desde a última comoção em nível global e os homens e mulheres haviam desaprendido a como bem reagir em situações assim. O longo período ameno permitiu a muitos indivíduos um maior acesso à informação e à dedicação de tempo ao estudo de temas que vão além das necessidades do estômago. As pessoas estavam divididas entre muitas ideias e todos tinham alguma opinião divergente sobre alguma coisa. E faziam questão de dividir suas opiniões publicamente.

Pois é, amigo e amiga, uma época interessante.

No meio fervilhante desses bilhões de paixões e opiniões, havia um Médico e um Economista. Ambos foram colegas de colegial, e por isso mantinham contatos esporádicos nas redes sociais. Como não se viam pessoalmente há anos e anos, não tinham nenhuma intimidade. Sua relação era, no máximo, uma curtida aqui, um comentário ali. E só.

Mas lembre-se que os tempos andavam estranhos. A pandemia estava mexendo com a saúde, bolsos e mentes de todo o mundo. Não tardou para que acaloradas discussões pipocassem aos milhões pela Internet.

Numa dessas discussões, o Médico resolveu dar sua opinião baseada na ciência que dedicava sua vida: que a doença era séria, que atingia severamente uma parcela considerável da população e que a quarentena seria a melhor alternativa.

Pois bem, ocorre que o Economista visualizou a discussão e também resolveu dar sua opinião com base na ciência em que, por sua vez, dedicava a vida: que a quarentena era extremamente danosa à economia, que isso geraria desemprego e outras situações tão indesejáveis ou mais do que a doença em si. Depois de uns poucos minutos recebeu a notificação da tréplica do Médico, citando órgãos internacionais de saúde. Sentindo um aperto no fígado, o Economista não demorou a teclar uma resposta afiada, com base em órgãos financeiros internacionais.

Antes que o pôr-do-sol deixasse as trevas tomarem conta da cidade naquele dia, ambos passaram a detestar-se um pouquinho. Não a ponto de brigarem ou se afastarem, mas aquele detestar prazeroso, ansioso por um próximo momento de se digladiar na arena virtual das opiniões.

E este momento chegou no dia seguinte.

E no outro dia também.

No outro, e no outro, e em muitos outros.

Sol nascia e morria, e ambos dedicavam-se a contestar tudo o que a contraparte pensava e expressava a respeito da melhor conduta para fazer frente ao avanço trágico da pandemia. Como a divergência persistia imutável, em segredo um desejava que o outro se afogasse em seu próprio remédio. Só assim um poderia ver como o outro tinha razão.

A esta altura o mundo já estava tremendamente enlouquecido. Os infectados e desempregados multiplicavam-se exponencialmente, e logo nossos dois personagens sentiriam na pele a dureza daquela pandemia.

Primeiro foi o Economista, cuja empresa em que trabalhava foi a pique e ele quedou desempregado. O Médico calou-se pela primeira vez frente ao Economista ao ver seu desabafo acalorado na rede social: “E agora? Como faço? Como ficam minhas contas? A classe médica irá pagá-las? Estou quebrado, falido, sem fonte de renda, sem auxílio do governo, e minhas aplicações foram por água abaixo junto com as quedas dos índices!” O textão foi longe e, assim, o Economista intentou mostrar de forma prática como tinha razão. “A economia é indissociável da vida, e sem ela… não há vida! A quarentena é balela. Uma verdadeira desgraça. Agora, não estou doente, mas estou acabado!”

Embora o Economista tivesse carregado na tinta, de fato sua situação não era boa. Tinha reservas para mais alguns meses de aluguel, e só. Depois disso, tinha que se virar.

Logo começou a procurar emprego, mas não achava nada. A economia estava cambaleante e, após o esgotar de suas finanças, teve que vergonhosamente se mudar para a casa de parentes, pois não conseguia mais bancar seu aluguel. Até sua presença nas redes sociais diminuiu. Mal tinha dinheiro para comer, quem dirá para pagar a conexão à Internet?

O Médico, ciente da desgraça contundente e próxima do Economista, diminuiu o furor de sua defesa pela quarentena, embora mantivesse a firme certeza de que ela era a melhor - ou menos pior - resposta à pandemia.

Mas a hora do seu infortúnio não demorou muito a chegar.

Como era médico, estava constantemente exposto à doença. Nas idas e vindas do plantão para casa, buscava tomar o máximo cuidado possível para manter bons hábitos de higiene e evitar ser vetor de transmissão da doença.

Porém sua esposa caiu doente. Como ela não saía de casa, o Médico rapidamente supôs que fora ele quem a infectara.

Sentindo o peso da culpa pela situação, não poupou esforços para amparar o amor de sua vida na luta contra a doença. Tirou licença no trabalho e dedicava vinte e quatro horas de seu dia no cuidado da mulher. Não era um médico brilhante, aquela sequer era sua área de formação, mas empregou tudo o que tinha e sabia para vê-la curada.

Todavia, o destino não quis que fosse assim. A mulher ficou muito mal, chegou a ser internada.

Mas, na segunda noite de UTI, ela deixou-o viúvo.

Imagine como isso o afetou!

O homem passava os dias chorando a falta da amada e, pior do que isso, sentia-se diretamente responsável pela sua morte. A família e amigos tentaram consolá-lo, demovê-lo da sensação de culpa, mas nada diminuía sua dor. Estava destruído. Tão destruído que teve de tirar uma nova licença, agora psiquiátrica, para tentar juntar os cacos do seu coração.

O Economista soube o que aconteceu ao Médico somente três dias depois da morte da mulher. Sentiu uma fisgada no peito. Aquilo era terrível, e teve pena do Médico. Refletiu a respeito e o fato lhe doía como se tivesse, ele mesmo, sido afetado diretamente.

Em seguida, cada um por seu motivo, afastou-se definitivamente das redes sociais e não teve mais notícia do outro. Cada qual lutava para superar sua condição e não tinha mais tempo para pensar muito além de si.

E, desta forma, chegamos a este pátio.

Bem na hora.

Veja aquele homem que está se aproximando das panelas. É o Economista. Veja sua situação. Quem diria, um economista na fila do sopão. Roupas rotas, olhar perdido, barba malfeita.

Agora olhe quem está ajudando a servir a sopa. É o terceiro servente, o de expressão triste.

Viu? É o Médico.

Passado algum tempo desde sua terrível viuvez, foi procurar alento. Passou a frequentar a Igreja, vai a alguns grupos de ajuda e voluntariou-se a ajudar na preparação e distribuição da sopa aos pobres.

Agora observe, ambos vão se reencontrar.

Cruzaram os olhos, veja! Repare como estão sem jeito. Devem estar sentindo a dor um do outro.

A vergonha.

A tristeza.

Estão chorando, olhe só! Veja, veja que momento! Não perca um só segundo, veja os dois homens, tão opostos e tão iguais!

Ambos se reencontraram no fundo do poço, não têm mais nada a perder.

Olhe só… Que bonito… Saíram de seus lugares, foram se abraçar.

Quem diria, num lugar tão feio, num momento tão triste, esquecido de tudo. Num canto qualquer da cidade, uma paróquia pobre, um pátio frio. Chão e paredes enegrecidos. Tintas descascando, os homens e mulheres também. Quem diria que num lugar assim, num dia qualquer, dois homens reaqueceriam um ao outro ao - finalmente - reconhecerem-se como passageiros de um mesmo barco. Reconhecerem-se como o que verdadeiramente são: filhos de uma mesma tragédia.

Obrigado por ter passado esse tempo aqui, junto de mim, refletindo sobre a vida dos dois homens. O mundo não repararia neles, não possuem nada de distinto. São apenas mais dois ferrados.

Espero que não se esqueça deste momento.

Que isso lhe sirva de alguma coisa.

Que você não precise chegar ao fundo do poço para reconhecer-se no próximo.

Eudes de Pádua Colodino
Enviado por Eudes de Pádua Colodino em 17/04/2020
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