TIÃO MARICA, O VAQUEIRO CONTADOR DE HISTÓRIAS
Típico sertanejo, daquele pau para toda obra e sempre com uma boa história na ponta da língua, Tião Marica era a alegria daquela pequena comunidade do Cerrado brasileiro. De todas as atividades gabava-se de ser um grande corredor de vaquejada. Acumulava vários prêmios e com eles já havia iniciado uma pequena criação de gado nas terras herdadas do pai. Embora fosse uma espécie de rei das pistas de vaquejada da região o povo gostava mesmo era das histórias contadas pelo vaqueiro. Tinha um jeito peculiar de contar os causos dos quais era protagonista. Se durante a narrativa surgia alguma dúvida sobre a veracidade dos fatos tudo ia logo embora junto com as intermitentes gargalhadas dos ouvintes e as estórias, se transformavam em histórias.
Assim, é que num desses dias no qual a turma se reúne para gelar a goela e esquentar o bucho com churrasco, entre um gole e um naco, Tião danou-se a contar seus causos.
Caboclo destemido, derrubou onça preta pela orelha, pegou Jacaré pelo rabo, atravessou um rio cheio de piranhas, só para impressionar uma pretensa namorada; e brigou até com uma cascavel que caiu na besteira de lhe picar. Contou ele, que a picada da danada não lhe causou nenhum desconforto. Aconteceu foi o contrário:
-Depois que ala me picou, tá vendo? Dei um salto mortal fiz o sinal da cruz e a serpente caiu mortinha ali na minha frente - contou.
Naquela pequena cidade do serrado brasileiro as histórias do Tião, o vaqueiro, vira e mexe são contadas e recontadas. Uma delas narrada por um sobrinho. Nada de briga com onça, cobra ou piranhas; a história, segundo o narrador, foi como seu inteligente tio, depois de infrutíferas tentativas por parte do médico e da família para convencer um amigo da cidade a buscar ajuda psiquiátrica numa clínica da capital, conseguiu tal feito.
O jovem senhor , cujo nome de batismo era Patrício, pertencia a boa e tradicional família da comunidade e havia cismado que era delegado da Polícia Federal. Vestia-se todo de preto, punha um bonito boné onde estava bordado um P e um F e não se separava de uma bolsa, tipo pochete, que avolumava com uma pedra. Queria convencer a todos que era delegado e que andava sempre armado. Até uma insígnia da PF, não se sabe onde, ele conseguiu para completar o visual.
Por conta das suas batidas e investigações na região além de uma vez ter sido preso por falsidade ideológica Patrício já havia levado vários tabefes. Uma vez foi parar no Hospital depois que tentou abordar um automóvel na rodovia que corta o lugar e acabou atropelado.
Alguns moradores achavam engraçado e o coitado era por vezes ridicularizado. Outros lembravam que ele era de boa família e precisava mesmo era de tratamento. Ainda tem jeito, argumentavam. O problema era “o delegado” aceitar ir até a capital para se consultar do juízo. No menor indicio de algo dessa natureza ele se acovardava, fugia e para desespero da família passava até uma semana sumido.
Foi ai que num desses sumiços do “delegado Patrício” um dos parentes ratificou que aquela situação precisava ser resolvida e somente uma pessoa da cidade seria capaz de convencê-lo a ir até a capital. Esse alguém era Tião. E assim, o atilado vaqueiro foi procurado e aceitou o desafio.
-Mais rapaz ! Um cabra que nem eu que já brigou com onça e jacaré , foi picado por cobra cinco vezes se não conseguir levar um doido desse para capital, é melhor mudar até de nome- gabou-se Tião.
O vaqueiro encontrou o delegado falando sozinho a caminho de casa. Aproximou-se sorrateiramente e antes que ele dissesse qualquer coisa foi logo interrompendo:
-Delegado Patrício, pelo amor de Deus, só o senhor pode me ajudar a resolver uma situação complicada na minha vida! Ninguém é corajoso que nem o senhor pra isso, me ajude! -
Ao ouvir Tião o delegado estufou o peito e todo empoderado foi pra mais junto dele.
-Conte logo a história, rapaz, vou lhe ajudar. Desembuche! -
Na hora Tião inventou o caso da mulher que tinha sido internada à força numa clínica na capital e que precisava ser resgatada de lá. Ela era sua esposa.
-Só o senhor é homem suficiente para ir comigo e trazer minha mulher de volta, delegado- reforçou Tião.
-Se é assim vamos lá. Quando e, que hora é a viagem?
A história poderia acabar bem ai, mas não acabou.
A viagem foi marcada para a meia noite do dia seguinte. Tempo suficiente para providenciar o encaminhamento clínico do “delegado/paciente, o transporte, enfim, o necessário para o deslocamento até a capital. Antes, porém mais uma providência:
-Delegado, nossa viagem é longa. Precisamos nos manter acordados até lá. Melhor tomar um injeção pra gente não dormir.
Tião já havia combinado no Hospital que ele tomaria um medicamento de faz de conta. Já pro delegado era pra dormir a viagem inteira, e não ter problemas. E assim aconteceu.
O delegado só acordou na entrada da capital. O desafio agora era formalizar a internação dele sem estresse. Era preciso pensar em algo assim que chegasse na Clínica.
O estabelecimento estava lotado. Umas cinquenta pessoas.
-Delegado, chegamos ! Fique bem aqui de prontidão que posso lhe acionar a qualquer momento. Não podemos sair daqui sem minha mulher-
-Combinado parceiro- disse Patrício , que naquele momento tinha acrescido mais um item no figurino: um óculos escuro.
Tião se aproximou do balcão. Mostrou o encaminhamento para a secretária, fez um breve relato da situação, mas não adiantou muita coisa.
-Desculpe, senhor. Tem muita gente para ser atendida na sua frente. O senhor vai ter que aguardar.
-Minha senhora, estou lhe dizendo que a situação é grave-
- Nada feito, o senhor terá mesmo que esperar a vez! -
Desapontado Tião fez cara feia, encarou a secretária mas ela não deu a mínima. Então deu meia volta. Antes de chegar ao local onde havia deixado o “ delegado” o vaqueiro teve uma ideia:
-Doutor, é o seguinte: eles não querem entregar minha mulher. É o jeito a gente tirar ela na marra. Eu não posso, mas o senhor que é delegado pode ir lá e botar moral.
-É pra já, meu parceiro !
O delegado então atravessou todo o saguão da recepção e chegando ao balcão abriu a pochete de onde tirou a pesada pedra que sempre carregava e arremessou sobre a mesa de vidro, logo despedaçada.
-Aqui é o delegado federal Patrício. Vim aqui buscar a mulher de um amigo que está internada e não vou sair daqui sem ela. Me entregue a mulher agora ou, tem gente que vai se dar mal-
Foi o maior furdunço com o pessoal que estava esperando na recepção correndo ao mesmo tempo na direção da porta de saída.
Imagine a confusão que se formou. O corre-corre foi grande. A secretária que havia dito a Tião que ele teria que esperar estava sem nem um pingo de cor na cara, petrificada que ficou.
Não demorou muito apareceram dois armários em forma de segurança que depois de muito trabalho conseguiram imobilizar o delegado e ali mesmo sob tensão lhe aplicaram um sossega leão. A valentia dele acabava naquele instante. Só assim, foi possível internar o delegado e o Tião completar a missão e voltar para casa contando vantagem.
O tempo passou. Meses depois o delegado recebeu alta e voltou para sua cidade. Não estava totalmente curado contudo, controlado, sociável e mais vigiado pela família. De vez em quando ele sumia, mas sempre retornava. Agora tinha se afeiçoado a uma pasta preta tipo 007 que não deixava ninguém chegar perto. Em casa, a pasta era trancada num armário de aço. A família deixava passar. Acreditava ser mais uma das manias acumuladas pelo Patrício.
Quanto a Tião, continuou no mesmo lugar correndo vaquejada, brigando com onça e cobras, segurando jacaré pelo rabo e atravessando a nado rios cheios de piranha, fazendo pequenos favores e contando suas histórias embalado pelas gargalhadas dos amigos.
A figura do delegado ficou para trás. Quase ninguém lembrava mais do tempo em que Patrício andava pela cidade incorporado na figura de um imaginário delegado da Polícia Federal mas, já surgia aqui e acolá a história de um estranho padre fazendo desobriga nas fazendas da região celebrando missas, fazendo batizados e casamentos.