UM DIA DE BINGO !

Retornara à cidade onde viveu parte da infância, o lugarejo pouco mudara em 50 e tantos anos, ainda havia "caroças" nas ruas e boa parte da população de origem polonesa andando a cavalo. Não havia cinema no lugar mas televisão, em quase todas as casas, era divertimento diário da maioria. Restavam, nos fins de semana, os grupos tradicionais de dança e canto, herdados dos antepassados e praticados com respeito e admiração.

O forasteiro viera com a intenção de "mudar o lugar", deixar sua marca nele... não conseguiu ! O tal cinema -- seu projeto inicial -- não ameahlou simpatizantes, ninguém investiria tempo e dinheiro para ver os mesmos filmes que a TV já exibia... além do mais, boa parte dos adultos tinha dificuldade em ler em português, falando e escrevendo ainda em polonês durante a vida toda.

Mas se aproximavam as festas do padroeiro do lugar, Santo Estanislau, e êle vislumbrou a chance de mostrar a que veio... gastou quase toda a grana do "falido" cinema em brindes para o Bingo, momento máximo da festa. O povo chegava tarde para o evento, os prêmios menores eram garrafas de suco de frutas, conjunto de pratos de porcelana e miudezas.

Não desta vez... o buchicho foi geral, comentários até durante a missa dominical sobre o valor e a novidade dos novos brindes, as "prendas" no dizer do povo local. O leiloeiro oficial, velho na função, soube por bocas alheias que fôra "substituído" -- logo pelo vigário -- pelo forasteiro. Para azar dos 3, o visitante ultimava com o idoso pároco os preparativos para a tarde do dia seguinte, o glorioso dia do padroeiro. Padre e leiloeiro eram amigos de infância e aquele foi questionado:

-- "Lauro, você me traiu... jamais esperei isso de um padre, quanto mais de um amigo. E você -- dirigindo-se ao estranho -- só veio trazer discórdia para nosso lugar. Parabéns, se era isso o que queria, já conseguiu"!

O forasteiro pediu licença ao padre e insistiu que o leiloeiro o ouvisse, ambos num canto da Casa Paroquial, o vigário amassando nas mãos abençoadas seu velho chapéu de feltro, cinquentenário como êle. O leiloeiro abanava a cabeça repetidas vezes, "sapateava" no mesmo lugar, coçava nuca e peito e mostrava-se inteiramente contrariado com a situação. O sacerdote estava para "ter um treco" presenciando a conversa, quando a dupla voltou, agora sorrindo e confraternizando:

-- "Voltamos às boas, senhor vigário... se tudo der certo, será um Bingo inesquecível" !

-- "Ah, se vai... disso não tenho a menor dúvida" !, acrescentou o leiloeiro, já concordando com o plano.

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O domingo amanheceu esplêndido, o buxixo era geral na cidade, cartelas todas vendidas e gente dos interiores à procura de mais. Os prêmios eram tentadores, expostos no átrio da Matriz viraram motivo de visitação e elogios. TV plana LCD de 20 polegadas no quinto prêmio -- o menor, no sul do Brasil -- 3 belas bicicletas masculinas (novidade absoluta nos Bingos de lá) e uma colossal TV moderna de 32 polegadas, um espanto. A população que morava distante, após a missa nem voltou para suas casas, comeram qualquer coisa nos bares e pensões ao lado da Matriz ou em casas próximas, de parentes ou amigos.

Iniciado o Bingo, a comoção era geral, todos queriam aquela TV moderna, um luxo sem igual em suas casas simples. O leiloeiro "tomara um trago" pouco antes, estava mais falante do que nunca e o vigário muito preocupado com o amigo e o futuro da festa. O dia continuava firme, sem nuvens, São Pedro dormindo no céu. A expectativa era enorme, o leiloeiro esbaldava-se em expressões pouco comuns, sabedor do "desfecho" do Bingo.

-- "O que foi, estão cegos ?!, espicaçava os presentes o leiloeiro.

-- "Estão dormindo ?! Alguém aí bateu e nem sabe" !, provocava o cantante, repetindo as "pedras" já saídas.

Restavam menos de 15 pedras e... NADA, ninguém batera, nenhum grito de "É MEU"!, nenhum burburinho, todos se olhando surpresos, o "coração na boca". Por fim, faltando meia dúzia de peças a bendita TV saiu... correram todos a comprar novas cartelas, o Bingo seguindo a tendência anterior de só baterem nas últimas peças do saquinho.

SUCESSO ABSOLUTO, todos embasbacados com a situação inédita, imprevista, menos o vigário, pouco convencido pela incomum "coincidência". Chamando o forasteiro mais o leiloeiro a um canto, questionou muito sério:

-- "Que tramóia foi essa ?! E não me façam de besta" !

O leiloeiro, feliz com sua performance, esclareceu :

-- "O nosso amigo me convenceu a pôr algumas poucas peças no congelador... são as "pedras frias", 18 delas, duas de cada dezena ! Eu evitei as "geladas" até o final do Bingo. Foi isso !

"NATO" AZEVEDO (13/abril 2020, 7hs)