Anastácio vivia de fazer rapaduras batidas, que todos chamavam simplesmente batidas. Sua freguesia era grande e composta, por gente da alta sociedade: médicos, advogados, comerciantes e até o prefeito da cidade figuravam na sua lista de fregueses.

        Suas rapaduras eram mesmo muito gostosas e ele levava muito a sério o seu negócio fazendo o possível para que todos ficassem satisfeitos. As encomendas eram entregues religiosamente em dia e a qualidade do produto era extraordinária. Incumbia-se junto com a mulher de todo o processo de fabricação. A melhor cana, o melhor leite, o melhor coco. E o resultado não podia ser diferente. Fregueses numerosos e satisfeitos.

Não se podia dizer que era um grande ramo de negócio, mas, como o próprio Anastácio dizia: Isso é um pé de dinheiro; todo dia a gente colhe um pouco, só que não dá muda.

Certa feita ele trouxe uma cesta cheinha de rapaduras já preparadas para a entrega e, enquanto foi confirmar as encomendas, deixou a carga no açougue de Saulo Soim.

         Uma hora depois, voltou, pegou os pacotes e foi direto à casa de dona Mercedes, esposa de conceituado cirurgião da Santa Casa. Entregou a encomenda e ficou esperando pelo pagamento. Logo, apareceu a elegante senhora muito séria e trazendo de volta o embrulho que a empregada deixara na cozinha.

- O senhor resolveu brincar comigo, Seu Anastácio?

         - Como assim, Dona Mercedes? Não estou entendendo. Tem alguma coisa com as rapaduras?

- Não são rapaduras. O senhor me trouxe foi tijolos. Fique sabendo que não achei graça nenhuma.

O pobre homem ficou muito vexado com aquele fato e quase se ajoelhou, pedindo perdão à fina senhora. Explicou que aquilo era obra de um açougueiro, com quem deixara as rapaduras, enquanto viera confirmar a entrega.

          - A senhora me perdoe. Eu não sou dessas coisas. Aquele maldito vai me pagar caro. Pode ficar tranqüila que, o mais rápido possível, trago as batidas para a senhora.

         Assim, voltou para o açougue, pensando até em matar o desgraçado do açougueiro, mas achou melhor aguardar uma outra oportunidade e vingar-se dele de uma outra forma. Pegou sua caixa, agradeceu-o por ter guardado a mercadoria e foi embora muito amolado.

         Continuou vindo à cidade, fazendo suas entregas e indo ao açougue do Saulo, sem demonstrar qualquer ressentimento. Como se nada tivesse acontecido, até comprava alguma coisa dele, sempre pensando numa maneira de vingar a vergonha que passara por sua causa.

         A oportunidade chegou de forma inesperada. Era véspera de Natal e a casa de carnes do Soim estava cheia. A conversa geral entre os fregueses era a alta no preço da carne.

         - Só esta semana subiu mais de cinqüenta por cento, reclamava o proprietário. Se continuar assim, vou ter que mudar de ramo.

Anastácio, de estalo, percebeu que aquele era o momento. Viu que o brincalhão tinha pelo menos dez quilos de alcatra fresca e disse num ímpeto.

              -   Pesa dez quilos dessa alcatra, por favor.

              Pegou a carne, colocou-a na cesta em que trazia as rapaduras e foi saindo tranqüilamente.  

-   Ei, Nastácio, não vai pagar a carne?

-    Não, esta aqui vai ficar por conta das rapaduras que o senhor trocou por tijolos.

              -   Mas as duas rapaduras não valem dez quilos de alcatra, inda mais com a alta desta semana.

              -   Concordo, mas estou cobrando também, com juros, a injúria que me fez passar.

               Os fregueses, que a tudo assistiam sem nada entender, viram Anastácio indo embora, calmamente, enquanto o outro, sem saber o que fazer, ficou na calçada, como uma estátua, com a faca numa das mãos e na outra um pedaço de chã de dentro que estava cortando para uma freguesa.

               Talvez ele tenha aprendido a lição.

Fernando Antônio Belino
Enviado por Fernando Antônio Belino em 05/04/2020
Reeditado em 02/01/2022
Código do texto: T6907628
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