O BOM PAI DE FAMÍLIA

Sempre fui muito questionador e nunca aceitei o que a imprensa me dizia. Tenho pensamento crítico, sou inteligente e um bom cidadão. Deus é testemunha de que todos os meus atos são para honrá-lo. Deus é testemunha de que meu maior filtro para fazer o bem é a sua palavra. Não sei porque isso está acontecendo comigo!

Antes de colocar minha pesada bolsa no sofá, abracei minha menina, erguendo-a alto e mirando aquele sorriso que a tudo me fazia esquecer.

Maria, também sorrindo e já pegando a bolsa para guardar, disse:

- Não vai abraçar sua esposa? - Beijei Maria e comecei a escutar as histórias de Manuela.

- Papai, a mamãe não me levou pra brincar no parque!

- Ora, Manu! Por quê a mamãe não levou você pra brincar? Você fez alguma coisa errada? Tá de castigo?

- Eu disse pra ela que depois que tudo passar a gente a vai.

- A menina precisa brincar, Maria!

- Ela tem brinquedos. Tem um balde cheio de bonecas. Eu até brinquei com ela um bocado, hoje.

- Criança tem muita energia, precisa gastar.

- Papai, você me leva ao parque?

- Depois.

Manu fez uma carinha contrariada.

- O senhor leva mesmo?

- Se eu disse que levo é porque levo, coração.

Manu me abraçou mais uma vez, pegou meu celular e começou a mexer.

Maria estava muito assustada com a notícias que via nos jornais. Eu dizia pra ela parar de assisti-los e procurar outra coisa pra ver ou ler um pouco a bíblia ou outro bom livro. As pessoas estavam aterrorizadas. Ela, contra a minha vontade ligou a TV no noticiário e achei bom porque o governador apareceu lá dizendo que nas próximas duas semanas os serviços não essenciais deveriam todos parar e foi assim que tive férias antecipadas.

No dia seguinte, na padaria, vi duas pessoas de máscara. Gente de máscara parece doente. Ninguém gosta de ver gente doente. “Deus, que isso passe logo”. Lembro que disse pra mim mesmo e fiz uma prece em seguida.

Pão com ovos mexidos e um café preto forte e doce. Comemos todos à mesa. Não sei porque essa refeição é a que mais lembro. Vimos um filme pela tarde. Brincamos com a Manu depois do filme. A noite nos demos ao luxo de tomar uma taça de vinho. Vinho tinto suave lá do sul do país. Ótimo primeiro dia. O segundo dia foi parecido, mas sem o vinho. No terceiro dia resolvi ir à praia.

- Você não vai! - Maria tinha a mania de me dar ordens, mas eu sempre acabava fazendo o que queria - Você não entende o que tá acontecendo? Você é burro? Quer ser muito inteligente, mas é um burrão!

Ofensa eu não podia aceitar. Peguei o cooler com doze latinhas dentro e pus no porta malas.

- Manu vai comigo.

- Não!

- Vai sim.

Não foi. Fiquei aquela tarde no mar e foi bom, pois estava vazio. Pude pensar sobre a vida. Pude falar com Deus e percebi que um bom marido, um bom cristão, deve prezar pela paz no lar.

Eu havia estacionado perto de uma enorme árvore para evitar o sol e, do lado oposto, uma caminhonete estava tão junto do meu carro, que não pude abrir a porta nem de um lado nem do outro. Como não estava afim de me esgueirar pelo porta-malas, tomei mais duas latinhas esperando que a criatura chegasse.

Em casa pedi desculpas e Maria me pediu somente que não saísse de casa mais até que tudo passasse.

Manu começou a tossir uma semana depois e nunca tive tanto medo. A tosse foi aumentando e logo veio a febre e dores em seu corpinho. No hospital, deram-lhe prioridade, graças a Deus. Havia muita gente nos corredores e em toda parte. Comecei a apresentar os mesmos sintomas depois que Maria também adoeceu. Ontem morreram sete aqui no hospital e todo dia tenho medo dos homens de branco que passam nos corredores dizendo nomes completos e perguntando pelos familiares. Todo dia tenho medo.

Maria entrou na UTI agora pela manhã. Quanto a mim, já disseram que podia aguardar em casa, mas não posso sair daqui, pois um homem de Deus preza pela família.