Olhos inventados
Meu pai escrevia poesias com a fervura da vida longeva. Sentado a qualquer canto, empilhava palavras ao vento, recortava em silêncio, as embrulhava, polia-as. Construía uma a uma, e amarrava todas numa cadência jamais vista. Meu pai dizia que as palavras eram pra ser inventadas. Ele era um trabalhador das palavras. A filha cega, cujos olhos não puderam ver a vista dos livres, era o que na ponta da caneta lhe vinha. Lembrava do choro, da voz e do cheiro, das longas conversas que tinha quando explicava pra filha, já moça, o que era a cor azul, e ela dava de imaginar a cor azul mais linda que pudesse existir. E ela perguntava sobre o belo, e no seu mundo lhe vinha algo tão belo que jamais este mundo já viu. O pai inventava e criava-lhe o mundo. O pai era os olhos da filha cega que já nascera cega, da filha tão sofrida, cuja mãe nem conheceu, pois a morte precoce lhe atacou de feitio. Morrera a mãe pra filha nascer, de parto, de dor. E meu pai tratou de dar um amor de explodir o peito, de rasgar a carne, de gritar. Sozinho. Sempre sozinho. Sofria a queimação no peito da angústia de sofrer pela vida do outro. Ouvia meu pai chorar, e mesmo sem ver, só conseguia imaginar sua voz contando-me até onde iam as ondas do mar, me fazendo imaginar um algo que só a poesia pudesse acreditar. Meu pai chorava palavras, e pra filha cega ele mostrava o mundo, do seu jeito, um jeito de inventar absurdos. Passava os dias a imaginar a vida da filha, como se houvesse uma escuridão, e a todo custo ele fazia iluminar. Era conhecido como o poeta da invenção.