O DIABO É MUITO MAIS FEIO DO QUE PARECE
Capítulo 16
O DIABO É MUITO MAIS FEIO DO QUE PARECE
Fatos para a fidelidade de uma narrativa como esta, que quer ser de memórias, não fica bem modificá-los. Apesar de que algum detalhezinho tem que ser trabalhado, composto, para o bem do fio narrativo, os fatos são os mais fieis possível à verdade da história. Então vamos a eles: todo mundo sabe quem é o pé-de-bode. O encardido. Ele mesmo. O sarnento. A maioria das pessoas se benze, faz sinal ao ouvir falar dele. Não o Ponciano (pseudônimo). Ele era gerente de uma grande loja de tecidos. Próspero, abonado, todo alegre, mas ranzinza para a família. Bigodinho de janota, cabelo preto ondeado e uma preferência muito que meio estranha. Gostava de falar e citar elementos atinentes ao demo, ao... sabem quem. Era amigo do meu pai. Próximo mesmo, ligava-os o gosto pelo negócio, pela venda, pelo comércio. Por alguns bons motivos, não vou identificá-lo, só por um nome fictício. Apesar de não ser um daqueles zombadores da fé cristã de jeito algum, ele tinha gosto por coisas esdrúxulas e provérbios que versassem sobre o diabo. “Falai do diabo e ei-lo à porta”. Era o seu preferido. Estávamos falando sobre o Fefeu da Orestina. O Fefeu da Orestina aparecia. Pronto, o ditado vinha infalível. Alguém estava falando de necessidade de chuva, começava a chover por um acaso. Pronto. Lá vinha o provérbio, falado com gosto, com boca cheia. Um cliente discutia. Alguém reclamava de um tecido mal medido, ou que desbotou na primeira lavagem, era infalível: “O diabo quando não pode vir, manda um secretário”, ditado do povo. Se alguém tinha um prejuízo qualquer: porco vendido por preço muito baixo, geada no café, queda no preço do milho, carroça quebrada, motor enguiçado: “Quando Deus dá a farinha, o diabo rasga o saco”. Cem por cento das vezes, ele falava isto. Parece que gostava do nome do peneireiro, do ranheta (sabem quem).
Bem no dia de Natal (1961), meu pai e o Ponciano iriam fazer uma viagem para Cianorte. O tio André ia chegar de Astorga no ônibus da uma hora da manhã. Eram 25,4 quilômetros. Estrada sem asfalto, deserta, poeirenta. Aconteceu que sua digníssima esposa (Esmeralda) convidou a pobre mãe dela (Antônia) e sua irmã (Otília), mais três sobrinhos (Roberto, Pedro e Genésio) para passar a ceia de Natal com eles. Porquinho, galinha, polenta, roiz (arroz), guaraná, limonada, e refresco de vinho (vinho, gelo da geladeira de querosene, água e açúcar). O problema é que... vou ter que falar... o Ponciano era um tremendo pão-duro, iliberal, muquirana, mão-de-vaca, avaro, avarento. Não sei se fiz me entender. Assunto difícil, delicado de comentar. Vou dar mais umas dicas do que quero dizer: forreta, fominha, cúpido, unhaca, mão-de-leitão. Entenderam? Gerente que era de uma loja de tecidos progressista e afamada, mesmo assim tomava café sem açúcar para economizar, ternos puídos, sapatos sem graxa, gastos, roupa sem lavar para economizar sabão, magro, pálido, dava impressão de pouco nutrido – não desnutrido, isto não, de jeito algum, mas pouco nutrido sim, sem excessos, entendeu?
Não vou mais fugir da narração dos fatos. Tudo começou nesta simples noite de natal. Mais simples impossível. Mas na hora em que a sogra chegou, com a cunhada do Ponciano e os sobrinhos, o homem emburrou. Logo veio a primeira pancada: o bruto atacou, de voz alta: “É meu povo, o demo à hora da ceia sempre traz mais um”. Não caiu bem. Os sobrinhos vexados. A sogra de cara virada. Meia sala constrangida. Os rapazes tudo da roça, tímidos, acanhados, sem boca (para responder). Pouco depois, o Ponci lascou a segunda: “Jogo de três, o diabo o fez”. Queria criticar o excesso de pessoas presentes ao bródio, à comilança. Meu pai chegou para chamá-lo à viagem. O caldo estava entornado. O homem era enfezado. Por coisa pouca perdia as estribeiras. Vocês sabem “Na arca do avarento, o diabo jaz dentro”. Meu pai já ficou assustado, meu Deus (esta citação do nome de Deus visa a quebrar o clima que já ficou pesado com tantas citações ao tinhoso, ao sujo). A sogra de Ponciano tinha um leve defeito no pé, não deu outra. Ao ela ir se servir do doce de leite, bem encaroçado, caprichado, de sobremesa: “O diabo manco é o pior de todos”. Seu sobrinho que era coroinha foi pegar um pedaço de pernil: “A cruz nos peitos, o diabo nos feitos. Ou, bem baixinho: “Às vezes, atrás da cruz, o diabo escondido”. O homem estava escoiceando para trás e para diante, todo mundo. Ele não gostava de visitas, principalmente que comesse sua comida paga por ele. Eu achava engraçado. Ele tratava a gente com a maior distinção. Porque algum lucro meu pai sempre lhe dava nas Casas... quase que eu falo.
Meu pai lembrou que precisavam ir. Foram. Na despedida, a paciente, cordata, cordial, parcimoniosa (ponderada) Esmeralda ainda contemporizou, amainou, suavizou. (Era uma santa). Deu um suave beijo no estabanado marido: “Vai com Deus, Feliz Natal”. O homem ficou meio desconcertado, engoliu em seco, mas rebateu, mas retrucou. “Nem que o diabo toque rabeca. Eu vou com quem quiser me buscar. Tanto faz que seja Deus ou que seja o diabo. Acrescentou, com voz meio escarninha: “O diabo ajuda os seus”. Kkkkkk.
Quem arma a cama que deite nela. Era noite. Meia-noite, pouca coisa mais, na verdade. Começaram a descer a estrada que passava por cima da ponte do rio ligeiro. Só se via dois fachos de luz dos faróis do Jeep. A poeira levantada era traspassada por ela, a luz. De repente, isso já era meia noite e vinte, à beira da estrada, uma velha. Uma velha? Fazendo o que ali? Como sei que era velha? Encarquilhada, passos lentos, roupa em trapos. Cabelos desgrenhados, nariz adunco, rosto enrugado. O farol iluminou por pouco e suficiente tempo. Ergueu a mão. “Pare! Pare!” O gerente da famosa loja de tecidos de Terra Boa começou a diminuir a velocidade, será que ela queria uma carona, uma prosaica carona? Meu pai gritou: “Não para não. Não para não. Não está vendo quem é? Tanto você fala nele, que ele veio te buscar. Corre, corre, homem de Deus! (Homem de Deus é uma alegoria, neste caso).
Foi assim que aconteceu. Sem tirar nem pôr. Nunca mais foi esquecido este episódio. O homem virou um humilde. Parou com aquele costume estrambólico de citar o... “nem vou dizer”. Para encerrar aquela enxurrada maligna, meu pai depois do episódio noturno, ainda citou duas frases que terminaram por serem definitivas: “Ponciano, meu amigo, quem embarca com o diabo tem que navegar com ele”. “Meu grande gerente, tão inteligente, nunca esqueça: Quem com o diabo se deita, com o diabo amanhece”. Assim, acabou o costume ilícito do Ponciano, de se entremeter com estas coisas da esquerda. Virou um ponderado, um vigilante dos próprios lábios. Escapou de uma boa, bem boa. A maior virtude é aquela que advém da contenção do pior vício. Agora, quando sua doce Esmeralda dizia: “Vai com Deus, Ponciano”, ele só dizia: Amééém! Dizem que virou um devoto da sogra, um benemérito dos sobrinhos, um amigo da cunhada. Sogro, se tivesse, seria tratado como um rei, um califa. Café só bem açucarado. Roupas novinhas, para substituir as doadas aos menos afortunados. O homem iluminou-se.
Vade retro!