Seu Zé

Alguns anos são ruins e apenas a experiência individual pode mensurar o quanto! Talvez por isso tenhamos inventado os marcos temporais, os pontos de passagem: para nos dar mais uma chance, ânimo e paz para começar de novo! Aqui poderia colocar o nome de milhões de pessoas, como sujeitos históricos, dizendo de seus percalços e esperanças, porém vou nominar um indizível e fictício Seu Zé! Ele é um pouco de todos nós, homens e mulheres comuns, a maioria no mundo!

Seu Zé, com seus 50 e poucos anos cresceu no interior, família católica apostólica romana e o devoto clássico, não frequentador da igreja, por convicções que a vida ensinou! Esposo, pai de três filhos, já somando mais de 20 anos de casado. A experiência ensinou a ele questões importantes, simples, porém basilares da existência de nós, moscas humanas que nos achamos centro da criação.

Ainda quando criança Seu Zé olha o céu, de dia e à noite e, embora não entendesse nada, se perguntava: “Até onde vai esse azul todo?” ou de noitinha, olhando as estrelas, espantado perguntava quantas seriam e até onde ia aquela escuridão toda! De fato, sem perceber suas perguntas eram de uma cientificidade assombrosa! Ainda não há resposta única para isso, mas Seu Zé ouviu algumas explicações na vida escolar e gostava de uma afirmação de um cientista que uma vez mostrou a língua e ficou famoso. Acho que dizia que tudo aquilo era “finito, mas sem fronteiras"! Essa resposta encantava Seu Zé.

Eu não disse, mas Seu Zé nem terminou a Educação Básica. Sua experiência, seu suor do trabalho do campo, depois assalariado na cidade grande, e o que via nos documentários da TV que tinham moldado sua visão de mundo. Ah, somado a tudo isso parecia brotar uma crítica de mundo! Se ele leu algum livro? Talvez, clássicos infantis e juvenis, entre eles aquele sobre o pequeno Príncipe que viajava com os cometas. Seu Zé via o mundo amado do Príncipe, tão pequeno e dele, olhava para o seu e via um mundo grande, cheio de cercas, muros e, o pior de tudo, de donos! Isso me leva a lembrar de uma anedota que me contaram sobre ele...

Certa vez, trabalhando para um sitiante, soube do irmão que matou o irmão por conta de herança, posse de terra, sobre com quem ficaria um sítio na partilha. Ele se perguntava: “Quem diabos inventou essa coisa de ser dono de tudo ou de tudo ter dono?” Seu Zé não tinha posse, tinha apenas a saúde de nascença e os braços para trabalhar. As vezes até pensava: “Desse mal não sofrerem, acho que não terei nada a deixar aos meus filhos, senão o nome e a educação! “

Essa anedota e outra questão importante, sobre a qual aprendi ouvindo a história do Seu Zé. Quem pôs cerca e deu as terras aos homens? Só consigo associar isso a um palavrão: é um maldito! Criou a desigualdade, em grande parte. A outra é essa coisa de um ser humano ter mais poder que o outro. Ah, isso me lembra de uma outra experiência do Seu Zé. Ele não viveu a vida toda no interior, foi para cidade grande, logo depois de casar, foi ainda sem filhos, mas cheio de sonhos, de trabalhar e mudar de vida.

La na cidade grande ele arrumou um emprego, em um supermercado, cuidava de abastecer as gôndolas com produtos conforme os setores. Até então ele comia o que plantava, sabia da origem do leite, da árvore de quiabo, do amendoim debaixo da terra e até de onde vinham as batatas! Certa vez ele soube de uma criança que achava que o leite era do saquinho e o amendoim era massa frita, passou! Enfim, na entrevista de emprego o gerente o contratou e logo ele descobriu que ficava lá embaixo de um tal de organograma. Pior, nem era o gerente que estava no topo, ele nem via quem estava, mas como ele era o mais humilde na ordem das coisas, descobriu que todos que estavam acima dele poderiam cuidar de sua vida, dar ordens e maltratá-lo caso não gostassem de algo que tinha feito. Ele via essa organização, onde uns podiam mais que os outros, em todos os espaços da cidade, via também os filmes e novelas e via pessoas serem mortas no noticiário, humildes como ele, chamadas de bandidos! A conclusão de Seu Zé foi de que quem tinha mais dinheiro, mandava mais. Parece simples, mas na ordem do Capital, tinha compreendido os processos de expropriação e exploração e desigualdades sociais.

Seu Zé não era doutor, a não ser de viver. De sobreviver. Lembro de muitas outras anedotas desse figura, que chamei de todos, que apelidei de Seu Zé. Pai de três filhos, com 52 dois anos sua saúde o matou. Deixou filhos e esposa. Hoje é apenas uma lápide na necrópole, que toma sol e chuva, frio e calor. É memória. Ah Seu Zé, se o mundo despertasse aos poucos, na simplicidade, como você! São quase duas décadas passadas, não resta a carne, resta o pó e as lições de vida a serem seguidas...Que mundo esse, não é minha gente?

Heródoto Poeta
Enviado por Heródoto Poeta em 31/12/2019
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