O repetidor de ideias
Um belo sábado se aproximava, pois eram oito horas da manhã. O sol forte queimava feito uma brasa, pois era início de verão. No céu não se via nenhuma nuvem e somente alguns pássaros que sobrevoavam a cidade. O vento soprava muito fraco, porque se soprasse mais forte poderia ser indício de tempestade. Nas calçadas da cidade, muitos pedestres saiam caminhando e iam às compras. O mercado de hortigranjeiros era bem forte neste dia e muitas verduras foram trazidas da roça. Estavam bem frescas e propícias para o consumo.
Logo abaixo da rua principal, possivelmente uns trezentos metros, estava estabelecido um mercadinho de propriedade do Sr. Manoel, mais conhecido por Japonês, em homenagem a seu país de origem. Neste mercadinho, tradicionalmente nos dias de sábado, haviam muitas ofertas de diversos produtos, principalmente de hortaliças, frutas e a especialidade da casa era a carne de porco, aquela carne ao estilo caipira. Muita linguiça, chouriço, torresmo frito na hora e todos acompanhados por uma dose de cachaça produzida na própria fazenda do Japonês. Todo sábado era festa na certa. Muitos homens iam lá. Compravam as especialidades, comiam torresmo e bebiam algumas doses da cachaça. Muitas conversas, muitas brincadeiras e sempre com um sorriso e muita alegria.
O Sr. José de Maninho, um ancião de noventa e sete anos, com ótima saúde, com muitos casos e aventuras para contar, estava lá. De pequena estatura, de pouco mais de um metro e meio, cabelos brancos e calvo no centro, trajando uma camisa branca, de mangas curtas, calça preta, sapatos pretos e segurando o paletó nas mãos, sentado em um banco de madeira. A seu lado, tinha uma pequena vasilha de vidro com alguns pedaços de torresmo bem tostado, dois pães de queijo, um pequeno garfo e uma faca. Mais à frente, um copinho de cristal com dois dedos da cachaça do Japonês. Falava muito, mas não tinha sintomas de embriaguez. Os olhos brilhavam muito quando falava. Fazia gestos com a cabeça e até o bigode tremia.
O Japonês ali estava e auxiliava o atendimento aos clientes. Ora no caixa, ora atrás do balcão. Com dois assistentes, que cortavam as carnes, fritavam os torresmos, servia os que ali estavam, sempre de cara boa contava algo. Um conto, assim, foi:
- Há duas semanas, quando voltava do sítio, perto do pontilhão, ouvi um grande barulho. Um forte som soou da grota e quando eu percebi, estava de cara com uma onça. A danada tinha uns três metros de tamanho. Ela olhou para mim e eu a olhei. O coração bateu forte, as pernas tremeram, não tive voz para gritar com o bicho. Estava com medo.
- Ela me olhou mais uma vez. Penso que ela teve pena deste pobre Japonês. Olhou mais uma vez para mim, com cara feia. Deu dois passos para trás e foi saindo de mansinho.
- Eu quase sujei a roupa toda. Não tive coragem. Foi um grande susto.
Assim que o Japonês acabou de contar o caso, o Sr. José do Maninho pôs um gole da cachaça para dentro. Pegou um pedaço do torresmo e o colocou na boca. Mastigou várias vezes como se estivesse saboreando o tempero à base de pimenta malagueta, salsa, alho, canela e outros mais. Deu uma pequena tossida e levantou-se do banco, disse em voz alta:
- Japonês mentiroso. A onça que o Senhor viu não foi maior do que eu vi. Vou contar:
- Eu tenho noventa e sete anos de idade. Faltam três para completar um século de idade. Já passei por muitos momentos. Vi crises financeiras, assisti a quebra da Bolsa de Nova York, presenciei as primeiras e segundas guerras mundiais. Tenho muita experiência na roça. Fui boiadeiro e até vendedor de nicarias. Viajei por todo este estadão de Minas Gerais. Não tinha carros em minha época. Era no lombo de mulas e burros. Hoje se chamam de arrieiros. Tinha sapatos, tecidos, botinas, sandálias e vários apetrechos para o homem do campo. Aconteceu assim:
- Foi em uma tarde chuvosa. Os burros e as mulas estavam debaixo de algumas árvores. Relampejava muito e os trovões eram ensurdecedores. Montamos o acampamento ali por perto. Com uma grande lona, pusemos a mercadoria debaixo da lona. Forramos por baixo para não entrar água. O João, que Deus tenha a alma dele em bom lugar, montou as barracas. Eu tratei dos animais com milho e capim que cortei no caminho. Estava chovendo muito e eu precisava ir ao banheiro. Pedi licença para ele e fui.
- Estava eu perto do rio e várias pedras tinham dentro dele. Um lugar muito bonito. O rio não era muito fundo, mas media uns dois metros de fundura. Perto dele, tinham quatro ou cinco moitas de bambu, não sei ao certo. Em uma pequena moitinha, eu me agachei e fiz o serviço. Pensei comigo mesmo: O papel ficou na barraca.
- Meio constrangido de chegar na barraca e pelado ainda por cima, e o João pensar algo errado de mim. Resolvi, então, estando pelado e todo molhado, ir ao rio e tomar um banho. Já estava escurecendo. Então mergulhei no rio e comecei a banhar. A água estava fria e não demorei muito, pois fiquei com medo dos relâmpagos. Se alguma faísca caísse na água, poderia refletir em mim. Quando saí da água e me vesti, ouvi passos nas pedras. Não dei muita atenção e terminei de me vestir. Mais uma vez ouvi os passos e resolvi olhar na direção deles. Fiquei parado ao ver logo na minha frente, distância de no máximo dois metros, uma bruta onça pintada. Bem grande, que descia a pedra para beber água. A barriga dela estava bem grande, porque ela deve ter devorado um bezerro naquelas bandas. Eu assustei, mas a voz não saia. Ela olhou para mim e abriu a boca. Os dentes da felizarda tinham quatro centímetros e ainda pude ver restos de sangue na boca dela. Ela não me pegou, porque não estava com fome. Corri para o acampamento e contei para o João. Na noite, enquanto um dormia, o outro ficava de guarda. Foi a noite toda assim.
José contava esta passagem da melhor maneira possível. Ninguém duvida dele, nem mesmo o Padre que lá estava e não questionou nada. Aplausos foram dados a ele pela coragem e a vontade de vencer a fera. Ele, por si, agradeceu. Sentou-se novamente no banco, comeu outro pedaço de torresmo e mais um gole da cachaça.
Não passou muito tempo e o Joaquim, um professor do colégio, hoje aposentado, contou a seguinte passagem:
- Japonês, eu estou vendo o seu funcionário cortar os pedaços de toucinhos e me lembrei de quando eu negociei muita carne de porco. Cheguei a matar até dois porcos na semana. O comércio era bom e muito vendi para as pessoas.
Não durou muito tempo e levantando novamente o Sr. José do Maninho, comendo mais um pedaço de torresmo e bebendo mais um gole da bebida disse:
- Eu tenho noventa e sete anos de idade. Faltam três para completar um século de idade. Já passei por muitos momentos. Vi crises financeiras, assisti a quebra da Bolsa de Nova York, presenciei as primeiras e segundas guerras mundiais. Tenho muito experiência na roça. Fui boiadeiro e até vendedor de nicarias. Viajei por todo este estadão de Minas Gerais. Não tinha carros em minha época. Era no lombo de mulas e burros. Hoje se chamam de arrieiros. Tinha sapatos, tecidos, botinas, sandálias e vários apetrechos para o homem do campo. Aconteceu assim:
- Certa vez, no sertão, em um povoado próximo da fazenda da família do nosso saudoso escritor Guimarães Rosa, fui convidado para trabalhar em um açougue. Gostei muito e montei um para mim. Vendi carne para a família do Guimarães e o conheci. Estava ele montado em cavalo baio, muito bem arreado e tinha consigo um senhor barbudo. Os dois sempre conversavam muito e sorriam bastante.
- Neste meu açougue, matei até dez porcos por semana. Somente eu trabalhava e meu sócio gastava o dinheiro e o gastava com as meretrizes. Quebrei e voltei novamente para a rotina das mulas e dos burros.
Mais uma vez uma salva de palmas. Ele, da mesma forma, comeu o torresmo e bebeu a pinga.
A manhã caminhava desta forma. Sempre que alguém contava um caso ou uma estória, o Sr. José contava outra da mesma maneira. Era aplaudido por diversas vezes e quando ia aproximando o horário do meio dia, ele já totalmente embriagado, era conduzido até a casa. Um lugar aconchegante. Entrava e ia direto para a cama. Não teimava com ninguém. O professor era quem o conduzia e de vez em quando ia até a casa do Sr. José para ver se estava tudo bem. Dormia o restante do dia todo. Por volta das dezoito horas, acordava, fazia a barba, tomava banho e ia para a missa das dezenove horas. Após a missa, ia ele juntamente com o pároco para a padaria e lá tomavam café. Encontrava com amigos e a cada estória ou acontecimento ouvido, ele contava a mesma coisa, repetindo as mesmas coisas.